RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar a relação entre a garantia de direitos fundamentais, realizada pelos tribunais, e a manutenção de um espaço de deliberação democrática, proporcionada pelo Parlamento. Essa relação é permeada por uma dinâmica de cooperação e conflito, segundo a qual cada um dos Poderes estatais busca manter seu orbe de competência. A lógica dessa espécie de “xadrez constitucional”, contudo, deve ser pautada não pela prevalência de algum âmbito do jogo jurídico político, mas pelos ganhos conjuntos de um diálogo continuado entre Ágora legislativa e Fórum judicial. Desse modo, esse trabalho aponta os riscos de uma juridificação excessiva, propugnado em seu lugar um ativismo judicial autocontido que adote uma estratégia institucionalista voltada à valorização de uma esfera pública pluralista e genuinamente democrática.
Palavras-chave: direitos fundamentais; relações interpoderes; juridificação social; ativismo judicial; institucionalismo democrático.
INTRODUÇÃO
A Constituição realiza-se diuturnamente a partir da materialidade vivida pelo corpo social, sendo seus preceitos concretizados especialmente a partir da interação entre os Poderes constituídos[1]. Sucede que, tanto no espaço de interpretação jurídica como de deliberação política, há certa zona de penumbra sobre o campo de incidência das modalidades deônticas de permissão, vedação e obrigatoriedade. Esse espectro de incerteza engendra concepções por vezes conflitantes entre magistrados e parlamentares acerca dos limites e escopo da jurisdição constitucional. De um lado, coloca-se o ativismo judicial voltado à consecução de direitos fundamentais, do outro a necessidade de deferência democrática às opções legislativas.
Nesse contexto, no presente artigo pretende-se, inicialmente, traçar os contornos do espaço de discricionariedade jurídica e a peculiaridade da função de guarda da Constituição. Em seguida, analisar-se-ão as origens e potencialidades da virada juriscêntrica da interpretação constitucional nas últimas décadas, sem descurar de seus riscos e limites. Por derradeiro, serão matizadas as possibilidades de uma confluência interpoderes recíproca e construtiva refratárias a tendências judiciocratas. Busca-se, outrossim, traçar uma estratégia relacional dialógica entre Legislativo e Judiciário voltada à consecução da ordem constitucional de um Estado de Direito (Rechstaat).
2 CONFIGURAÇÃO DO TABULEIRO
2.1 CAMPOS DE DISCRICIONARIEDADE
As relações entre magistrados e parlamentares, enxadristas da Constituição, não são relegadas ao arbítrio, mas encontram suas possibilidades de atuação sujeitas a determinados condicionantes jurídico-políticos: as regras do jogo democrático contidas no tabuleiro constitucional. Do ponto de vista do magistrado, a discussão que tradicionalmente se coloca é o âmbito de discricionariedade do processo interpretativo.
Nesse quadro, Hans Kelsen (1999) em sua Magnum opus, Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre), trata a norma jurídica como um antecedente lógico e inafastável de uma norma de decisão. À interpretação do texto, sucede-se sua concretização, ao bosquejar-se a norma jurídica a caso concreto.
Nesse processo biface, interliga-se um ato de conhecimento interpretativo a um ato de vontade concretizador, ponto culminante do processo de interpretação, carreado pelo “intérprete autêntico”, o órgão estatal aplicador/criador do direito[2]. À luz do paradigma kelseniano, inserida dentro da moldura normativa, diversas interpretações são possíveis de serem gnosiologicamente deduzidas, entre as quais uma há de ser volitivamente escolhida pelo intérprete. Esse inarredável espaço de conformação decisória refoge ao campo epistemológico da Ciência do Direito. Pode-se dizer que em Kelsen, a discricionariedade é elemento intrínseco, porém estranho à Ciência do Direito. Sabe-se bem que Herbert Hart (2007), partindo desse entendimento kelseniano, e pautado por um modelo normativo puro de regras, de cariz subsuntivo, concebe que ao decidir casos de maior complexidade, cabe ao intérprete recorrer a elementos externos ao ordenamento jurídico. A discricionariedade para Hart, embora restrita aos casos difíceis (hard cases), mantém nestes, os critérios de decisão judicial fora do controle de racionalidade da dogmática.
Contraponde-se a essa postura, Ronald Dworkin aduz que, para além de regras, dirigidas por uma lógica de tudo ou nada (all or nothing), a Ciência do Direito é regida por princípios, preceitos normativos que, para além da validade, incorporam a dimensão de sopesamento (DWORKIN, 2002). Desse modo, a atribuição argumentativa de maior peso a um dado princípio em detrimento de outro em certo caso concreto, não afeta sua dimensão de validade. Ou seja, o afastamento de um princípio operacionaliza-se mediante ponderação (Abwägung), de maneira ad hoc, não sendo excluído do ordenamento do qual decorre. As decisões jurídicas, mesmo em hard cases operam-se, portanto, mediante critérios jurídicos. Desse modo, o modelo normativo misto de regras e princípios tal qual proposto por Dworkin e brilhantemente desenvolvida por Robert Alexy, parece ser um instrumental mais adequado para analisar a decidibilidade constitucional. Em termos dogmático-estruturais, Robert Alexy (2008) aduz ser possível auferir uma escala racional de afetação dos direitos em três níveis[3]: leve (l), sério (s) e moderado (m).
Nesses termos, uma intensidade (I) de afetação moderada (m) de um dado princípio (P1), sobre as condições fáticas C, pode ser descrito por: IP1C (m). No caso de colisão, prevalece o preceito cujo grau de afetação seja in concreto maior que seu análogo contraposto. Entrementes, podem ocorrer situações concretas em que o grau de afetação entre dois princípios seja de igual intensidade. É o que sucede quando, em dado caso concreto de colisão de princípios, a realização de um princípio (P1), enseja lesão tão séria (s) a outro princípio contraposto (P2), quanto a lesão que seria acometida a P1 no caso de realização de P2. Essa situação pode ser descrita pela seguinte fórmula: IP1C (s) / IP2C (s).
Nesses casos, a decisão favorável a um ou outro princípio será indiferente no plano normativo. Essa discricionariedade estrutural, contudo, difere da discricionariedade decisória proposta por Hans Kelsen ou Herbert Hart. Embora as relações de pesos correspondentes (l/l, m/m, s/s) torne possível tanto a prevalência de P1 ou P2, ainda assim o processo de decisão interpretativa encontra-se dentro do sistema jurídico e não se encontra fora dele. A questão que se coloca aqui é o risco que envolve a instrumentalização interpretativa pelo magistrado seja de uma concepção de discricionariedade decisória kelseniana/hartiana, seja de uma concepção de discricionariedade estrutural dworkiana[4]/alexyana, em detrimento das deliberações políticas do legislador.
Nessa seara, não se pode perder de vista que o próprio mundo da vida subjacente ao Direito envolve um inarredável campo de incerteza (HABERMAS, 2003). Na lição de Robert Alexy (2008), essa zona gris pode ser de natureza empírica ou normativa. No plano empírico, a incerteza refere-se aos prognósticos sociais decorrentes do conteúdo de um dado direito, se positivos ou negativos. Esse é o caso, por exemplo, da discussão sobre a (des) criminalização da cannabis sativa[5]. No plano normativo, a incerteza refere-se à busca de um ponto de equilíbrio entre interesses fundamentais contrapostos. Esse é o caso, por exemplo, da discussão acerca da flexibilização da legislação trabalhista[6]. Nesse ambiente de incerteza, há uma precedência deliberativa ao Parlamento, enquanto representante do Povo, detentor da soberania no Estado de Direito (art. 1º, §1º CF). Pode-se falar que há, na democracia, um princípio formal de discricionariedade cognitiva ao legislador na definição dos direitos constitucionais.
Trata-se da existência de um espaço de deliberação política do Parlamento que deve ser levado em necessariamente em consideração pelo intérprete, em vista da própria estruturação democrática do Estado de Direito. Este âmbito de discricionariedade cognitiva remete a uma dimensão pré-jurídica de tez eminentemente legislativa onde se perfilam decisões políticas nodulares que expressam o entendimento histórico-singular de dada sociedade, sendo, portanto, juridicamente insidicáveis.
Deve-se salientar, não obstante, que mesmo esse espaço de atuação legislativa não é ilimitado, “pois existem determinantes constitucionais heterônomas” (CANOTILHO, 2008, p.58). O próprio Poder Constituinte originário encontra-se restringido por uma espécie de “supraconstitucionalidade autogenerativa”, certa “reserva de juridicidade e de justiça” que não se confunde uma ordem natural metafísica, mas refere-se a elementos históricos e contingentes que conformam a comunidade política (CANOTILHO, 1993, p.117).
2.2 A GUARDA DA CONSTITUIÇÃO
O campo de discricionariedade cognitiva, nos termos de Robert Alexy (2008), pode ser matizado a partir de dois modelos teóricos. No primeiro, há uma precedência absoluta do princípio formal de deferência democrática, sendo as deliberações parlamentares infensas ao controle jurisdicional. Esse modelo, não parece ser o mais adequado a uma ordem constitucional que se queira vinculante. O segundo modelo contempla essas considerações. Nesta perspectiva, a precedência legislativa é mantida, porém, relativizada. É nesse segundo modelo que ganha maior relevância a função de guarda da Constituição. Desempenhando o Parlamento papel originário na instituição de preceitos constitucionais, Kelsen considera mais adequado conferir a um órgão diferente deste aquela atribuição. Afinal, nada mais contraindicado do que “confiar a anulação de atos irregulares ao próprio órgão que os produziu” (KELSEN, 2007, p.151). Desse modo, propugna-se a criação de um órgão especializado, o Tribunal Constitucional, que exerça uma jurisdição protetiva da Carta Magna contra incursões eventuais do próprio Parlamento[7].
O órgão legislativo “se considera um livre criador do direito, isso (porque só está subordinado à Constituição) e não um órgão de aplicação, vinculado à Constituição, quando na verdade ele o é ainda que em menor escala” (KELSEN, 2007, p.112). O poder judiciário deve exercer, portanto, um múnus contramajoritário; não se trata de uma usurpação de competência legislativa, mas decorrência da própria ordem democrática. Nessa linha, busca-se evitar, outrossim, que preceitos constitucionais e direitos fundamentais feneçam diante de maiorias eventuais, o que é insustentável; afinal, “são posições tão importantes que [...] não podem ser simplesmente deixadas para a maioria parlamentar simples” (ALEXY, 2008, p.446). Ademais, “uma Constituição em que falte a garantia de anulabilidade dos atos inconstitucionais não é plenamente obrigatória” (KELSEN, 2007, p.179).
Por esse prisma, é necessário, portanto, relativizar a precedência deliberativa formal do legislador e avançar para uma vinculação de conteúdo substancial. Essa vinculação é interpretada aqui em sentido valorativo restrito, o que garante discricionariedade legislativa, cabendo ao tribunal apenas definir seus contornos. Nesse sentido, um tratamento arbitrário não deixa de sê-lo apenas em virtude da melhor razão, mas de razões plausíveis. Nesse orbe, o centro do debate interpoderes envolve o problema do equilíbrio entre as competências do Tribunal Constitucional e o Congresso Nacional na determinação desse balanceamento: em suma, a extensão da jurisdição constitucional. A possibilidade de divergência entre ação legislativa e controle judicial, esse paradoxo democrático, é um tributo necessário da própria institucionalização do Estado de Direito, cuja solução para esse problema é uma tarefa traiçoeira (ALEXY, 2008).
É no campo de tensão entre processo político e judicial que se desenvolve necessariamente a interpretação constitucional. Dessa circunstância decorre a dificuldade nas relações entre o Legislativo (democrática e periodicamente eleito) e o Judiciário (apenas indiretamente legitimado democraticamente e não destituível eleitoralmente). Esse espaço de conformação entre Judiciário e Legislativo dá espaço a um verdadeiro jogo de xadrez[8] (LOWENSTEIN, 1964). Existe, é claro, o risco de o Tribunal restringir de maneira não fundamentada as competências do legislador (de onde decorre uma necessidade de autocontenção -self restraint- do Judiciário). Mas esse é um risco que vale a pena ser corrido em prol da defesa da ordem constitucional, especialmente dos direitos fundamentais dela decorrentes.
Esse diálogo enxadrista é inerente à estrutura de controle de constitucionalidade americano (adotada no Brasil) de “freios e contrapesos” (checks and balances[9]) em detrimento de um modelo francês de “separação de poderes” (sepáration de pouvoirs[10]). Pelo primeiro, há uma dinâmica acentuadamente interativa entre os poderes constituídos do Estado, no sentido do estabelecimento de controles recíprocos; ao passo que no segundo, há um maior distanciamento, no sentido de compartimentalização estanque de competências. Ademais, a relação interpoderes ganha maior complexidade com a adoção, pela dogmática constitucional brasileira, de um modelo híbrido de operacionalização do controle de constitucionalidade.
Desse modo, reúnem-se na jurisdição constitucional no Brasil características tanto do modelo americano concreto-difuso[11] como do padrão austríaco abstrato-concentrado[12]. De qualquer sorte, independente do modelo adotado, por sem dúvida a realizabilidade dos preceitos constitucionais exige a superação do efeito paralisante de um ideário de separação (estrita) em prol de uma colaboração de poderes (KRELL, 2002). Aponta-se, portanto, à necessidade de diálogos institucionais entre o Tribunal o Parlamento em que se compatibilizem ativismo judicial e deferência democrática (SARMENTO, 2010). “Nesse sentido, o jogo de xadrez há de ser jogado” (BRASIL, 2006, p.54).
3 O MOVIMENTO DAS PEÇAS
3.1 ORIGENS DA JURIDIFICAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA
É no quadro de tensão desse xadrez constitucional que se travam as discussões sobre ativismo (judicial activism), referente a uma atuação mais proativa do Judiciário na concretização de direitos fundamentais, a favor (ou em detrimento) do Legislativo. A discussão acerca dos limites ao ativismo judicial contrapõe teses procedimentalistas e substancialistas. As primeiras buscam restringir o controlo judicial à análise de regularidade apenas do aspecto formal de deliberação parlamentar (HABERMAS, 2003). As segundas remetem à tutela judicial de um plexo axiológico, telos material da Constituição (ALEXY, 2008). Antes de aprofundar o tema, mister se faz necessário situar, as razões jurídico-estruturais dessa tendência jurisdicional proativa hodierna.
Seguindo preleção de Luís Roberto Barroso (2012), originariamente o ativismo surge na jurisprudência da Suprema Corte americana, com matiz conservador, contrária à intervenção do Estado no mercado pela adoção de leis sociais (Era Locher 1905-1937). O ativismo toma outro cariz sob a presidência de Warren (1953-1969), momento decisivo na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. É dessa época, por exemplo, o célebre caso Brown v. Board of Education[13] (1954) que, por assim dizer, encerra formalmente a segregação racial no país, afastando precedentes lançados pelos casos Dred Scott v. Stanford[14] (1857) e Rovert v. City of Boston[15] (1859).
Percebe-se, portanto, que o ativismo judicial não se encontra restrito a alguma coloração axiológica, mas a uma específica configuração estrutural do sistema jurídico na qual o Judiciário passa a atuar em determinados setores considerados até então fora de sua alçada de atribuições. O ativismo judicial nos Estados Unidos assenta-se na doutrina do substantive due process, pelo qual o judicial review encampa não apenas requisitos formais, mas a própria razoabilidade de dado ato normativo promanado pelos demais poderes.
Para alguns estudiosos, a tendência contemporânea de fortalecimento da autoridade judicial, para além dos movimentos pelos direitos civis da década de 1960, trata de efeito correlato aos imperativos de segurança jurídica, exigida pela expansão da dinâmica mercadológica. Essa leitura, contudo, parece não esgotar a complexidade da questão, em especial no que tange à dimensão prestacional do ativismo judicial. Parece mais adequado compreender o fenômeno como reflexo do desenvolvimento, especialmente no Pós-Guerra, de uma nova concepção de Estado, não mais limitada à função de polícia (gendarme), mas investido de características promocionais.
Nos termos de Gunther Teubner (1987, p.27), esse novo ideário estatal direciona um processo de “juridificação” (Verrechlichug) da esfera social, através de uma “poluição legal” (legal pollution) no plano legislativo e uma “burocratização do mundo” (bureaucratization of the world) no orbe administrativo. A situação figura-se ainda mais problemática diante da adoção de textos constitucionais ambiciosos, de natureza rígida, espécie de “hiperconstitucionalização” que acaba ensejando o “amesquinhamento do sistema representativo” (VIEIRA, 2008, p. 443).
A transição democrática, após experiências totalitárias e de colonização tende a contemplar uma jurisdição constitucional fortalecida, de modo a preservar o sistema em face de novas confluências autoritárias[16]. Esse foi o caso tanto dos países do Eixo, como das Cartas portuguesa, sul-africana e indiana. Não fora exceção a Carta brasileira. Essa configuração normativa, entrementes, altera o perfil funcional dos tribunais, conquanto mero legislador negativo[17], nos moldes kelsenianos, atribuindo-lhe matiz estrutural de garantidor das prestações estatais asseguradas nas Cartas Magnas. Há, por exemplo, um compromisso maximizador da Constituição Federal (VIEIRA, 2008), uma verdadeira pretensão à ubiquidade (SARMENTO, 2006).
Nesse quadro, o Judiciário torna-se então o “terceiro gigante”, voltado ao controle o “legislador mastodonte” e o “administrador Leviatã”; “a expansão do papel do Judiciário representa o necessário contrapeso, num sistema democrático de ‘checks and balances’ à paralela expansão dos ‘ramos políticos’ do Estado moderno” (CAPPELLETTI, 1999, p.19). Em outras palavras, “tanto em face do Big Business quanto do Big Governement, apenas um Big Judiciary pode erigir-se como guardião adequado e contrapeso eficaz” (CAPPELLETTI, 1999, p.61). A mudança protagonizada pela ascensão do Estado social não deve ser entendida em uma perspectiva meramente quantitativa, mas sob um prisma qualitativo, no sentido da emergência de novas estruturas dogmáticas decisionais. A isso corresponde a incorporação de conteúdos normativo não mais meramente condicionais, mas finalísticos, espécies de “pretensões a conformação do futuro” (Zukunftgestaltung), espaço de deliberação tradicionalmente político (MENDES, 2002, p.7).
O ativismo judicial, nesse diapasão, decorre da própria ascensão de um modelo estatal intervencionista (intervencionist state). Instado pelos novos desafios lançados por essa nova concepção de Estado, o establishment jurídico reage, afastando-se de uma lógica interpretativa formal-mecanicista prevalecente até então. Desse modo, a jurisdição constitucional caminha em direção uma transmutação hermenêutica que incorpora ao discurso jurídico-argumentativo certo arcabouço político-moral que “afrouxa” a deferência do Judiciário para com o Legislador e consequentemente dá margem a uma “ampliação do espaço de decisão judicial” (HABERMAS, 2003, p. 306). Descortinam-se, então, novas áreas de atuação à atividade judicante, dando mais espaço ao exercício de criatividade judicial na aplicação/criação do direito.
Em síntese, a juridificação da esfera social, essa sorte de colonização do mundo da vida pelo direito (HABERMAS, 2003), queda um fenômeno sistêmico-estrutural que não pode ser simplesmente negado pelos movimentos de “deslegalização” (delegalization); “a ‘torrente de normas’ não pode ser contida por diques e barragens; no máximo ela pode se canalizada[18]” (TEUBNER, 1987, p.12). Daí a preocupação dogmática em estabelecer os contornos dos direitos fundamentais em um instrumentário dogmático altamente sensível em torno de conceitos-chave como conteúdo essencial, mínimo existencial e reserva do possível (HABERMAS, 2003).
Entrementes, o afã regulador do Estado-Providência encerrara uma “obstrução” (overload) da própria atividade legislativa e as promessas constitucionais por vezes frustradas cedem lugar a uma espécie de desencantamento e desconfiança para com o Parlamento. A Ágora parlamentar encontra-se esvaziada em face do cidadão, o qual, em seu lugar, recorre ao fórum. O ativismo judicial derivado da própria hipertrofia do Estado social ganha ainda mais força diante da crise de representatividade democrática que este mesmo crescimento ocasionara.
O Judiciário é tentado então a contornar (bypass) as instâncias legislativas, no mais das vezes à luz de uma espécie de otimismo da função judicante (CANOTILHO, 2008). Nesse cotejo, Mario Cappelletti (1999) reputa, por exemplo, o Judiciário como o “menos perigoso” dos poderes. Segundo preleção do citado autor, as “enfermidades” pelas quais padece a criação judiciária do direito pode ser perlustrada (e superadas) pelos seguintes eixos críticos:
O primeiro deles (1) refere-se à dificuldade informacional do jurisdicionado em face da técnica jurídico-dogmática: as idiossincrasias do processo. Entretanto, o acesso à informação do cidadão em face do Legislativo ou Executivo demonstra-se, por vezes, tão ou mais dificultoso que em face dos tribunais. Diante de conchavos político-partidários, as decisões judiciais acabam por alcançar mais publicidade do que as próprias deliberações legislativas, reforçando a juridicização de demandas enquanto alternativa de exercício de cidadania.
O segundo eixo (2) refere-se às inseguranças regulatórias quanto às possibilidade de decisões judiciais com efeitos ex tunc. Porém, esse óbice é comumente superado em termos de modulação temporal, mitigando o impacto na segurança jurídica das decisões jurisdicionais.
O terceiro aspecto (3) alude à incapacidade técnica do Judiciário para auferir subsídios decisórios no campo de discricionariedade cognitiva do direito. No particular, o Judiciário padeceria de incompetência institucional, sendo uma espécie de “legislador aleijado” (crippled lawmaker) sujeito mais às argumentações dos advogados que ao desenvolvimento do direito (LORD DEVLIN, 1976,p.10). Contudo, parece correto asseverar que essa dificuldade judicial (contornada em geral, por exemplo, pelo recurso a perícias técnicas e amici curiae) não é privilégio do Judiciário. Com efeito, interesses por vezes imediatistas e populistas dos poderes representativos acabam por limar as pretensões de cientificidade que embasam adoção de determinada decisão administrativa ou política legislativa.
O quarto eixo (4), e mais decisivo, refere-se ao déficit democrático do Judiciário. De fato, “é uma grande tentação alçar o Judiciário a uma elite que ultrapassará os caminhos congestionados do processo democrático[19]” (LORD DEVLIN, 1976, p.16). Cappelletti, contudo, observa que o próprio processo representativo democrático se sujeita a lobbies, não podendo ser “mistificado”. Ademais, maiorias eventuais (democraticamente legítimas) podem igualmente fazer naufragar a nau democrática (como sói a ocorrer em Weimar), de onde denota a relevância de um poder com caráter contramajoritário.
Outro aspecto a ser levado em consideração é a nomeação dos magistrados das cortes superiores pelo chefe do Executivo ad referendum do Parlamento, impingindo, de certo modo, uma forma de controle democrático do Judiciário. Por derradeiro, a necessidade de fundamentação pública e racional das decisões judiciais, possibilita um controle democrático das decisões judiciais.
Em suma, para Mauro Cappelletti, balanceando os caracteres da atividade judicial com suas debilidades, existem mais prós que contras. Em que pese serem pertinentes as observações do citado autor, parece que tais considerações não têm o condão de legitimar uma postura ativista do Judiciário que invada o espaço de discricionariedade cognitiva do Parlamento, como parece acontecer no país, como se verá a seguir.
3.2 O ATIVISMO JUDICIAL EM TERRAE BRASILIAE
A tonificação do judiciário no Brasil decorre de uma série de fatores, entre os quais dos auspiciosos ventos da redemocratização, a adoção de um modelo constitucional analítico e o já citado sistema brasileiro de controle híbrido de constitucionalidade (WENDPAP, 2008). Ademais, não há de se perder de vista que o acidentado histórico de instabilidade política brasileira ensejara uma patologia persistente de insinceridade constitucional (BARROSO, 2009). A Constituição tornara-se um simulacro, mero instrumento de dominação ideológica. Em especial, apenas após a Carta de 1988, que a situação passou a mudar. Com a nova ordem, buscava-se superar um modelo constitucional meramente semântico-simbólico, em direção a um instrumento de transformação social.
Esse positivismo constitucional renovado, em busca de maior efetividade, deriva, no plano jurídico, da atribuição de normatividade plena à Constituição; no plano científico, à atribuição de autonomia ao Direito Constitucional; e, no plano institucional, de maior protagonismo do Poder Judiciário na tutela de direitos. Disso resultou um (neo) constitucionalismo engajado, voltado ao resgate da imperatividade da norma: a Constituição exsurge conquanto tarefa a ser realizada. Entrementes, mesmo após a redemocratização, os contínuos percalços institucionais do país (crises econômicas, escândalos de corrupção) desacreditaram sobremaneira os Poderes eletivos (Executivo e Legislativo), ocasionando uma sobrevaloração dos meios de controle judicial. Nesse quadro, as vantagens em termos da imparcialidade decorrente da despolitização do Judiciário convivem em tensão com a possibilidade de extrapolação permanente de sua competência jurisdicional (GUERZONI FILHO, 2004).
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) ilustra bem esse quadro tensionado. Luís Roberto Barroso (2013) elenca três casos emblemáticos a esse respeito.
No primeiro deles, o julgamento da Lei de Biossegurança (ADI 3.510-0), sobre pesquisa em embriões in vitro inviáveis ou congelados há mais de três anos, houve o afastamento tout court do princípio de deferência do STF às deliberações do legislador democrático. Ou seja, a observância pelo Parlamento de ritos formais, a ampla realização de consultas públicas e aprovação por maioria absoluta do dispositivo legal, para a maioria dos ministros, não deveriam ser levadas em consideração pelo Tribunal. Ou seja, a Corte arrogou-se a prerrogativa de atuar dentro dos limites de discricionariedade cognitiva do direito, a despeito do Legislativo.
No segundo, atinente à fidelidade partidária (MS 26.603/DF), houve determinação do STF para que o presidente da Câmara dos Deputados cumprisse entendimento esposado pelo Tribunal Superior Eleitoral que, em resposta a consulta, reconheceu o direito do partido político a titularidade de cadeiras parlamentares que fez jus por coeficiente eleitoral. Em consequência, estipulou o tribunal a perda de mandato de parlamentares que, injustificadamente, mudassem de partido pós o pleito. Esse entendimento acabou por incluir nova hipótese ao rol do art. 55 CF, até então considerado numerus clausus. De especial relevância, o voto do ministro Celso de Mello faz referência ao exercício de “poder constituinte” pelos Tribunais Constitucionais.
O terceiro exemplo retrata entendimento do Supremo Tribunal em face da Lei de Crimes Hediondos (Rcl. 4.335-5/AC). O ministro Gilmar Mendes considerou de eficácia erga omnes os efeitos de decisão que, em sede de controle difuso, considerou inconstitucional artigo do citado dispositivo legal que vedava progressão de regimes, a despeito de ausência de manifestação do Senado Federal. No particular, haveria, para o ministro, reforma constitucional sem mudança de texto, capaz de suprimir competência privativa da Câmara Alta contida em dispositivo expresso da CF (art. 52, X). Ou seja, a proatividade jurisdicional investe contra teor literal de norma constitucional originária, cláusula que cosagra a separação de Poderes. Resta apenas considerar, não manifestando o Senado seu desapreço por essa invasão de competência, a hipótese de convalidação tácita dessa transmutação de sentido, para se evitar insegurança jurídica.
Além desses posicionamentos da jurisprudência, parte da doutrina vem aduzindo uma superioridade jurídico-ontológica a dados preceitos constitucionais, em detrimento de questões ditas “menores”, como o orçamento.
Ângela Pelicioli (2007), a título de ilustração, advoga a prolação de sentenças normativas como um instrumento necessário de garantia da efetividade de direitos fundamentais. Nesse plano, ocupando locus privilegiado, o Pretório Excelso exerceria não apenas função jurisdicional comum, mas função normativa como se “legislador positivo” (sic) fosse (PELICIOLI, 2007, p.36). Nesse quadro, não haveria restrições ao revestimento de matiz aditivo[20] às decisões judiciais, possibilitando-se a majoração do orçamento público via jurisdictionis, sem necessidade de deliberação parlamentar democrática.
Como se vê, busca-se uma saída voluntarista ao labiríntico jogo de xadrez constitucional. Nessa linha, há quem defenda que, na hipótese da Administração decidir em construir um campo de futebol no lugar de um estabelecimento de ensino, “ao atendimento do art. 208, I da CF, não se pode vislumbrar outra solução constitucional que não seja permitir o juiz possa impedir a construção do estádio e determine [...] construir a escola” (FREIRE JÚNIOR, 2005, p. 68). Tendo em vista os grandes investimentos destinados à infraestrutura esportiva para Copa do Mundo é surpreendente que não tenha havia (ainda) decisões nesse sentido. Em última instância seria possível “sustentar que os gastos com publicidade governamental não poderão ser superiores aos investimentos em saúde ou educação” (MOREIRA, 2011, p.208). Este último posicionamento dogmático tem a inegável vantagem de mitigar a imprevisibilidade de uma microjustiça casuística, reconduzindo a discussão ao todo orçamentário, mas deve ser manejada com cautela.
O fortalecimento da jurisdição constitucional vivenciado no Brasil, ao mesmo tempo em que busca consolidar o Estado de Direito, paradoxalmente fragiliza suas bases representativas. Deve-se, por conseguinte, adotar mecanismos que mitiguem este mal estar judiciocrático (VIEIRA, 2008).