Em matéria de procriação medicamente assistida muitas são as reflexões que podem ser realizadas, mas a minha análise estará dirigida, fundamentalmente, no que concerne as garantias do nascituro.
Em se tratando da normativa internacional a Convenção dos Direitos da Criança, de 1989, proclama em seu art. 3º, o “maior interesse da criança”, atento a sua condição peculiar de pessoa humana em processo de desenvolvimento, enquanto que no art. 6º lhe é garantido o direito inerente a vida, devendo os Estados Partes (signatários da Convenção) assegurarem ao máximo a sua sobrevivência e desenvolvimento.
No âmbito interno o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao regulamentar o art. 227 da Constituição Federal, assegura à criança em seu art. 3º os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral e especial. Concebendo a criança e o adolescente enquanto sujeitos de direito, sob o diapasão da prioridade absoluta, estende a sua assistência à gestante segundo o que determina o art. 8º.
Isto posto, a legislação que tratar sobre o estatuto jurídico do embrião deverá estar atenta a essa nova formulação conceitual, doutrinária, pois não podemos ver a procriação medicamente assistida sob o prisma único e exclusivo dos pretensos pais, antes sob a perspectiva garantista do nascituro.
A discussão sobre o tema do embrião humano está intimamente relacionada com a definição de sua identidade, ou seja, se o mesmo se trata ou não de um ser humano e o seu estatuto.
Portanto, a questão que nos é formulada é a seguinte: Se o embrião é um ser humano e por conseguinte titular do direito à vida e à tutela de sua integridade física ou se trata de um mero material biológico - um agrupamento indiferenciado de células, passível de toda sorte de manipulação ou mesmo sua destruição sem nenhum tipo de conseqüência, seja jurídica ou moral.
Entendemos, com a Profª. Maria Luisa Di Pietro que: “O embrião, embora encontrando-se em uma fase específica da sua existência na qual a forma humana, tal como habitualmente a concebemos, ainda não está expressa, não é mera potencialidade, mas substância viva e identificada. Desde o momento da fecundação, ele está em condições de levar à maturação uma corporeidade que serve para manifestar, como numa epifania histórica e terrena, as grandezas incomensuráveis do espírito humano”.[1]
Se reconhecermos o embrião, tanto nas esferas biológica e filosófica, como indivíduo da espécie humana, desde o momento da concepção, e em nível ontológico, como pessoa humana, somos forçados a reconhecer que tal embrião passa a ser, necessariamente, detentor de direitos fundamentais, o que importa portanto ser detentor do direito inviolável à vida.
Adentrar no campo de querer dar um sentido à vida, de compreender quem é o ser humano, é adentrar no campo de seu valor, da sua dignidade e mesmo, da sua fragilidade. Aí podemos conceber o homem enquanto pessoa, não porque tem capacidade de produção, ou porque esteja no gozo pleno de suas faculdades, ou ainda, que possua certos traços morfológicos, mas porque, como lembram Castrese di Ciaccia e Vitaliano Mattioli: “O ser pessoa é para todo homem o valor essencial ao próprio homem, isto é, o valor que constitui sua natureza de homem, pela qual ele é homem, e que está, por assim dizer, ‘por trás’ de tudo o que pode aparecer exteriormente, para além do mensurável e do quantificável. Assim, o homem é caracterizado pela unidade alma-corpo. Não é constituído por dois elementos justapostos, como resultado da soma de ambos (como poderia pensar um dualismo interpretado de maneira variada ao longo da história). Mas essa unidade pela qual o homem é ele mesmo significa que a alma e o corpo se atraem reciprocamente, sendo ambos necessários e constitutivos do mesmo sujeito ...Em outras palavras, o corpo não é algo que possua, mas é algo que sou”.[2]
Se não concebermos o homem enquanto tal, desde a sua forma primeira que é o zigoto. como este ser se tornará humano se não o for desde o momento inicial, que é a concepção? Pelo desenvolvimento que esse embrião terá (e isto claramente a genética, a ciência biológica nos demonstram, sem subterfúgios, a característica da individualidade humana do embrião recém-concebido), não pode haver uma descontinuidade entre não-humano e humano.
Alguns es estudiosos se sentem “à vontade” em defender o extermínio de embriões, de fetos, ou mesmo de bebês, pelo fato de que entendem que estes não têm o conceito de um eu contínuo, ou seja, não têm a capacidade de conceber-se existindo no tempo. E, assim, o direito à vida estaria atrelado à idéia de que seria imprescindível que este ser tivesse tido, em algum momento de sua existência, o conceito de existência contínua. Tese frágil pois se esquece de um aspecto fundamental : para ser o que sou hoje, necessariamente fui um embrião, portanto, um fato singular, mas fundamental, que é a origem primeira das coisas.
Uma outra reflexão que também podemos aduzir a esse tema é no que diz respeito a uma certa mentalidade que tem produzido uma influência sobre muitos aspectos da modernidade: que é a cultura da morte.Essa cultura não só pretende esvaziar o respeito à vida do embrião, como também está se incorporando aos “valores” sociais, daí a utilização de óvulos humanos coletados e fertilizados in vitro que sequer serão transferido para o útero, mas somente para fins de experimentação científica.
Outro fato que não podemos desconsiderar é que a sombra do eugenismo acompanha as especulações genéticas. Assim, uma das grandes preocupações que traz reduzir à vida à biologia seria a padronização de seres e de comportamentos. Há que se impor limites, limites éticos para a ciência.
Percebe-se que em matéria de biogenética, corremos o sério risco da eugenia - da construção de uma raça perfeita. Descobertas nesse campo são preciosas, no entanto não podemos permitir que a sua manipulação, iguale a criatura humana a outros seres vivos, enquanto mero experimento, ainda que estes últimos também sejam importantes e imprescindíveis no ciclo da vida. Todavia, ao homem e à mulher foi dada não apenas a capacidade de agir, mas de refletir sobre seu ato, de escolhê-lo, desejá-lo. E, assim, a capacidade de livremente valorar, de optar pelo que é certo ou não, o que é justo ou não, o que é sensato, em termos de evolução, do que seria, na verdade, uma cega e egoísta insensatez que pretende atribuir ao homem a onipotência de dominar, sem critérios e responsabilidades, o universo, o que nos faz refletir que tipo de sociedade é essa, em que grau se encontra o ser humano no seu processo civilizador.
[1] DI PIETRO, Maria Luisa apud CIACCIA, Castrese & MATTIOLI, Vitaliano. O milagre da vida: reflexões de bioética e sobre os direitos do nascituro. São Paulo: Cidade Nova/Cenplan, 1994.
[2] CICCIA, C. & MATTIOLI, V. Idem, p. 51.