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O direito à liberdade e o "toque de recolher"

Agenda 09/08/2014 às 14:43

O presente artigo trata da medida do “toque de recolher” e de sua desconformidade com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e com a própria Constituição, visto que os direitos da criança e do adolescente são violados por esse mecanismo.

Direitos fundamentais são direito inerentes ao ser humano; é possuidor deles apenas pelo fato de existir. “Direitos do homem são aqueles que pertencem, ou deveriam pertencer, a todos os homens, ou dos quais nenhum homem pode ser despojado.” (BOBBIO, p.17, 1992). Esses direitos, tidos como fundamentais a qualquer ser humano, são garantidos pela Constituição, a “mãe” de todo o ordenamento jurídico.

A Constituição é norma hierarquicamente superior no sistema jurídico. Dela emanam direitos e garantias aos cidadãos e todas as demais normas devem estar de acordo com os princípios e valores Constitucionais, tomando-os como norte para qualquer situação, sendo eles, portanto, vinculantes.

A Convenção dos Direitos da Criança (1989), ratificada pelo Brasil em 1990, reconhece a criança como sujeito de direito, com especial proteção e prioridade. “As crianças deverão estar em primeiro lugar na escala de preocupação dos governantes; devemos entender que, primeiro, devem ser atendidas todas as necessidades das crianças e adolescentes[...]” (LIBERRATI, p. 21, 1991).

O Estatuto da Criança e do adolescente, assim como a Convenção Internacional da Criança (1989), considera os menores de 18 anos sujeitos de direito por possuírem personalidade, ou seja, são titulares de direitos e obrigações e possuem pretensão jurídica no sentido de poderem acionar o Estado e exercerem livremente seus direitos.

O direito à vida, à dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, segurança e propriedade estão previstos no artigo 5º da Carta Constitucional. O inciso XV trata especificamente sobre a liberdade do individuo, estando assim disposto: É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.  

Não obstante a isso, o Estatuto da Criança e do Adolescente também prevê o direito fundamental da liberdade em seu artigo 15: “A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis”

Assim, fica claro que tanto na Constituição quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, o direito de ir e vir livremente são garantidos, não podendo admitir violabilidade por ser, antes de tudo, um direito fundamental.

No âmbito internacional, a Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas estabelece expressamente, em seu artigo 16 que: “Nenhuma criança será objeto de interferências arbitrárias ou ilegais em sua vida particular, sua família, seu domicílio, ou sua correspondência, nem de atentados ilegais a sua honra e a sua reputação”

SOBRE O ECA

Crianças e adolescentes são indivíduos menores de 18 anos, com desenvolvimento físico e psíquico incompleto. Entende-se que o caráter desses indivíduos menores de 18 anos ainda está em formação e por isso deve-se tomar todos os cuidados necessários para educá-los. Crianças e adolescentes precisam de outras pessoas, de grupos e de instituições que garantam a sobrevivência, promoção e desenvolvimento.

Essa tarefa não é apenas responsabilidade dos pais, se inserem nesse árduo trabalho de formação de um cidadão a sociedade e, principalmente, o governo, como previsto no artigo 227 da Constituição. Por isso, é necessário a proteção, ajuda e acolhimento através de leis e políticas públicas por parte do Estado perante essas crianças e adolescentes.

 Diante desta tarefa de cuidado com as crianças e os adolescentes, surge o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma legislação específica, um ramo do direito especializado, tratando da garantia harmoniosa da formação do processo de cidadania dos jovens, objetivando proporcionar desenvolvimento sadio de acordo com os princípios condizentes com a Constituição, além de garantir seus especiais direitos, medidas protetivas e especial sociabilização em casos de infração; as chamadas medidas sócio educativas.

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Diferente do que muitos imaginam, o ECA não trata apenas da ressocialização das crianças e dos adolescentes em conflito com a lei, seus artigos também ratificam os direitos que são inerentes a eles, com objetivo de proteção integral. Dispõe ainda, que nenhuma criança e adolescente poderá ser objeto de opressão, devendo ser punida qualquer ação que viole os direitos fundamentais destes.

O ECA é estruturado em um Sistema de Garantia de Direito cujo objetivo é defender, controlar e efetivar os direitos das Crianças e dos Adolescentes em escala municipal, estadual e federal. É dividido em eixo da defesa dos direitos humanos, eixo da promoção de direitos e eixo do controle e efetivação desses direitos. Esse sistema, no entanto, segundo a própria Secretaria de Direitos Humanos, passa por dificuldades por não estar integralmente institucionalizado, o que dificulta a implementação de políticas públicas que garantem esses direitos.

O Conselho tutelar é a entidade pública responsável por salvaguardar os direitos e garantias das crianças e dos adolescentes em caso de desrespeito com as normas do ECA e da própria Constituição.

TOQUE DE RECOLHER

“Toque de recolher” é a proibição, decretada por um governo ou autoridade, de que pessoas permaneçam nas ruas após uma determinada hora. No Brasil, o Juiz da Vara da Infância e Juventude de São Paulo, reconheceu que a rua é um lugar perigoso para as crianças e os adolescentes, principalmente durante altas horas da madrugada e se desacompanhados. Então, baixou portarias judiciais determinando à polícia e ao Conselho Tutelar que recolhecem menores de 18 anos a partir de um determinado horário.

Essas portarias têm gerado discusões tanto no âmbito jurídico quanto por parte da sociedade. O Toque de Recolher viola o direito à liberdade das crianças e adolescentes. Restringir a liberdade dos jovens com o propósito de protegê-los seria retroagir ao Estado ditatorial, pois ninguém pode ter o seu direito fundamental à liberdade violado.

Violar um princípio fundamental garantido pela Constituição em detrimento de uma norma emanada de uma portaria seria não obedecer a hierarquia que o ordenamento jurídico possui, onde todas as demais normas devem estar de acordo com os valores Constitucionais.

 A Constituição deve prevalecer sobre as demais normas hierarquicamente inferiores, pois não pode haver conflito entre Constituição e norma infraconstitucional. A isso chama-se Constitucionalização do direito, ou seja, a Carta Maior e seus princípios deve ser tomada como referência sobre qualquer situação, tendo seu conteudo de forma inviolável.

Um princípio e argumento utilizado para a implementação e pelos que defendem o toque de recolher é o de que essa medida objetiva a proteção integral do menor de idade. O problema é a generalização do alcance desta medida. Um adolescente que encontra-se altas horas se embriagando, de fato, precisa ser acolhido. Mas uma criança ou um adolescente que está com seus familiares, ainda que altas horas da madrugada, não necessita que o Conselho Tutelar o retire do local, pois está sob companhia e vigilancia dos seus pais, que são os responsáveis legalmente por esse menor de idade.

Ao invés de retirar a criança em situação de rua, privando-a da liberdade, deveria se punir e fiscalizar de forma mais severa os que vendem bebida alcoolica para esses menores de 18 anos, por exemplo.

 INCONSTITUCIONALIDADE DO TOQUE DE RECOLHER

O “toque de recolher” surge, na sua essência, como uma norma inconstitucional, pois não se pode ir de encontro a princípios garantidos pela Constituição. Princípios estes que não podem ser negados aos cidadãos, pois a própria Constituição apenas admite que novas garantias sejam implementadas, não retiradas.

Não há um consenso formado a respeito do tema, há argumentos prós e contra em relação ao toque de recolher. Há, no entanto, uma certa inclinação, majoritária, diga-se de passagem, pelo reconhecimento da ilegalidade das portarias judiciais que permitem esta medida, sob o argumento de que deve-se reconhecer o direito fundamental à liberdade e que sob hipótese alguma deve ser violado. A restrição à liberdade só poderia ocorrer na hipótese de lei emanada pelo Congresso Nacional, não por uma portaria.

Os que são favoráveis ao toque de recolher, como o juiz Evandro Pelarin, de Fernandópolis, cidade onde teve a primeira comarca do País a adotar o toque de recolher e o próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que manteve no ano de 2009 o toque de recolher para menores de 18 anos em sete comarcas de Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Bahia, argumentam que utilização dessa medida não implica em qualquer violação aos direitos e garantias fundamentais de crianças e adolescentes, tendo em vista que admitem relativizações, em especial quando se trata de criança e adolescentes. Além do que, entende-se por menor aquele indivíduo que não possui discernimento completo, por isso devem ser adotadas políticas criminais e públicas sobre os menores de 18 anos.

Há, no entanto, outras medidas de proteção que podem ser adotadas sem violar direitos fundamentais dos jovens. Há outras formas mais eficientes de diminuir a violência urbana que atinge as crianças e os adolescentes, como as políticas públicas de prevenção à violência, que são medidas muito mais eficazes.

O Conanda (Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente), que é o principal órgão do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, se posicionou contra o “toque de recolher” partindo do pressuposto que portarias judiciais não podem ir de encontro princípios constitucionais, pois esse procedimento viola toda a doutrina do direito. Assim dispõe o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente:

Que todos os municípios tenham programas com educadores sociais que possam fazer a abordagem de crianças e adolescentes que se encontrem em situações de risco, em qualquer horário do dia ou da noite, visando os encaminhamentos e atendimentos especializados previstos na Lei;

Que o Conselho Nacional de Justiça inclua em sua pauta de discussões o Toque de Recolher, objetivando orientar as Varas da Infância e Juventude sobre a ilegalidade e inconstitucionalidade do procedimento.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para a doutrina, os direitos fundamentais são sempre plenos e absolutos diante de qualquer situação. A medida do “toque de recolher” além de privar crianças e adolescentes do seu direito de ir e vir, do seu direito fundamental à liberdade, o priva de frequentar lugares comunitários. O procedimento submete crianças e adolescente ao constrangimento, humilhação e vexame. É inconstitucional, violando todo ordenamento jurídico e principalmente os direitos fundamentais dos menores de 18 anos.

Crianças e adolescentes não são objetos de intervenção do Estado, devem ser protegidos e amparados por ele. Um menor de idade só poderia ser recolhido, tendo sua liberdade restringida, por motivos excepcionais dispostos na lei, como em caso de apreensão em flagrante. Privá-los da sua liberdade é não permitir que eles se desenvolvam psíquico e socialmente; é não deixá-los se prepararem e amadurecerem para o seu futuro.

O toque de recolher é passível de ação inconstitucional, isso porque ninguém é obrigado a fazer ou eixar de fazer algo senão em virtude de lei, e a portaria não tem força de lei. A medida não diminui a violência, é uma forma de mascarar que o poder público está atuando na proteção das crianças e dos adolescentes. Políticas públicas, se efetivadas, iriam suprir a necessidade da existência do “toque de recolher”.

O convívio social é importante para crianças e adolescentes, pois os ensinam a lidar com situações de riscos e conflitos sociais e ajudam a  discernir o certo do errado, contribuindo, dessa forma, para a construção do caráter desse menor de idade. De fato, durante altas horas da madrugada, a rua se torna um ambiente perigoso, mas melhorar a segurança nas ruas seria uma medida muito mais eficaz a ser tomada do que privar um menor de participar de certos ambientes durante certo período.

REFERÊNCIAS

GUERRA, Sidney. Hermenêutica, ponderação e colisão de direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007.

BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. 11. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
LIBERATI, Wilson Donizeti. O estatuto da criança e do adolescente comentado. São Paulo: Malheiros, 2001.

ALVES, Isabela Faustino. O reconhecimento dos direitos da criança a partir da evolução do reconhecimento dos direitos humanos. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/23008/o-reconhecimento-dos-direitos-da-crianca-a-partir-da-evolucao-do-reconhecimento-dos-direitos-humanos. Acesso em: 19, maio.2013


             BRASIL. Lei nº 8.069/90. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Senado Federal, Brasília, 2011.

Sobre o autor
Larissa Cerqueira Ferraz

Acadêmica de Direito do Centro Universitário do Pará. Belém-Pa.

Informações sobre o texto

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