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Função judicial, retitude moral e solvência intelectual: o “agir correto” e o “lucro cessante”

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Agenda 30/06/2014 às 10:42

Supomos que se o Judiciário não se desmorona (se não se desmorona mais) é graças a que os bons juízes fazem seu trabalho e mantêm a maquinaria em funcionamento. O único problema é que um edifício em chamas necessita algo mais que alguns bombeiros.

“Quien no posee de modo innato el sentido jurídico y el sentimiento moral, quien no siente aquella profunda alegría al producir el derecho justo, está tan imposibilitado para el juicio jurídico como lo está para el juicio estético aquel al que le falte el profundo disfrute de lo bello.” ERNST FUCHS

Quais são os traços de caráter que deve possuir um bom juiz? Quais são as virtudes que necessita um juiz para desempenhar seu trabalho de um modo excelente e com conhecimento? É possível separar a ética e a competência intelectual da atuação da função judicial no processo de interpretar, justificar e aplicar o Direito? Ou melhor, é razoável conceber a atividade interpretativa, que pretenda ser digna de crédito na atualidade, desvinculada da virtude moral e da formação pessoal do sujeito-intérprete em um Estado republicano?

De um modo geral, parece algo cada vez mais habitual observar que os cidadãos reclamam para si um âmbito de privacidade que não estão dispostos a permitir que desfrutem certo tipo de indivíduos, especialmente quando se trata de determinados funcionários públicos. Como cidadãos, exigem que se respeite seu próprio direito à intimidade;  reclamam, entre outras coisas, que não se conheçam dados sobre sua vida privada, sobre seu próprio corpo, suas crenças morais e religiosas ou que não se interfira arbitrariamente na formulação de seus planos de vida. Por outro lado, ao mesmo tempo alçam suas vozes cada vez com uma maior assiduidade e contundência solicitando e prestando informações acerca das atitudes individuais, as relações pessoais, os bens particulares, as aptidões e o comportamento moral das pessoas públicas, de funcionários, políticos e também de juízes.

No caso particular dos juízes, uma das razões que se oferece para justificar esse fato é que dado que tomam decisões que afetam ao conjunto da sociedade, os cidadãos têm o direito a conhecer suas capacidades pessoais, suas competências morais e os traços mais relevantes de seu caráter pela influência que estes traços podem exercer ou comprometer suas decisões. Têm direito a saber se, por exemplo, suas condutas passadas ou se as amizades que frequentam podem representar um obstáculo para o desempenho de suas funções ou se sua ideologia, conhecimento e ética pessoal afetará seu juízo de um modo acusado. Têm direito a saber, enfim, em mãos de quem estão depositadas suas vidas e os destinos de sua comunidade.

O que este tipo de indagação sobre os aspectos pessoais dos juízes procura evitar é a mera ilusão de parcialidade, de moralidade e/ou de competência profissional, ao mesmo tempo em que busca manter a confiança pública nos membros que compõem o poder judiciário. E não se trata precisamente de algo carente de significado e importância, uma vez que a administração da justiça não é independente do caráter virtuoso e da formação profissional daqueles a quem cabe concretizá-la. Sem instituições justas, sem juízes justos e competentes mal pode funcionar adequadamente a vida democrática.  

Por essa razão, os juízes, condenados a julgar, devem ter um especial cuidado em não realizar aquelas ações que possam vir a ser consideradas como merecedoras de crítica moral e intelectual. Se um dos deveres impostos pelo sistema à magistratura é que os juízes devem abster-se de realizar condutas que diminuam seu cargo e sua função ou que ofereçam mera aparência de imparcialidade e/ou probidade, então é absolutamente necessário que mantenham uma atitude virtuosa, que atuem em todo momento com equilíbrio, autocontrole, sensatez e competência intelectual.

Desgraçadamente, alguns magistrados costumam adotar uma atitude frente ao direito que viola sistematicamente alguns princípios (morais e jurídicos) úteis e ineludíveis para resolver conflitos atuais e do futuro imediato. Ciclicamente, alguns julgadores perdem de vista o valor moral, impessoal, do direito, além de elidir a advertência de que uma “das enfermidades mais perigosas que pode contrair o espírito humano é ignorar sua própria ignorância”. Olvidam que a ordem de direito somente é útil quando aceitamos que é possível remeter todo conflito ou conduta ilícita de indivíduos ou grupos sociais a uma normatividade que nos assegure que as decisões vão mais além do interesse que poderia prevalecer em uma empresa familiar. Desconsideram, enquanto mediador na comunidade e para a comunidade da ideia de direito e da justiça que o fundamenta, a exigência e a responsabilidade ética que têm de criar e manter, por meio de seus comportamentos e conhecimentos, a credibilidade na qual deve descansar a inabalável confiança dos cidadãos acerca de sua atividade: uma manifestação indispensável e irrenunciável de virtude e excelência de caráter.  

É certo que há valores, princípios e normas que não se cumprem, que se violam, que são “letra morta”, que se modificam ou se interpretam segundo convenha aos interesses de determinados indivíduos ou grupos. Todos sabemos que os labirintos dos tribunais estão entre os lugares mais inseguros do País e que impetrar uma ação judicial, na grande maioria das vezes, representa para o cidadão (pela enraizada e “caconômica”[1] morosidade da justiça) uma verdadeira suspensão de sua dignidade. Todos temos uma ideia fixa, verdadeira ou não, contrastável ou não, do imperfeito, parcial e às vezes descomprometido (ética e intelectualmente) desempenho do poder judiciário.

Mas há um limite. O direito  segue exigindo um momento de incondicionalidade que obedece a sua necessária vinculação com a moral, isto é, de que não se vende impudicamente ao melhor pagador ou se entrega nos braços de quem (por vaidade, medo, ignorância deliberada, desejo de enriquecer ou triunfar) lhe utilizada de modo exclusivamente instrumental. De fato, é essa pretensão de correção moral que permite distinguir entre o direito e a força bruta, que permite distinguir entre a ordem de um delinquente (“a bolsa ou a vida”) e a ordem de cobrança de um determinado imposto.

Assim que a melhor resposta às perguntas antes formuladas parece ser negativa. Não, não há que permitir que as limitações habituais de nossas capacidades intelectuais, a deslealdade institucional e os impulsos de duvidosa virtude se diluam nos excessos de uma pessoalidade arrogante e caprichosa, e que o cinismo e a estupidez humana se imponham por encima do nível moral e intelectual que reservamos a nossos congêneres verdadeiramente humanos. Não há que escamotear à sociedade a evidência de que, sob a casca do Estado de Direito, a virtude moral e o bom conhecimento constituem condição sine qua non para o pleno e legítimo exercício da função jurisdicional. 

Retitude moral e o “agir correto”

A tradição histórica republicana nunca tratou a questão da virtude como um problema exclusivo de mera psicologia moral. Já desde Aristóteles toda referência à virtude foi acompanhada de considerações institucionais e relativas às bases sociais e materiais que fazem (ou não) possível a virtude moral; quer dizer, do esquema ético-social da relação entre a virtude pessoal e o bem estar coletivo (bem público): “Ahora bien; esta clase de concordia (homonoia) se da entre los hombres buenos (epieikeis), pues éstos están en armonía consigo mismos y entre sí, y teniendo, por así decirlo, un mismo deseo (porque siempre quieren las mismas cosas y su voluntad no está sujeta a corrientes contrarias como un estrecho), quieren a la vez lo justo y conveniente (tà dikaia kai tà sympheronta), y a esto aspiran en común. En cambio, en los malos (phaulous) no es posible la concordia, salvo en pequeña medida, ni tampoco la amistad, porque todos aspiran a una parte mayor de la que les corresponde de ventajas, y se quedan atrás en los trabajos y servicios públicos. Y como cada uno de ellos procura esto para sí, critica y pone trabas al vecino, y si no se atiende a la comunidad, ésta se destruye. La consecuencia es, por tanto, la discordia pugnaz (stasiazein) entre ellos al coaccionarse los unos a los otros y no querer hacer espontáneamente lo que es justo." (Livro IX da Ética Nicomáquea, 1167B - versão espanhola)

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           A interpretação mais natural e corrente deste texto declara o seguinte:

1) que há homens bons e homens maus;

2) que os homens bons são virtuosos, e que ser virtuoso quer dizer "estar em harmonia consigo mesmo", "querer sempre as mesmas coisas", não ter uma vontade volúvel ou caprichosa, e desejar ao mesmo tempo o que convém - e se deve - a si mesmo e o que convém - e se deve -  aos demais;

3) que os homens maus, ao contrário, são viciosos que nem estão em harmonia consigo mesmos pelo traço mudadiço de sua vontade, nem podem tê-la com os demais ao antepor sistematicamente seus próprios interesses particulares do momento ao que se deve aos demais (e a si mesmo no futuro).

Essas três afirmações admitem a seguinte reformulação: os homens maus o são porque não conseguem resolver um dilema do prisioneiro em que seus eus presentes jogam contra seus eus futuros, e pelo mesmo motivo que se maltratam a si próprios, têm que maltratar também aos demais; o homem mau é um free rider com os demais porque o é desde logo consigo mesmo. O homem bom, em câmbio, é um jogador de lei, aquele que “age corretamente”, que pelo mesmo motivo que trata bem a seus eus futuros e está em harmonia consigo próprio, o está também com os demais.[2]

Em que consiste esse “agir correto” desde o ponto de vista de sua coordenação na Ética? Por que as capacidades do ser humano são indispensáveis para falar de um “agir correto” desde o ponto de vista de uma teoria hermenêutica que tende à equidade e a justiça social? Em termos gerais, no discurso jurídico moderno, dotado de forte grau de institucionalização, ao problema do “agir correto” adere-se mais bem um agir ou atuar conforme aos dados do sistema,  à possibilidade de articular a relação entre o universal e o particular, ou, ainda, à aplicação de princípios e normas gerais em casos particulares; a ideia de phrónesis (habitualmente traduzido por prudência) compreende o juízo prático como um mero juízo de “contextualização”, de “assimilação” entre pauta geral e situação, quer dizer, como realizando uma applicatio: procedendo à clarificação e concretização de conteúdos normativos pré-dados.

Pois bem, muito embora a phrónesis seja um conceito essencial da ética socrática, não deixa de ser certo que Platão e Aristóteles têm importantes diferenças a respeito do mesmo: Platão lhe dá uma dignidade epistemológico-moral equivalente à sophía, enquanto que Aristóteles restaura o uso cotidiano de phrónesis na língua grega, “degradando” o conceito até convertê-lo em sabedoria prático-concreta. Um phrónimos, de acordo com esta interpretação, seria um indivíduo que, ainda sem estar em possessão da sabedoria (sophía) necessária para conhecer-se a si próprio e conseguir a enkratéia pelo mero recurso à autognose, sim teria ao menos o suficiente discernimento prático-concreto como para reconhecer sua própria debilidade e ignorância, buscar-se um amarre externo e guarnecer-se conscientemente ao abrigo da tradição. Essa é a maneira como a filosofia moderna e a teoria do direito tendem a interpretar a phrónesis aristotélica: como mera prudentia mundana.

Não obstante, resulta inverossímil que essa reconstrução conceitual faça justiça à linhagem socrático do Estagirita: na versão aristotélica, somente o enkratés, a  pessoa que logra impor-se a si própria suas metapreferências , a pessoa que, sendo amiga de si mesma, não se contradiz no silogismo prático e que é capaz de eleger seus desejos e resolver seus conflitos interiores, possui phrónesis, prudência, sabedoria moral prática, conhecimento concreto de si e de sua circunstância.

Para Aristóteles – e isto marca outra diferença com relação ao pensamento platônico da felicidade do homem virtuoso em qualquer circunstância -, ser enkratés  é uma condição necessária para ser livre, feliz e prudente, mas não suficiente. O bom controle sobre si mesmo, o ser sábio e senhor de si mesmo (precisamente para satisfazer o imperativo do oráculo, por conhecer-se a si próprio), a “força interior” (uma possível tradução de enkratéia) ou a liberdade respeito dos próprios impulsos, em uma palavra, a capacidade de superar os obstáculos internos, é imprescindível para ser prudente, feliz e livre (no sentido de que nenhum obstáculo interno frustra sua vontade), mas também o é um entorno que não levante diques externos à realização da firme vontade do enkratés (palavra que designava em grego coloquial a quem tinha poder ou capacidade de uma firme e virtuosa disposição sobre algo).

 Assim que se é certo que na doutrina da phrónesis se dá a coordenação de um geral e de um particular (tal como na hermenêutica, e daí o papel central da applicatio e o “caráter exemplar” da hermenêutica jurídica, onde se coordena norma  situação), não menos correta e fundamental é a constatação de que a prudência, por ser uma virtude – uma disposição ou capacidade, acompanhada da razão, de atuar na esfera do que é bom ou mal para o ser humano –, pressupõe  a  enkratéia.

 O que implica que a prudência no ato de julgar exige, antes de tudo, um juiz enkrático que, por dizê-lo com o apóstolo dos gentis, conhece-se muito bem a si mesmo, que entende o que faz e faz o que verdadeiramente lhe parece virtuoso e justo; de um juiz que, afrontando de forma virtuosa os adversos retos racionais, os problemas emocionais, os fatores ou resíduos de irracionalidade e as eventuais constrições informativas exteriores desenhadas para perturbar a realização de suas firmes convicções, desejos, preferências e juízos, não ceda ante nenhuma outra coisa senão somente ante a força da virtude moral e da sensatez.

Em palavras mais  simples, de um juiz cuja atividade deve estar permeada pela virtuosa pretensão de que suas decisões sejam moralmente corretas e justas; a ela (atividade) corresponde a intenção e o dever moral e jurídico de agir e decidir corretamente, de que embora necessário, não é suficiente para resolver um problema jurídico (fácil ou difícil) a simples demonstração de uma  prudentia mundana ou o acomodado recurso à determinados artifícios legais, metodológicos e/ou argumentativos. A prudência do juiz não é outra coisa que a manifestação de sua dignidade e de seu caráter virtuoso, comprometido que deve estar, eticamente, com o desenho de um modelo sócio-institucional que permita a cada cidadão, frente a qualquer interesse espúrio do Estado ou de qualquer outro agente social, viver com o outro na busca de uma humanidade comum.

Agora: é possível encontrar magistrados dotados de tão boas qualidades e virtudes, quer dizer, um juiz enkrático que, estando “em harmonia consigo mesmo”, não ceda ante nenhuma outra coisa senão somente ante a força da virtude moral e da sensatez?

Parece que sim, desde que esse indivíduo se disponha a abandonar o “filistinismo” que na maioria das vezes e casos tem caracterizado a postura daqueles que exercem a atividade jurisdicional. Porque “filisteu” (um conceito muito marxista[3]) é quem se nega ou se resiste a valorar as coisas, qualquer coisa, por si mesmas. Filisteu é quem não admite, por exemplo, que se possa desejar conhecer algo pelo valor mesmo de conhecê-lo, pelo mero gosto de satisfazer a curiosidade, a qual, como disse Aristóteles – o pai do antifilistinismo filosófico — é o começo de todo saber.

O filisteu sustenta e atua como se crera que somente é desejável o conhecimento que serve para algo (no caso, para ganhar dinheiro, fama ou prestígio, para escalar na hierarquia judiciária e/ou acadêmica, para lograr uma posição social útil e destacada, para conquistar a admiração de alguém...). Filisteu é, em geral, quem se nega a reconhecer que possa haver ações humanas com valor por si mesmas, qualquer que seja o resultado delas. Para a triste vida de um filisteu, esta se reduz a um imenso repertório de instrumentos, de meios e cadeias inteiras de meios postos ao serviço de algum fim, normalmente heterônomo.

Assim as coisas, um juiz que aspire elidir os vícios a que nos referíamos deve, antes de tudo, cultivar um antifilistinismo extremista, que não se conforma somente com declarar que há algumas coisas que se deve buscar ou fazer por si mesmas, por seu valor intrínseco, senão que também se indigna ante a menor possibilidade de  converter quase qualquer meio ou instrumento legal em fim. De um magistrado que entenda não somente que a “justiça plena” é impossível (porque a sociedade é um acordo desconfortável entre indivíduos com interesses conflitantes, antes de ser algo projetado diretamente pela “racionalidade” humana), senão que também seja capaz de admitir que os tribunais estão formados por indivíduos tendencial e prioritariamente egoístas e não por santos que trabalham incansavelmente para o bem comum. Que compreenda que não é uma máquina neutra e sem motivos próprios para produzir benefícios sociais, mas um ser humano comum, um primata que ao não estar em harmonia consigo mesmo tão pouco será capaz tê-la com os demais, ao antepor sistematicamente seus próprios interesses particulares do momento ao que se deve aos destinatários de sua decisão.

  É nesse contexto que a exigência da virtude moral passa a ser uma “forma de vida”, uma condição existencialmente fundamental – a condição decisiva – da tarefa (pessoal e institucional) do magistrado, cuja capacidade de causar dano ao próximo é perigosamente potenciada pela posição de poder que ocupa.

Poderia argumentar-se, é certo, que essa ética da virtude[4] não pode aplicar-se ao campo da função judicial, que nesse âmbito do atuar humano só os deveres (uma ética do dever) ou as consequências das decisões (uma ética utilitarista) contam decisivamente, e que a virtude dos operadores do direito é instrumental e se deve unicamente ao seu caráter e às forças sociais e ambientais que induzem a determinados tipos de condutas e discursos jurídicos. Mas não se trata somente disso: as valorações, interpretações e decisões pessoais de um determinado caso concreto não são simplesmente um mero cumprimento de deveres, consequências ou reações individuais a um acontecimento específico, porque a tarefa interpretativa/decisória não é somente uma reação ao fato em si, senão uma comunicação dirigida a outros, interferindo e provocando câmbios (ou adaptações) em seus planos de vida de uma forma mais direta.

Quer dizer, as interpretações/decisões - que tomam em conta as perspectivas, condutas e situações de outras pessoas com relação às nossas valorações - são comunicações que, em virtude de seu significado percebido e de seu poder de interferência na passarela intersubjetiva da vida social, servem para provocar reações específicas por parte de seus destinatários. Nesse sentido, agir corretamente ou atuar eticamente significa estar e se preocupar com os outros, ser um entre os outros dentro de um quadro sócio-institucional que afirme a condição de cidadão: o bom intérprete, ética e responsavelmente comprometido com a justiça é o juiz virtuoso que combina a procura do interesse pessoal com a exigência interpessoal da liberdade,  igualdade e solidariedade social, sob a égide de instituições justas .

Daí que o objetivo da boa interpretação/decisão não é conseguir que os intérpretes admirem e/ou reproduzam uma legislação já feita, senão fazê-los capazes de valorá-la e de corrigi-la. Interpretar/aplicar o Direito é, acima de tudo, um “agir correto”, uma virtuosa tarefa moral: podemos admirar o estilo de um discurso jurídico ou a habilidade argumentativa do sujeito-intérprete, mas ainda assim devemos julgar tanto a um como ao outro pelo modo com que um bom juiz permita realizar e efetuar por meio da decisão câmbios reais contra toda e qualquer forma de injustiça[5].

Evitar ou mitigar o sofrimento e “nada hacer que sea indigno [...], esto tiene que figurar como ley a las puertas del alma”.(Demócrito)

Insolvência intelectual e o “lucro cessante”

Outra questão teórica de fundo relativa à função judicial, e que também tem interesse, diz respeito à preparação intelectual dos magistrados. Podemos estar de acordo em duas teses básicas: (a) que aprovar em um concurso público, concluir uma carreira universitária (ou pós-universitária) e dispor de alguma experiência jurídica em tempo e forma não é garantia de grande solvência intelectual ou de que se possui habilidades suficientes para julgar qualquer coisa; (b) que pode haver (e houve) juízes sem alguns desses requisitos que fazem (e fizeram) um grande papel em seus cargos e que são (e eram) pessoas dotadas de uma extraordinária sensatez, honradez e perspicácia. Descartamos, pois, as exceções por um lado e por outro e nos contentamos com umas poucas evidências elementares.

A primeira é que por estas terras é cada vez mais comum a existência de magistrados cuja solvência intelectual é a todas as luzes escassa, personagens sem a mais mínima cultura jurídica digna desse sentido. A segunda, que é sabido e muitas vezes constatado pelas decisões que tomam, que alguns juízes (e/ou seus avatares, os assessores) padecem de uma escassez crônica de conhecimento jurídico e consistência argumentativa, um supino desprezo pela qualidade de suas sentenças, uma indiferença feroz frente à cidadania e uma aberrante falta de compromisso institucional com a celeridade e a eficácia que exige a administração da justiça.

De fato, ainda que a espécie humana não possa suportar demasiada realidade e inevitavelmente cada um de nós subestime o número de indivíduos estúpidos que circulam pelo mundo do judiciário, o certo é que nele há demasiada estupidez, mediocridade e ignorância deliberada, e que não são poucas as vaidades e os interesses pessoais e/ou corporativos no mercado da justiça. E essa incompetência transcendente, dissimulada por egos e reputações, acaba por gerar uma nefasta e perigosa circularidade em que o sistema jurídico se retroalimenta com suas inanidades.

Daí que a pergunta que com frequência se formulam as pessoas razoáveis é a de como é possível que algumas pessoas dotadas de uma desesperante insolvência intelectual cheguem a alcançar esse tipo de posição de poder e de autoridade. Como é possível que seja uma experiência tão comum encontrarmos com magistrados que não tomam distância da paroquiana concepção de sacerdote da legalidade, que não deixam de predicar uma inocente “concepção missioneira” do “que fazer” jurídico, que não disponham da humildade intelectual necessária para reconhecer e saber valorar a enorme quantidade de informação que lhes resulta impossível obter, que não sintam a incessante necessidade de questionar continuamente os limites do próprio conhecimento, que não são conscientes das limitações que conformam sua própria personalidade e seu caráter, que não percebam serem vítimas da chamada “síndrome do ciclista” (baixam a cabeça para os que estão por cima e pisam os que estão por baixo) e/ou que não suspeitam constantemente do cego convencimento de que não há mais que uma maneira correta de ver a realidade, a saber, a sua própria[6].

E o que resulta mais grave, ademais do aumento do potencial nocivo de uma pessoa estúpida no poder, é pensar que esse tipo de dano também toma a forma do que os juristas chamam “lucro cessante”. Quer dizer, de que não se trata de ver somente o que, apesar dos pesares, se tem, senão de dar-se conta do que por causa desses pesares se deixa de ter, de como poderiam marchar as coisas se todos os indivíduos com o poder para julgar-nos fossem pessoas de bem e intelectualmente preparadas.

Nesse caso, o lucro cessante é indiscutível. Renunciamos a grandes doses de justiça e segurança porque permitimos que nos julguem alguns lorpas, porque nos recriamos sinistra e perversamente na confiança ao incapaz e ao desonesto, porque nos acostumamos a não poder conceber que o judiciário possa estar organizado de nenhum outro modo, porque consentimos que suspendam nossa dignidade em cada processo que se eterniza, porque jogamos nossa cidadania à roleta russa e masoquistamente desfrutamos com o risco de que nos levem à pique o Estado de Direito. Enfim, porque em nossa atomizada e desesperada ilusão da “justiça”, acabamos por perceber que o judiciário que temos hoje é o único judiciário possível: perdemos a imaginação, abandonamos por vontade própria a ideia de indignação.

O problema é que a variadíssima realidade de que versa o Direito, afirmava G. Radbruch (2013), precisamente por ser irredutível à perfeita rasoura de uns tantos, “demanda en el buen jurista formación histórica, una postura ético-filosófica, olfato político, nociones científico-naturales, conocimiento de las necesidades del alma humana, como también experiencia de la grandeza y miserias de la vida en sociedad y sensibilidad artística, porque para ser correctamente presentado al público cada contenido requiere una forma específica, se entiende que provista por el arte.” 

Por isso resulta de vital importância a formação que o magistrado receba, a experiência profissional e a solvência intelectual de que disponha, e que nelas se atenda convenientemente uma adequada e acreditada preparação ética. O sentimento jurídico ou sensibilidade jurídica “(…) y los juicios de valor que de él dimanan, se enraíza, además de en la personalidad moral e intelectual del juez - en su conciencia -, ante todo en su saber general (privado), en su experiencia vital, en su conocimiento y penetración en el mundo de los hechos jurídicos”. (E. Fuchs, 1920). 

Ninguém dotado de poucas luzes, que prefere a penumbra ou a noite em que todos os gatos são pardos, deveria ser juiz[7]. Somente “un juez bien formado, tanto teórica como éticamente, puede llevar a cabo correctamente la  valoración del Derecho, es decir, su personalidad y su carácter son esenciales si hemos de poder confiar en sus decisiones.” (E. Fuchs, 1920). E uma vez que na interpretação/decisão jurídica “no hay más garantía que la personalidad del juez, la jurisprudencia presupone una talla espiritual y moral que no está al alcance del habitual tipo medio de persona  (E. Ehrlich, 1903).

Retitude moral e solvência intelectual

Insistir que as capacidades morais e intelectuais dos magistrados são indispensáveis para poder falar de uma boa interpretação/aplicação do Direito parece-nos fundamental desde o ponto de vista de uma função ou tarefa destinada à consecução da justiça.

Isso significa que no contexto dos fatores e influências que condicionam o processo de tomada de decisão, a falta de excelência moral e de solvência intelectual não constitui nenhuma bendição. E porque “en el mundo no hay nada peor que los que la cabeza se sirven sólo para sacudirla” (B. Brecht), virtuoso é o magistrado que, atuando com extremo antifilistinismo e “em harmonia consigo mesmo”, sabe que a virtude e o bom conhecimento são coisas que se praticam, não coisas que se proclamam.

Sobre os autores
Atahualpa Fernandez

Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

Marly Fernandez

Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales pela Universitat de les Illes Balears- UIB (Espanha). Mestra em Cognición y Evolución Humana pela Universitat de les Illes Balears- UIB (Espanha). Mestra em Teoría del Derecho pela Universidad de Barcelona- UB (Espanha). Pós-doutorado (Filogènesi de la moral y Evolució ontogènica) pelo Laboratório de Sistemática Humana- UIB (Espanha). Investigadora da Universitat de les Illes Balears- UIB pelo Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog (Espanha). Membro do Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB) do Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB (Espanha).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Marly. Função judicial, retitude moral e solvência intelectual: o “agir correto” e o “lucro cessante”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4016, 30 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29867. Acesso em: 23 dez. 2024.

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