5 DO TESTAMENTO PARTICULAR
O testamento particular é um ato de disposição de última vontade com a particularidade de ser escrito e assinado pelo testador, por isso, conhecido como testamento hológrafo[28], de próprio punho ou privado.
Segundo Pontes de Miranda, [29] a origem do testamento particular remonta a Valentiano III, no ano 446, e tal como no Breviarium Alaricianum, do ano de 506, apenas se referia a certos casos particulares; não era, portanto, uma forma ordinária de testar. O Código de Justiniano admitia essa espécie somente quando elaborada pelos pais em favor dos filhos. Foi pela atuação do Breviarium, em Portugal, e no sul da França, que ocorreu uma evolução do testamento até chegar ao modelo tal como hoje o conhecemos, transformando em ordinário o que era particular[30].
Embora o testamento particular seja considerado a forma mais simples de testamento e a “salvaguarda suprema da liberdade de testar”[31], inclusive, a maneira preponderante nos países que o regulam, não é a forma mais utilizada no Brasil. Isto, porque, para a sua validade e eficácia, exige-se o cumprimento de diversos requisitos que muitas vezes impedem-no de ser concretizado.[32] Na sequência, veremos alguns deles mais detalhadamente.
5.1 Requisitos essenciais de validade e eficácia
Inicialmente não podemos olvidar que em se tratando o testamento de um negócio jurídico, para a sua validade devem ser observadas as disposições dos arts. 166, 167 e 171, todos do Código Civil, além dos requisitos intrínsecos a todas as formas de testamento.
Em relação ao testamento particular, o Código Civil, no art. 1.876, aponta os requisitos essenciais à sua validade: a) escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico, b) lido na presença de pelo menos três testemunhas, além do testador e c) assinado pelo testador e pelas testemunhas.
Importante destacarmos que a característica principal do testamento hológrafo, que é a escrita inteiramente de próprio punho do testador, não pode ser entendida como afastada por conta de ser admitida a elaboração do testamento por processo mecânico[33].
Tal novidade, outrora muito debatida em nossa doutrina e jurisprudência – principalmente por conta da redação do art. 1.645 do Código Civil de 1916, que não previa o meio mecânico de elaboração do testamento – reflete a evolução no direito, ou melhor, a sua adaptação diante das modernidades tecnológicas.
Assim, a possibilidade de elaboração por meio mecânico não desqualificou o requisito essencial da holografia do testamento particular.
A men legis dessa regra, que exige um ato personalíssimo e exclusivo do testador – por isso não se admite a escrita a rogo – tem como fundamento garantir que as disposições de última vontade sejam fruto da atividade direta do testador e resultado da sua total liberdade de expressão ao mesmo tempo em que permite evitar falsificações posteriores. O fato do testamento ter sido elaborado por um processo mecânico não significa que não tenha decorrido de uma atividade direta e pessoal do testador; o que deve ser considerado é o grande avanço tecnológico e a realidade contemporânea diante do uso constante de computadores.
Acerca do tema, Zeno Veloso[34], já em 1993, defendia o testamento decorrente de um processo mecânico, sob o argumento de que nada impedia tal prática se ficasse provado que “o testador se serviu, ele próprio, de qualquer dessas formas de manifestação do pensamento”.
Destacamos, ademais, que embora o testamento deva ser ato de livre manifestação da vontade do testador, o fato deste utilizar uma minuta elaborada, por exemplo, por um advogado contratado para auxiliá-lo justamente para evitar nulidades futuras, não significa que não tenha sido um ato de sua vontade.
Logo, trata-se de uma inovação importante do Código Civil de 2002 que se coaduna com a modernidade; devem ainda ser observadas as formalidades do §2º do art. 1.876 que não autorizam rasuras ou espaços em branco no testamento com o objetivo de evitar qualquer falsificação que possa maculá-lo, o qual ainda deverá ser assinado pelo testador, depois da leitura na presença conjunta das testemunhas, que também deverão subscrevê-lo (unidade de contexto).
Quanto à assinatura do testador ou das testemunhas, o Código Civil de 2002 não exige o reconhecimento de firma, as quais serão confirmadas quando da publicação do testamento, mas poderão ser impugnadas pelos herdeiros legítimos; também não se exige a rubrica em todas as páginas do testamento, mas as assinaturas do testador e das testemunhas devem constar ao final das disposições testamentárias.
Uma questão interessante acerca da assinatura do testador e que tem provocado uma discussão frente às modernidades tecnológicas, principalmente diante do uso disseminado do computador pessoal, diz respeito à possibilidade da assinatura digital do testador[35]. Ora, se no passado a discussão era voltada para a possibilidade de elaboração do testamento por meio mecânico, atualmente o foco é a possibilidade do ato do testador ser assinado digitalmente somado aos debates sobre as formas possíveis de conferir a segurança necessária ao ato de livre vontade.
Outra inovação importante trazida pelo Código Civil de 2002 refere-se às testemunhas. Para a validade do testamento particular, escrito de próprio punho ou elaborado por processo mecânico, a presença de pelo menos três testemunhas é fundamental. O testamento deve ser lido pelo testador na presença de todas, que deverão assiná-lo diante dele.
Enquanto o Código de 1916 exigia ao menos cinco testemunhas, o Código Civil de 2002 passou a exigir apenas três; todas devem ouvir a leitura do testamento e assiná-lo, relevando, assim, claramente a tendência à mitigação dessa exigência formal do testamento particular[36].
Para a eficácia do testamento particular as testemunhas deverão confirmá-lo. O Código de 1916 exigia ao menos três testemunhas para esta finalidade. Já o novo Código Civil é mais flexível, uma vez que se eventualmente, quando da confirmação do testamento, apenas uma delas reconhecê-lo, este poderá ser confirmado pelo juiz, conforme o art. 1.878, parágrafo único: “Se faltarem testemunhas, por morte ou ausência, e se pelo menos uma delas o reconhecer, o testamento poderá ser confirmado, se, a critério do juiz, houver prova suficiente de sua veracidade.”
Trata-se de uma simplificação bastante importante, na medida em que o número de testemunhas era excessivo, e o ato do testador, mesmo válido e representando a sua legítima disposição de última vontade, não era considerado eficaz quando faltavam três testemunhas. Desta forma, a sucessão ocorria na forma da lei, exatamente o que o testador não queria ao elaborar o seu testamento.
Em que pese se tratar de uma inovação importante, fato é que a confirmação do testamento, nessa hipótese, ficará a cargo da avaliação do julgador, que deverá perquirir, no caso concreto, a vontade do testador frente a outros elementos probatórios. No entanto, foi mantida a exigência da indispensável necessidade de, pelo menos, uma das testemunhas que o assinou, reconhecê-lo.
Por fim, destacamos que o testamento pode ser redigido em outro idioma desde que, tanto o testador quanto as testemunhas possam compreendê-lo, conforme o art. 1.880 do Código Civil (corresponde ao art. 1.649 do Código Civil de 1916). Da mesma forma, como não há controle da linguagem, o testamento pode ser escrito da forma como quiser o testador, inclusive, contendo erros de ortografia.
Além dos requisitos de validade, para que o testamento particular tenha eficácia, foi mantida no Código Civil de 2002 a necessidade de ser observada a solenidade da confirmação em juízo do testamento após a morte do testador, conforme inferimos dos seus arts.1.877 e 1.878.
Nos moldes do art. 1.130 do Código de Processo Civil, o herdeiro, legatário ou o testamenteiro podem requerer a publicação do testamento depois da morte do testador, quando, então serão ouvidas as testemunhas que subscreveram o documento, reconhecendo, assim, a sua autenticidade.
A principal crítica que persiste no ordenamento quanto ao testamento particular é a exigência dessa confirmação em juízo, justamente porque, muitas vezes, as testemunhas que assinaram o testamento, não mais sobrevivem ou têm paradeiro desconhecido; pode ainda ocorrer alguma contradição entre as testemunhas, que dado o transcurso do tempo, não mais se recordam dos fatos com clareza. Assim, o ato de última vontade, embora válido, não será eficaz, caso não exista ao menos uma testemunha a confirmá-lo, além da própria avaliação do julgador. Segundo Zeno Veloso,
este procedimento, após o falecimento do testador, quando se convocam as testemunhas para confirmar, judicialmente, o testamento, é um dos maiores inconvenientes, um risco flagrante do testamento hológrafo, residindo, aí, a razão principal de sua quase nenhuma utilização, em nosso país.[37]
De modo geral, os países que admitem o testamento particular não exigem testemunhas. Quanto a estas últimas, destacamos que não estão obrigadas a se lembrar do conteúdo das disposições de última vontade que lhes foram lidas em voz alta pelo testador, mas do fato da leitura propriamente dita, assim como reconhecerem as suas próprias assinaturas e a do testador.
Se as testemunhas contestarem o fato da disposição ou ao menos o da leitura do testamento ter sido feita diante delas, e ainda, se não reconhecerem as suas assinaturas e a do testador, o testamento inicialmente válido por ter observado os requisitos formais será ineficaz porque não confirmado, e os bens do testador vão para pessoa diversa da por ele pretendida[38].
Portanto, verificamos que as solenidades do testamento particular não devem apenas ser observadas quando da sua elaboração, mas também no momento da sua execução, após o falecimento do testador. O procedimento desestimula a sua utilização, dado que é indispensável a necessidade de ingressar em juízo e enfrentar os problemas daí decorrentes como a falta de celeridade, os custos processuais e os riscos relativos às próprias testemunhas[39].
Outra inovação bastante importante do Código Civil de 2002 é a possibilidade de se elaborar um testamento particular com a dispensa das testemunhas, quando situações excepcionais justificarem tal ato: “Art. 1.879. Em circunstâncias excepcionais declaradas na cédula, o testamento particular de próprio punho e assinado pelo testador, poderá ser confirmado, a critério do juiz.”
Trata-se de uma forma muito simplificada de testamento. Alguns doutrinadores, entre eles, Zeno Veloso, entendem que sequer seria uma forma particular, mas sim especial, que não requer testemunha alguma, só podendo ser elaborado em circunstâncias especiais que impedem ou dificultam que o testador atenda os requisitos essenciais aqui discorridos[40].
Notamos ainda que o Código Civil de 2002 não enunciou as circunstâncias excepcionais a autorizarem tal testamento, as quais devem ser declaradas no próprio testamento. Portanto, novamente ficará a critério do juízo de valor do julgador a confirmação do testamento, quando a ele apresentado.
A doutrina, contudo, já ressalva algumas circunstâncias excepcionais, como o fato do testador estar internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de um hospital e sentir a proximidade da sua morte, ou contaminado com uma doença contagiosa que o impeça de manter contato com terceiros[41].
Outro aspecto que gera discussão diz respeito à caducidade deste testamento “informal”. Isto porque, enquanto o Código Civil prevê que os testamentos especiais caducarão em 90 dias, caso não tenha falecido o testador e a ele seja possível testar de forma ordinária (arts. 1891 e 1895 do Código Civil de 2002), nada diz sobre o prazo de caducidade dessa nova forma de testamento na hipótese do testador sobreviver à circunstância excepcional declarada no testamento.
Logo, ainda que o testamento seja um ato de vontade e que fique a critério do testador revogá-lo, o fato de existir uma previsão quanto à caducidade dos testamentos especiais não pode ser deixado de lado quanto à modalidade prevista no art. 1.879 do Código Civil de 2002; deve ser mantida a coerência de interpretação do ordenamento. Uma vez superada a circunstância que levou o testador a testar, o testamento elaborado nestas circunstâncias excepcionais deixa de ter validade. Caso queira manter as disposições, o testador deverá se socorrer de uma das outras formas previstas no ordenamento.
5.2 Requisitos não essenciais
A legislação brasileira, ao contrário da maioria – dentre elas as legislações da França, da Itália e da Alemanha – não exigiu que no testamento particular fosse colocada a data da sua elaboração e o local no qual foi feito. No entanto, embora não sejam requisitos essenciais, podem ser úteis e se transformarem em essenciais em determinadas circunstâncias.
Um exemplo é o fato de que a menção de data no testamento permite, entre outras circunstâncias, verificar a capacidade do testador naquele momento, ou ainda, quando diante de dois testamentos da mesma pessoa, com disposições conflitantes e, que por não estarem datados, restarão prejudicados pela impossibilidade de se averiguar qual manifesta a última vontade do testador.[42]
Existindo diversos testamentos, é a data que comprova qual deles é o último e, portanto, revoga o anterior. A ausência de data pode exigir investigações que, na maioria das vezes, são muitos difíceis. Assim, um testamento datado e assinado fica completo e evita nulidades que colocariam em risco a vontade do testador.
Assim, estes requisitos, embora a legislação não os tenha classificados como essenciais, em casos de dúvidas, ajudam a evitar uma possível nulidade no caso concreto.
Por fim, destacamos o risco de perda, extravio ou ocultação do testamento particular. De acordo com a doutrina, a melhor forma para evitar estes problemas é o testador redigi-lo em vários exemplares, com o mesmo conteúdo e, em todos, atendendo aos requisitos descritos, podendo deixá-los com pessoas de sua confiança ou em um cofre bancário.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio da nossa exposição, observamos diversas facilidades e conveniências para a elaboração de um testamento particular. Porém, ainda que se trate da forma mais simples, rápida, econômica e represente “a salvaguarda suprema da liberdade testamentária”[43], suas formalidades excessivas são vistas como impeditivas da sua utilização, já que, uma vez não observadas, a vontade do testador não terá validade, prevalecendo a sucessão legítima.
Assim, pelo fato de se buscar preservar a última vontade é que muitas das limitações impostas pelo ordenamento estão, aos poucos, sendo mitigadas. Diante das questões essenciais para a validade do ato, passa-se a perquirir o verdadeiro desejo do testador, como forma de evitar a declaração de ineficácia do ato ou a sua nulidade, levando a transmissão do patrimônio a acontecer de forma diversa da pretendida pelo testador.
Nos dizeres de Pontes de Miranda, “só em último caso, deve o juiz sacrificar o interesse da vontade, que merece favor, à exigência formal, cujo intuito somente poderia ser o de garantir a boa expressão da vontade e o seu respeito”[44]. É o que verificamos não apenas do Código Civil de 2002, mas na jurisprudência, ambos antenados às modernidades da vida e ao caráter dinâmico de um dos mais antigos institutos do direito, que é o testamento.
Daí, portanto, o acerto da mitigação das formalidades exigidas para o testamento particular que, embora seja a forma mais simples de testar, ainda encontra muita resistência frente ao receio de que a sua validade venha a ser rechaçada quando da abertura da sucessão. Temos aqui uma situação que vem sendo claramente evitada para garantir a finalidade primordial do testamento que é a disposição de liberalidade do testador.