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Henri Bergson e neurobiologia

Agenda 15/06/2014 às 06:05

Henri Bergson é considerado o mais influente filósofo francês na virada do séc. XX. O impacto do seu pensamento se deu para além do ambiente filosófico, representando um desvio da corrente racionalista da tradição filosófica ocidental.

HENRI BERGSON E NEUROBIOLOGIA

 

                           ANA CLELIA DE FREITAS

 

RESUMO

INTRODUÇÃO

I - DOIS NÍVEIS DE RECONHECIMENTO

II - SOBRE PSICOPATOLOGIAS E INFLUÊNCIAS SOCIAIS

CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS

 

 

            RESUMO:

            Henri Bergson (1859-1941) é considerado o mais influente filósofo francês na virada do séc. XX. O impacto do seu pensamento se deu para além do ambiente filosófico. O seu ensaio O Riso é um dos mais profundos e originais sobre o senso de humor. Suas idéias, com ênfase na vida, no instinto e na intuição representam um desvio da corrente racionalista da tradição filosófica ocidental.

         Hoje a pesquisa neurofisiológica confirma muitas das suas hipóteses e elucida seus mecanismos.A intuição e o “reconhecimento do corpo” devem ser vistos não como fantasia pessoal de um pensador original mas como ferramentas cognitivas fundamentais.

 

 

INTRODUÇÃO

 

          100 anos atrás, a virada do século testemunhou descobertas e debates efervescentes no campo das neurociências. Uma figura chave nesse processo foi o filósofo judeu-francês Henri Bergson, pai da nova “filosofia da vida”. Ele propunha que a evolução filogenética no seu ponto mais alto produziu a inteligência humana, que deve ser vista como uma ferramenta biológica. Nossa representação do mundo externo é um instrumento da mais acurada adaptação: ela permite que a reação aos estímulos externos possa ser retardada e selecionada, em vez de imediata e automática. O tempo e a escolha eram temas centrais para Bergson. Em Matéria e Memória, Bergson declara: “quanto maior o espaço escrutinizado por nossa percepção, maior a possível latência de nossa resposta”.

            O tempo de Bergson não é matemático, mas uma duração biológica. Não é vazio, mas preenchido com processos de seleção de múltiplas reações e avaliação das suas possíveis consequências. A “duração” de Bergson tem significado metafísico e algumas vezes é sinônimo de consciência, de estar atento. Em outras palavras, é a luz projetada na cena da tomada de decisão original; e outro nome para isso é liberdade. Um impulso vital, o “élan vital”, leva a vida a progredir e diversificar. A inteligência junto com a intuição cria a liberdade.

            A filosofia de Bergson foi considerada uma reação contra o racionalismo: a razão não é pura, mas preenchida com impurezas subjetivas e biológicamente tendenciosa; é o servo humilde da vida. O livro Matéria e Memória está profundamente fundamentado na pesquisa neurológica da época. Hoje encontramos similaridades entre a “recognição imediata” de Bergson e o “marcador somático “ do neurobiologista Antonio Damasio.

           

 

 

 

           

I – DOIS NÍVEIS DE RECONHECIMENTO

 

            Conforme Damasio, marcadores somáticos são reações afetivas que acompanham imagens e cenários na mente. Orquestrados pelo córtex pré-frontal ventromedial e jogados no corpo, eles agem como alarmes biológicos sinalizando possíveis resultados de opções diferentes.

            Uma idéia central de Matéria e Memória diz respeito à dispersão de estímulos aferentes através de redes eferentes infinitas. Nós continuamente experimentamos uma troca de energia com o meio ambiente. Nos níveis mais baixos da evolução filogenética, como no nível medular, as reações do organismo são imediatas e pré-determinadas. Contudo, nos níveis mais altos, o impulso de entrada faz o seu desvio cerebral, onde as possíveis reações são avaliadas e na maioria das vezes retardadas.

            Para Bergson a percepção (o desvio cerebral) que inicia a representação é o convite para respostas mais precisas, mais úteis. O ponto principal é que os estímulos de entrada podem ir direto para um canal eferente específico ou dispersarem-se através de infinitas vias efetoras, ou ambos.  O resultado dessa dispersão não é um movimento definido, mas uma tendência a reagir, uma atitude, um certo “estado corporal”.

            Hoje, podemos “sentir” nos conceitos de Bergson o trabalho do córtex pré-frontal e aqui encontramos as similitudes com o “marcador somático” de Damasio:

            1. Esse estado corporal, criado pela dispersão do impulso de entrada, é para Bergson o primeiro nível de reconhecimento, o imediato. Ele pode ser chamado novamente por exposição subsequente a um estímulo similar ou pode ser reencenado pela memória. O estado corporal ou marcador somático possuem a mesma tarefa adaptativa: é o radar emocional ajudando-nos a navegar através do labirinto de possíveis infinitas decisões.

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            2. O segundo nível de recognição ocorre quando memórias apropriadas são inseridas na estrutura do recém-criado estado corporal; este é o estado cognitivo de reconhecimento. Bergson estabelece que distúrbios de recognição clinicamente diferentes resultam de defeitos em cada um desses estágios. Em neurociência, “agnosias aperceptivas” são falhas no primeiro nível de reconhecimento, enquanto que “agnosias associativas” são falhas no segundo.

            Bergson compara um paciente do médico Lissauer que possuía graves problemas de orientação e provavelmente “simultanagnosia” (inabilidade de apreender o quadro inteiro) com um paciente do neurologista Charcot, que claramente tem “prosopagnosia” (inabilidade de reconhecer rostos familiares a despeito de adequada visão e julgamento). Henri Bergson conclui que este último deve reter habilidades de reconhecimento precoces (iniciais), mantendo preservado o “reconhecimento pelo corpo”, como ele denomina.

            90 anos depois, Antonio Damasio demostrou que pacientes com prosopagnosia geram respostas de condutância cutânea eletrodérmicas (um sinal de ativação do sistema nervoso autônomo) apenas após exporem-se a rostos de pessoas conhecidas anteriormente, mas que eles não reconhecem mais. Damasio sugere que um estágio inicial de reconhecimento ainda acontece neles.

            A percepção de Bergson é um processo ativo. Damásio diz: “a percepção é tanto atuar no ambiente como receber sinais dele”.

 

            II – SOBRE PSICOPATOLOGIAS E INFLUÊNCIAS SOCIAIS

 

            Damasio e Bergson apresentam conclusões semelhantes em seus diferentes campos de ação, respectivamente a Neurobiologia e a Filosofia:

            1º Ambos apresentam interpretação similar de algumas desordens mentais. Para Bergson, um aspecto chave da vida é a contínua pressão para responder a estímulos externos. Um pré-requisito para uma reação apropriada é alcançar o estado do corpo (estado emocional) que permite a recognição imediata da situação. Bergson chama essa habilidade de “atenção à vida”, a qual é perdida em muitos casos psiquiátricos. Se traduzirmos “atenção à vida” por “habilidade de desenvolver marcador somático apropriado” veremos que esse é o processo que não pode ser realizado por sociopatas adquiridos (aqueles que se tornam sociopatas após lesões pré-frontais: tumores, traumatismos, etc) e psicopatas natos (possuidores de transtornos anti-sociais).

Damasio demonstrou a inabilidade nos pacientes com lesões pré-frontais de gerar respostas de condutância cutânea (uma medida de reação emocional adequada) quando expostos a estimulos perturbadores, e o pesquisador Adrian Raine demonstrou o mesmo com anti-sociais e psicopatas. Um paciente de Antonio Damasio relatou que ele entendia que uma foto a ele apresentada era perturbadora mas ele não se sentia perturbado (afetado).

            2º Damasio e Bergson possuem a mesma fonte de inspiração para os seus trabalhos: o psicólogo William James, o qual levantou profundos insights sobre os mecanismos da emoção e o seu significado para uma vida racional integrada e um apropriado comportamento comunitário. O mundo de Bergson e Damasio é preenchido por indivíduos que possuem pulsões, paixões, sentimentos e criatividade e não por frios robôs “racionais”.

 

CONCLUSÃO

 

Desde o filósofo grego Platão, cientistas e filósofos desenharam uma distinção clara entre o pensamento (a razão) e o sentimento (emoção). Em nossos dias, a neurociência demonstra que são nossas emoções que tornam o nosso pensamento possível.

            Antonio Damasio demostrou que o pensamento requer o sentimento. A razão pura é uma doença. Como estabeleceu o filósofo David Hume, a razão é, e sempre será a escrava das paixões.

            Conclui o neurologista Antonio Damasio:

            “... Muito antes do alvorecer da humanidade, os seres eram seres. Em algum ponto da evolução, uma consciência elementar se iniciou. Com aquela consciência elementar veio uma mente simples, com maior complexidade mental veio a possibilidade de pensar e, mais tarde, de usar a linguagem para comunicar e organizar melhor o pensamento. Para nós, então, no começo era o ser, e só mais tarde o pensar.”

            E finaliza Damasio: “É como se fossemos possuídos por uma paixão pela vida, um desejo que tem origem na essência do cérebro, permeia outros níveis do Sistema Nervoso e emerge como sentimentos ou tendências inconscientes para guiar a tomada de decisão”. Esse desejo, ou força motriz interna, representa o élan vital de Bergson.

 

            REFERÊNCIAS:

 

BERGSON, Henri. Laughter: An Essay on the Meaning of the Comic. Kindle Ed. Amazon. com.

BERGSON, Henry. Matter and Memory. Kindle Ed. Amazon.com.

DAMASIO, Antonio. O Erro de Descartes. 3ª Ed. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2012.

DAMASIO, Antonio. O Livro da Consciência. 1ª Ed. Lisboa: Temas e Debates, 2010.

            HUME, David. A Treatise of Human Nature. Kindle Ed. Amazon.com.

            

Sobre a autora
Ana Clélia Freitas

Médica, poetisa e escritora. Tem trabalhos publicados na imprensa e em revistas acadêmicas de Medicina e Direito. Especialista em Cirurgia Geral e Dermatologia. Especialista em Biodireito. Membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC), International Brain Research Organization (IBRO), Canadá, Associação Brasileira de Psiquiatria Biológica (ABPB), World Federation of Societies of Biological Psychiatry e União Brasileira de Escritores (UBE). Medical doctor, poet and writer. Published works in the press and in scientific and academic journals. Specialist in General Surgery and Dermatology. Specialist in Health Law. Member of the Brazilian Society of Dermatology, International Society of Dermatology, Brazilian Society of Neuroscience and Behavior, International Brain Research Organization (Canada), World Federation of Societies of Biological Psychiatry, and the Brazilian Union of Writers.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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