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A natureza jurídica da outorga onerosa do direito de construir

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Agenda 12/10/2014 às 14:33

Qual a natureza jurídica da outorga onerosa do direito de construir? Há divergência acerca da natureza deste instrumento urbanístico, previsto na Lei Federal n. 10.257/2001, em tratar-se ela de um ônus ou de uma obrigação.

Resumo: O presente artigo analisa a natureza jurídica da Outorga Onerosa do Direito de Construir, instrumento de política urbana previsto na Lei Federal nº 10.257 de 10 de julho de 2001 – Estatuto da Cidade. Além das abordagens acerca do instituto em estudo, serão analisados os instrumentos que são a base da outorga onerosa do direito de construir, sendo eles: a função social da propriedade, o ônus pago pelo proprietário em razão do direito de construir acima do coeficiente de aproveitamento adotado pelo poder público municipal, mediante a contraprestação paga pelo beneficiário. Isto posto, verifica-se, a aplicação e efetividade deste instrumento.

Palavras–chave: Solo criado. Função Social da Propriedade. Direito de Construir.


1 INTRODUÇÃO

A partir da Revolução Industrial gerou-se a chamada urbanização, que segundo José Afonso da Silva, é o crescimento desproporcional da área urbana superior à população rural[3]. Com isso, o Direito Urbanístico começou a ter um papel inquestionável na ordenação do ambiente urbano, muito embora já estivesse presente desde a Roma antiga.

Em decorrência da urbanização, precisou o Poder Público criar instrumentos eficazes a fim de controlar o crescimento desordenado das cidades. Desta forma, com o advento da Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001, dentre os instrumentos de política urbana, no artigo 4º, inciso IV, alínea n, originou-se a outorga onerosa do direito de construir, embora está ferramenta urbanística já houvesse sido originada muito antes, através da chamada Carta de Embu, em 11 de dezembro de 1976.

A outorga onerosa do direito de construir é a criação de pisos artificiais acima da área do terreno, ou seja, do coeficiente de aproveitamento básico. Porém, para construir acima do coeficiente de aproveitamento básico, será necessário pagar uma contraprestação a municipalidade, cuja finalidade será restaurar o equilíbrio urbano, garantindo um desenvolvimento sustentável ao município, bem como melhores condições a todos os habitantes.

Será analisada, então, a natureza jurídica desta contraprestação paga pelo proprietário que pretende adquirir índice construtivo, dividindo-se a doutrina em duas premissas: uma obrigação ou um ônus.

Serão delineados, ainda, tópicos pertinentes à função social da propriedade, direito de construir, assuntos que são elementares ao tratar do tema, eis que estes são os pilares que dão sustentação ao estudo da matéria.

A partir dessa divergência doutrinária, portanto, o presente artigo busca explanar alguns questionamentos, tendo as seguintes dimensões jurídicas: A Outorga Onerosa do Direito de Construir é uma decorrência do direito de propriedade? Em caso negativo, seria um ônus de que natureza? Quais os efeitos da outorga onerosa do direito de construir, no que tange a contraprestação em pecúnia? Qual a natureza jurídica da outorga onerosa do direito de construir?

2 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A Constituição Federal de 1988 originou em seu texto, dentre outros direitos insculpidos no artigo 5º, o da função social da propriedade. Segundo Tepedino, a função social da propriedade compreende-se:

A propriedade, portanto, não seria mais aquela atribuição de poder tendencialmente plena, cujos confins são definidos externamente, ou, de qualquer modo, em caráter predominantemente negativo, de tal modo que, até uma certa demarcação, o proprietário teria espaço livre para suas atividades e para a emanação de sua senhoria sobre o bem. A determinação do conteúdo da propriedade, ao contrário, dependerá de centros de interesses extraproprietários, os quais vão ser regulados no âmbito da relação jurídica de propriedade.

[...]

Tal conclusão oferece suporte teórico para a correta compreensão da função social da propriedade, que terá, necessariamente, uma configuração flexível, mais uma vez devendo-se refutar os apriorismos ideológicos e homenagear o dado normativo. A função social modificar-se-á de estatuto para estatuto, sempre em conformidade com os preceitos constitucionais e com a concreta regulamentação dos interesses em jogo[4].

No rol do artigo 5º[5] da Carta Magna de 1988, em seu inciso XXII, garante o direito de propriedade, e, por conseguinte, no inciso XXIII, dispõe que a propriedade atenderá a sua função social. Além das garantias asseguradas no artigo 5º, está disposta no artigo 170[6], inciso III, da Constituição Federal, a função social da propriedade, dentre os princípios norteadores da ordem econômica.

O direito de propriedade encontra-se amparado, na lei infraconstitucional, no artigo 1228[7] do Código Civil de 2002, tendo o proprietário o direito de usar, gozar e dispor da coisa, ou seja, de origem romana, derivam das palavras: jus utendi (direito de usar), jus fruendi (direito de gozar), jus abutendi (direito de dispor da coisa), constituindo-se os elementos subjetivos do direito de propriedade, pois objetivamente, a propriedade deve atender a sua função social.

Desta forma, o atendimento da propriedade a sua função é tão importante, que no artigo 182, da Constituição vigente, a política urbana[8] cumpre sua função social, quando atende aos requisitos condicionantes de ordenação da cidade, contidas no Plano Diretor.

Conforme se pode analisar, a Constituição atual deu tamanha importância à função social da propriedade, que nos casos de não atendimento ao que dispõe o plano diretor, pode o município aplicar as sanções previstas no artigo 182, §4º, denominando-se tais sanções de desapropriação-sanção[9], a fim de que o proprietário dê alguma utilidade a sua propriedade, caso não o faça, corre o risco de perdê-la.

Embora a Constituição Federal preveja em seus artigos 182 e 183 o tratamento acerca da política urbana, faltava lei que disciplinasse os planos de desenvolvimento e a especificação destes instrumentos, pois sem uma lei específica que tratasse do assunto, a função social da propriedade tornava-se vazia, no que tange aos seus conteúdos[10]. Diante desta necessidade, dentre outras importantes modificações na função social da propriedade trazida pela Constituição Federal de 1988, em 10 de julho de 2001 foi introduzida em nosso ordenamento jurídico, a Lei Federal nº 10.257, nominada como Estatuto da Cidade, destinada a regularizar as diretrizes gerais de política urbana, fundadas nos artigos 182 e 183 da Constituição.

A propriedade deixa de servir exclusivamente à esfera do titular, devendo atender aos direitos inerentes ao proprietário, bem como resguardar as garantias constitucionais asseguradas à coletividade. Neste sentido expõe Dallari “a propriedade deve atender a um interesse coletivo para que possa, no atendimento do interesse individual, ser garantida pelo ordenamento jurídico”[11]. Sendo assim, a propriedade deve atender ao que dispõe as normas da coletividade, ou seja, deve atender a função social da propriedade, consequentemente, o proprietário deve obedecer a certos requisitos, a fim de preservar o ambiente urbano[12].

Equivale dizer, então, que “não há, no texto constitucional brasileiro, garantia à propriedade, mas tão-somente garantia à propriedade que cumpre a sua função social”[13], estando a propriedade condicionada ao atendimento de sua função social. Portanto, a propriedade é protegida pelo ordenamento jurídico brasileiro somente se houver função.

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3 DIREITO DE CONSTRUIR

Conforme Meirelles “o fundamento do direito de construir está no direito de propriedade”[14]. Por conseguinte, José Afonso da Silva, dispõe que “o direito de construir constitui uma das faculdades do direito de propriedade”[15]. Neste sentido, baseado nas ideais dos autores, pode-se dizer que o direito de construir é o exercício do que dispõe o artigo 1.228 do Código Civil, qual seja, o direito de usar, gozar e dispor de seu bem, podendo, assim, transformá-la, edificá-la ou beneficiá-la[16], a fim de que possa ser valorizado o imóvel, e, consequentemente, atender a função social da propriedade, ou seja, dando utilidade ao bem, exercendo o proprietário, um direito inerente a ele.

Diferentemente dos posicionamentos dos autores acima mencionados, outra parte da doutrina, no qual se inclui Eros Roberto Grau, dispõem que há distinção entre o direito de construir e o direito de propriedade, pois o direito de construir não pertenceria exclusivamente ao proprietário, razão pela qual o Poder Público, mediante autorização ou concessão, poderia conceder ou autorizar a construção, já que ele que é o titular de tal direito[17]. Posto isto, vale colacionar as ideias da corrente doutrinária que ora se trata:

[...] haveria uma separação entre as duas dimensões, sendo subtraída dos atributos de uso, gozo e disponibilidade da propriedade urbana a prerrogativa de sobre ela construir qualquer edificação. O direito de construir sobre ou sob a propriedade não integraria o domínio da coisa, sendo titularizado pela coletividade, e, como tal, somente o Poder Público poderia outorgá-lo ao proprietário, observadas as normas urbanísticas[18].

O direito de edificar não fica adstrito apenas ao solo propriamente dito, em conformidade com o art. 1.229[19] do Código Civil vigente, podendo a propriedade ser abrangida pelo subsolo, bem como o espaço aéreo, respeitando as normas administrativas. Assim sendo, a liberdade de edificar é a regra, sendo exceção a imposição de limitações ao direito de construir, no qual fica condicionado ao que dispõe à lei[20].

Vale dizer que a propriedade pode ser construída de acordo com a vontade do proprietário, contudo, devem ser observados os parâmetros da legislação municipal, ficando-o impossibilitado de construir a certa altura, de forma a atender às normas convencionadas no plano diretor.

Destarte, conforme será abordado, o proprietário tem o direito de edificar em sua propriedade sem pagar nenhuma contraprestação ao poder público municipal. No entanto, acima do coeficiente de aproveitamento básico, será necessário o proprietário pagar a fim de que possa ter o direito de construir, respeitando o coeficiente de aproveitamento máximo, convencionado em lei específica. A partir desta premissa que consistira a outorga onerosa do direito de construir, e por consequência, a discussão acerca da natureza jurídica deste instrumento.

4 CONSIDERAÇÕES SOBRE O PLANO DIRETOR

 

Segundo prevê a Constituição Federal, em seu artigo 182, parágrafo 1º, “o plano diretor [...] é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”. O plano diretor é obrigatório, conforme dispõe a Carta Magna e o Estatuto da Cidade, as cidades com mais de vinte mil habitantes.

Além da quantidade mínima de habitantes necessária para criação de um plano diretor, o Estatuto da Cidade veio ressaltar a importância dessa diretriz de ordenação urbana, em seu artigo 41, elencando outros requisitos a serem observados, tendo em vista a sua obrigatoriedade, quando as cidades: forem integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas; onde o Poder Público Municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no § 4º do artigo 182 da Constituição Federal; forem integrantes de áreas de especial interesse turístico; estiverem inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional[21].

Através do Plano Diretor se define os contornos da função social da propriedade urbana, assim como da política urbana municipal[22]. No que diz respeito à matéria em que se trata o presente artigo científico, tem uma extrema relevância, sendo que para um município instituir a outorga onerosa do direito de construir é necessário estar previsto no plano diretor, e através de lei específica, serão estabelecidos os meios de cobrança do referido instrumento, nos termos do artigo 30 do Estatuto da Cidade.

Pode se dizer, então, que sem a previsão do instrumento urbanístico no plano diretor sua aplicação e efetividade serão nulas.

5 OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE CONSTRUIR

A outorga onerosa do direito de construir foi introduzida no Brasil por meio das discussões feitas no Seminário da Fundação Prefeito Faria Lima (também promovido pelo CEPAM – Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal), no qual foram discutidas as questões em torno do solo criado. Desta forma, surgiu a chamada Carta de Embu[23], nome utilizado uma vez que a cidade onde ocorreram as discussões, foi em Embu, São Paulo. A Carta de Embu, foi aprovada em 11 de dezembro de 1976, sendo um grande marco para os juristas, arquitetos e urbanistas, já que não havia nenhum documento que disciplinasse o solo criado, apenas o conhecimento do instituto, baseado nas ideias originadas da lei francesa, mais especificamente da noção de plafond legal de densité (teto legal de densidade)[24].

A Lei Federal nº 10.257 regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, sendo que no artigo 4ª, inciso V, alínea “n”, da lei supramencionada, encontra-se disposto à outorga onerosa do direito de construir, no rol de instrumentos de política urbana, assim como nos artigos 28 a 31.

Destarte, uma vez analisados os aspectos introdutórios quanto ao surgimento do instrumento, analisaremos o estudo da matéria propriamente dita. Para iniciarmos o estudo da outorga onerosa do direito de construir, tema objeto do trabalho em questão, é imprescindível conceituarmos o instituto, também chamado de solo criado[25].

Para Eros Grau, a outorga onerosa do direito de construir seria aquela construção praticada acima do coeficiente de aproveitamento, conforme trecho de seu conceito abaixo:

A noção de solo criado desenvolveu-se inicialmente a partir da observação da possibilidade de criação artificial de área horizontal, mediante a sua construção sobre ou sob o solo natural.

[...]

Desenvolvidos, no entanto, novos estudos urbanísticos a propósito da idéia, passou-se a entender como solo criado o resultado de construção praticada em volume superior ao permitido nos limites do coeficiente único de aproveitamento[26].

O coeficiente de aproveitamento, conforme dispõe o parágrafo 1º, do artigo 28, do Estatuto da Cidade, “é a relação entre a área edificável e a área do terreno”. Assim sendo, cabe mencionar o conceito de coeficiente de aproveitamento, segundo Eros Roberto Grau, um dos juristas que introduziu no Brasil a discussão sobre solo criado como um instrumento urbanístico:

O coeficiente de aproveitamento expressa a relação entre a área construída (isto é, a soma das áreas dos pisos utilizáveis, cobertos ou não, de todos os pavimentos de uma edificação) e a área total do terreno em que a edificação se situa[27].

O parágrafo 2º, do artigo 28, do Estatuto da Cidade, dispõe que “o plano diretor poderá fixar coeficiente de aproveitamento básico único para toda a zona urbana ou diferenciado para áreas específicas dentro da zona urbana”. O município poderá fixar em toda a sua área urbana um coeficiente único, ou coeficientes diferenciados em certas áreas específicas. Por exemplo, em uma área residencial, poderá ser fixado um coeficiente único igual a 1,0; entretanto, em áreas para fins comerciais, no centro de determinado município, em razão das atividades exercidas, poderá estabelecer-se um coeficiente diferenciado. Todavia, há desigualdade de tratamento quando se adota coeficiente diferenciado para determinadas áreas, conforme dispõe José Afonso da Silva:

Quando a legislação de uso e ocupação do solo fixa coeficientes variáveis, como têm que ser, para os vários terrenos edificáveis, isso gera desigualdade de tratamento entre seus proprietários, porquanto os que podem construir com coeficiente mais elevado têm seus terrenos mais valorizados[28].

Na Lei nº 10.257/2001 estabelece-se dois limites de coeficientes: o básico e o máximo. O coeficiente de aproveitamento básico a ser estabelecido por cada município, através do plano diretor[29], é aquele índice construtivo no qual o proprietário pode construir sem ser preciso onerar ao poder público municipal. Já o coeficiente de aproveitamento máximo, está previsto no parágrafo 3º, do artigo 28, do Estatuto da Cidade, onde dispõe que “o plano diretor definirá os limites máximos a serem atingidos pelos coeficientes de aproveitamento, considerando a proporcionalidade entre a infraestrutura existente e o aumento de densidade esperado em cada área”. Sendo assim, o plano diretor deve estabelecer qual será o coeficiente de aproveitamento máximo, levando em consideração a infraestrutura e a densidade esperada para aquela área.

Ocorre que não se estabelece na Lei qual será o coeficiente de aproveitamento básico, ou seja, qual a área a ser construída sem ser preciso onerar ao poder público municipal, para poder ter o direito de construir acima do coeficiente adotado. Para exemplificar, podemos mencionar a seguinte situação: um terreno de 450m2, que tenha coeficiente de aproveitamento básico igual a 1 (um), equivale dizer que o proprietário poderá construir mais uma vez a área de seu terreno, ou seja, 450m2. Acima deste coeficiente de aproveitamento básico, a construção acima terá de ser pago, mediante uma contraprestação ao município, tendo como parâmetro o coeficiente de aproveitamento máximo, que será regulamentado pelo plano diretor, em toda a municipalidade, ou por áreas, estipulando um limite máximo a ser construído.

Acerca do assunto, Eros Grau dispõe que “tudo quanto se construa, pois, além do quantum convencionado em tal coeficiente, inclusive no andar aéreo, é entendido como solo criado”[30], ou seja, tudo que for construído acima do coeficiente de aproveitamento básico será considerado “solo criado”.

Segundo artigo 31 do Estatuto da Cidade, a contraprestação paga pelo beneficiário ao município é destinada a compensar a municipalidade pelo adensamento populacional, a serem utilizados nos fins previstos dos incisos I ao IX, do artigo 26, ou seja, regularização fundiária, execução de programas e projetos habitacionais de interesse social, constituição de reserva fundiária, ordenamento e direcionamento da expansão urbana, implantação de equipamentos urbanos e comunitários, criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes, criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental e proteção de áreas de interesse histórico, cultural e paisagístico.

Quanto aos recursos auferidos em razão da outorga onerosa do direito de construir, deve o Administrador Público atentar-se aos fins previstos no artigo 31, como acima se destacou. E caso seja dada destinação diversa do qual dispõe o artigo 31, a fim de evitar desvios de finalidade e dilapidação indevida dos recursos públicos, o próprio artigo 52, inciso IV, do Estatuto da Cidade, dispõe que incorrerá o Prefeito nas sanções previstas na Lei n. 8.429 de 2 de junho de 1992, ou seja, improbidade administrativa[31].

6 A DISCUSSÃO ACERCA DA CONTRAPRESTAÇÃO PAGA PELO BENEFICIÁRIO

Conforme se mencionou, para que o proprietário possa construir acima do coeficiente de aproveitamento básico, é necessário que ele efetue o pagamento de uma contraprestação ao ente público municipal, a fim de que possa ter o direito de construir, devendo pagar a título de outorga onerosa cada andar construído verticalmente, ou seja, acima do coeficiente de aproveitamento básico, por conseguinte, deve respeitar o coeficiente de aproveitamento máximo estipulado no plano diretor.

A discussão acerca da receita auferida em razão da outorga onerosa do direito de construir está presente nas doutrinas e nas jurisprudências de tribunais, dividindo-se os autores no que tange a contraprestação, em tratar-se ela de um ônus ou de uma obrigação. Para os doutrinadores, como Luiz Henrique Antunes Alochio, entendem tratar-se de uma obrigação. A corrente doutrinária diversa daquela, no qual se encontra o doutrinador Eros Grau, entendem tratar-se de um ônus, em que o requisito compulsoriedade não está presente[32]. Neste sentido, se posiciona Grau, acerca da discussão:

Tributos são receitas que encontram sua causa em lei; daí a sua definição como receitas legais. No caso em espécie, estamos diante de um ato de aquisição de um direito, não compulsório. Trata-se de ato voluntário, no qual o requisito da vontade das partes – setor público e particular – substitui o requisito da imposição legal. A remuneração correspondente, pois, é contratual e não legal[33].

De modo diverso, Luiz Henrique Antunes Alochio, entende não tratar-se a contraprestação de um ônus, e sim de uma obrigação, dividindo-a em ato devido e ato ilícito. Ato devido, como aquele em que caso queira construir, deverá adquirir do ente público municipal; já o ato ilícito, caso o proprietário construa sem a aquisição do potencial construtivo, incorrerá em ilícito[34].

Por vezes podemos nos confundir acerca da distinção dos posicionamentos dos doutrinadores, eis que ambos dispõem se os construtores quiserem construir deverão adquirir índice construtivo, divergindo nos aspectos atinentes a natureza jurídica do instrumento. De acordo com Alochio, “certamente o solo criado não vincula a opção da vontade do construtor, mas, se este desejar construir acima do limite do coeficiente deverá adquirir o potencial construtivo”[35]. Deste modo, a distinção dos posicionamentos daqueles que defendem tratar-se a contraprestação de um ônus, é justamente a expressão – deverá –, tratando-se de uma obrigação em que há a imposição legal.

Consoante dispõe Grau, o requisito vontade das partes substitui o requisito imposição legal, não havendo o que se falar em obrigação, haja vista que o proprietário se quiser construir acima do coeficiente de aproveitamento básico, deverá adquirir do poder público índice construtivo, caso não queira, não é obrigado a pagar, e, por consequência, ficará impossibilitado de construir.

Desta forma, analisa-se na jurisprudência, abaixo colacionada, o julgamento do primeiro Recurso Extraordinário que tratou do tema solo criado, em 06.03.2008, no qual foi relator o Ministro Eros Roberto Grau, grande estudioso na matéria e fundador das ideias do solo criado no Brasil, inclusive colaborador ativo da Carta de Embu.

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. LEI N. 3.338/89 DO MUNICÍPIO DE FLORIANÓPOLIS/SC. SOLO CRIADO. NÃO CONFIGURAÇÃO COMO TRIBUTO. OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE CRIAR SOLO. DISTINÇÃO ENTRE ÔNUS, DEVER E OBRIGAÇÃO. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. ARTIGOS 182 E 170, III DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. SOLO CRIADO Solo criado é o solo artificialmente criado pelo homem [sobre ou sob o solo natural], resultado da construção praticada em volume superior ao permitido nos limites de um coeficiente único de aproveitamento. 2. OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE CRIAR SOLO. PRESTAÇÃO DE DAR CUJA SATISFAÇÃO AFASTA OBSTÁCULO AO EXERCÍCIO, POR QUEM A PRESTA, DE DETERMINADA FACULDADE. ATO NECESSÁRIO. ÔNUS. Não há, na hipótese, obrigação. Não se trata de tributo. Não se trata de imposto. Faculdade atribuível ao proprietário de imóvel, mercê da qual se lhe permite o exercício do direito de construir acima do coeficiente único de aproveitamento adotado em determinada área, desde que satisfeita prestação de dar que consubstancia ônus. Onde não há obrigação não pode haver tributo. Distinção entre ônus, dever e obrigação e entre ato devido e ato necessário. 3. ÔNUS DO PROPRIETÁRIO DE IMÓVEL URBANO. Instrumento próprio à política de desenvolvimento urbano, cuja execução incumbe ao Poder Público municipal, nos termos do disposto no artigo 182 da Constituição do Brasil. Instrumento voltado à correção de distorções que o crescimento urbano desordenado acarreta, à promoção do pleno desenvolvimento das funções da cidade e a dar concreção ao princípio da função social da propriedade [art. 170, III da CB]. 4. Recurso extraordinário conhecido, mas não provido[36].

Nesta linha de entendimento, se posicionou Menezes Direito, na decisão do Recurso Extraordinário nº 226942, em 21.10.2008, entendendo tratar-se a contraprestação, a título de outorga onerosa do direito de construir, como um meio de compensação devido à sobrecarga da aglomeração urbana, reafirmando o entendimento de Grau. Vejamos a ementa:

EMENTA: Tributário. Parcela do solo criado: Lei municipal nº 3.338/89. Natureza jurídica. 1. Não é tributo a chamada parcela do solo criado que representa remuneração ao Município pela utilização de área além do limite da área de edificação. Trata-se de forma de compensação financeira pelo ônus causado em decorrência da sobrecarga da aglomeração urbana. 2. Recurso extraordinário a que se nega provimento[37].

Importante salientar, que as jurisprudências acima mencionadas, reafirmam o entendimento, no que tange a contraprestação, tratando-se de um ônus, afastando a ideia de tratar-se de uma obrigação, pois um dos elementos que regem a relação, reitero, é a vontade das partes, público e privada, não havendo nenhuma imposição quanto à vontade do construtor. Portanto, tem o proprietário a liberalidade em adquirir o índice construtivo, ou de abster-se, entretanto, não terá o direito de construir acima do coeficiente de aproveitamento básico caso não efetue o pagamento da contraprestação.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A função social da propriedade juntamente com o direito de construir são o embasamento necessário para que se possa dispor sobre o instrumento urbanístico, objeto de estudo deste artigo científico, visto que se não houvesse ambos os institutos, tampouco haveria de se falar em outorga onerosa do direito de construir.

Conquanto a função social da propriedade já estivesse presente nas constituições anteriores, não havia tamanha extensão se comparado a Constituição atual. A partir da Constituição Federal de 1988, a função social da propriedade começou a ter um papel inquestionável, estando presente nos mais diversos dispositivos legais, servindo de parâmetro a ser obedecido.

No tocante ao questionamento acerca de ser a outorga onerosa do direito de construir uma decorrência do direito de propriedade, incontestável a presente assertiva. A outorga onerosa do direito de construir, deste modo, é uma decorrência do direito de propriedade, pois se não houvesse a propriedade também não haveria de se falar no presente instrumento urbanístico.

Decorrente da urbanização, o crescimento desordenado das cidades e a necessidade de aglomerar cada vez mais pessoas em áreas superpostas nas grandes metrópoles, considerando que o espaço urbano torna-se cada vez mais escasso, fizeram, então, o legislador criar instrumentos para regularizar estas situações. Resultante desta necessidade, através do Estatuto da Cidade, em seu artigo 4º, inciso V, alínea “n”, ficou previsto em nosso ordenamento jurídico a outorga onerosa do direito de construir, pois até a sua entrada em vigor não havia previsão legal.

A outorga onerosa do direito de construir, dentre outros instrumentos urbanísticos previstos no Estatuto da Cidade, conforme se abordou, tem por finalidade compensar a municipalidade pelo adensamento populacional, assim, suas cobranças são destinadas ao reequilíbrio do espaço urbano, garantindo a todos os habitantes qualidade de vida.

A outorga onerosa do direito de construir é um instrumento urbanístico de extrema importância para o ordenamento do solo urbano, tendo em vista a sua capacidade de criar espaços adequados para aquela área específica ou para toda a cidade, através da fixação de coeficientes únicos e diferenciados. Contudo, devem ser observados os requisitos necessários para sua implementação como a relação entre a infraestrutura existente e a densidade urbana, obedecendo aos parâmetros do coeficiente de aproveitamento único.

No que tange a discussão acerca da natureza jurídica da outorga onerosa do direito de construir, prevalece o entendimento jurisprudencial de tratar-se de um ônus, tendo em vista que não é compulsório o seu pagamento, claro que caso não haja o pagamento da contraprestação não será permitido a construção acima do coeficiente de aproveitamento básico.

Portanto, com base nos entendimentos colacionados pelo Supremo Tribunal Federal, afastam-se entendimentos contrários, em tratar-se de uma obrigação, pois a contraprestação não é um dever, uma vez que o município não obriga o proprietário ao pagamento, mas caso queira construir deve efetuar a contrapartida, cuja finalidade será, exclusivamente, para o benefício da municipalidade.

Sobre o autor
Rodrigo Da Silveira Ribeiro

Advogado. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Cenecista de Osório - UNICNEC (antiga Faculdade Cenecista de Osório - FACOS). Especialista em Direito Civil e Prática Processual Civil pelo Complexo de Ensino Superior Meridional - IMED (Campus Porto Alegre).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Rodrigo Silveira. A natureza jurídica da outorga onerosa do direito de construir. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4120, 12 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30192. Acesso em: 5 nov. 2024.

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