4 A ESTRATÉGIA INSTITUCIONALISTA
4.1 DA NECESSIDADE DE AUTOCONTENÇÃO JURISDICIONAL
Por mais que haja participação popular, com as possibilidades de ações coletivas e amici curiae, o tribunal é um substituto “pobre” ao Parlamento, uma arena inadequada para comportar todos os matizes do da ordem democrática. As manifestações das partes, sempre limitadas aos pólos processuais, são em regra intermediadas por um corpo de especialistas: os magistrados; a exercer um métier jurídico-dogmático e não vocacionado às deliberações políticas. Uma democracia juridificada perde seu ethos; torna-se um excerto de democracia.
Desse modo, contrapondo-se ao movimento ativista deve-se temperar uma lógica de autocontenção (self-restraint) institucionalista. Se o primeiro explora ao máximo as potencialidades do texto constitucional, o segundo opta pela deferência decisório-constitucional às instâncias representativas. A dogmática constitucional deve, decerto, esquivar-se da inanição, mas tampouco deve ceder à tentação do messianismo jurídico. Não se deve olvidar que:
O fato de o tribunal constitucional e o legislador político ligaram-se a normas processuais não significa uma equiparação concorrente da justiça com o legislador. Os argumentos legitimadores a serem extraídos da Constituição, são dados preliminarmente ao tribunal constitucional, na perspectiva de aplicação do direito – não na perspectiva do legislador, que interpreta e configura o sistema dos direitos, à medida que persegue suas políticas (HABERMAS, 2003, p. 324)
Como já assentado, a distinção precípua entre Legislativo e Judiciário não é no plano de criação do direito, mas no modus operandi do processo decisório jurisdicional. Nessa linha, Mario Cappelletti (1999) elenca dois caracteres indissociáveis da atividade jurisdicional[21]. O primeiro deles refere-se à imparcialidade, à defesa a influências externas e assegurando o contraditório, tal qual o conteúdo dos aforismos latinos nemo judex in causa propria (não há juiz em causa própria) e audiatur altera pars (deve-se ouvir a outra parte). O segundo corresponde ao princípio dispositivo, à necessidade de conexão da atividade decisória a determinados controvérsias, circunscritas a dada relação processual, nos moldes do brocardo romano nemo judex sine actore (não há juízo sem autor). Fora desses condicionantes estruturais não cabe ao Judiciário arrogar-se das atribuições dos demais poderes republicanos, sob pena de instauração de uma, poder-se-ia mesmo dizer, república aristocrática da magistratura, em detrimento do Estado democrático parlamentar.
Em outras palavras, ao ultrapassar suas funções institucionais corre-se o risco da instalação, pelos tribunais, de uma judiciocracia (FREIRE JÚNIOR, 2005). Como bem adverte Eros Grau, “coartar a faculdade do Poder Legislativo, de atuar como intérprete da Constituição, isso nos levaria a supor que nossos braços, como as árvores --- na metáfora de LOWENSTEIN --- alcançam o céu” (BRASIL, 2006, p.54). Nada mais inadequado como bem assevera o ministro. Ao judiciário cabe autoconter-se. Deve-se, portanto, evitar uma compreensão paternalista da hermenêutica constitucional que se alimenta da desconfiança do magistrado em face da irracionalidade do processo legislativo.
O reconhecimento das dificuldades representativas não justifica abandonar os esforços com vistas a salvaguardar a legitimação democrática. “Se já se tem dificuldade de aceitar uma decisão tipicamente voluntarista ou intuitiva do órgão de representação popular, certamente não se pode sequer cogitar de uma eventual substituição de um voluntarismo do legislador pelo voluntarismo do juiz” (MENDES, 2004, p. 482).
Decerto, não há que se considerar supremacia do Parlamento ou do Judiciário, mas da Constituição. E constitucionalmente falando, a função democrático-representativa de deliberação política é atribuição inata do Poder Legislativo, quer se goste ou não. Não é despiciendo relembrar expressa dicção da Constituição Federal que em seu art. 1º § único estabelece que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos dessa Constituição”. A Carta Magna sufraga explicitamente, portanto, o imperativo democrático eletivo. Essa é a ineliminável vontade do Constituinte originário, salvo processo revolucionário.
Nesse cotejo, duas opções descortinam-se. Ou se respeitam as regras do jogo e a deferência democrática ao Parlamento no âmbito de discricionariedade cognitiva em que se encerram as decisões nodulares da comunidade política; ou refunda-se a república a partir de uma nova concepção de Estado, na qual a legitimidade democrático-legislativa resida no Judiciário. Tertium non datur. Não está aqui se advogando a “capitulação-resignação do regime garantístico e protetivo a nível jurídico-constitucional” (CANOTILHO, 2008, p.98), tampouco negando o “inexaurível papel de Law-making do intérprete” (CAPPELLETTI, 1999, p.75). O que se pretende é conservar o espaço de atuação política, sindicável em um regime democrático mediante voto popular e atuação da sociedade civil.
Caminhar na direção contrária, no sentido da concentração da função jurisdicional com a função de Legislador positivo (com a prolação de sentenças normativas e aditivas), parece contrariar flagrantemente a própria dinâmica republicana de equilíbrio interpoderes. É de bom alvitre referendar a admoestação de Montesquieu que leciona: “tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado dos Poderes Legislativo e Executivo. Se estivesse unido ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador” (MONTESQUIEU, 2000, p.168). Sob o pretexto de salvarem-se os valores sociais, estar-se-ia sacrificando a democracia no altar da judiciocracia.
O ativismo judicial, “até aqui, tem sido parte da solução, e não do problema. Mas ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser eventual e controlado. Em dose excessiva, há risco de se morrer da cura. [...] Precisamos de reforma política. E essa não pode ser feita por juízes” (BARROSO, 2013, p.19). Em suma, “o Judiciário quase sempre pode, mas nem sempre deve interferir” (BARROSO, 2013, p.17). Logo, é de se asseverar a necessidade de independência e harmonia entre os Poderes, de modo a impedir a desadministração pública (BRITO, 2001). Ao Judiciário não cabe a dimensão funcional de válvula de escape (RÉ, 2012), mas sim (se a metáfora permite) de mecanismo de redirecionamento hidrostático dos vasos comunicantes de um democracia representativa.
4.2 Abrindo a Caixa preta dos arcana imperii
Uma estratégia adequada ao xadrez constitucional seria uma integração sistêmica de três níveis argumentativos, nos termos de Robert Alexy (2008): (1) Material - referente à importância dos direitos em jogo; (2) Funcional – relativo à competência decisória; e (3) Epistemológico – relativo à possibilidade de fundamentação jurídico-metodológica racional. A precedência discricionária formal do legislador é, como já visto, relativa. O que encarece, nesse passo, é a relevância do princípio da transparência, seja na integração desses três níveis argumentativos como enquanto veículo de consecução de um padrão adequado de gestão pública e decisões que respeite a tripartição funcional de poderes da Constituição que remonta a Montesquieu[22] (2000).
Nesse prisma, “melhor que negar o aspecto político da jurisdição constitucional é explicitá-lo, para dar-lhe transparência e controlabilidade” (BARROSO, 2009, p.286). O assunto gira em torno de dois princípios constitucionais: o direito fundamental à informação e o princípio da publicidade[23] da administração pública, que propiciam o controle da atividade estatal pelos cidadãos. Nos termos do STF, “a prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República enquanto forma de governo[24]” (BRASIL, 2012, p. 4). Não é outro o espírito da recente Lei de Acesso à Informações (LO nº 12.527/2011) que regula o art. 5º, XXXIII, art. 37, § 3º, II e art. 216, § 2º, todos da Constituição Federal.
Deveras, a transparência é um postulado inderrogável da ordem republicana; reveste-se de teor formal, permeando o plexo deontológico da Constituição, exercendo, sobre este, papel legitimador (TORRES, 2013). Um controle transparente das deliberações políticas em níveis múltiplos parece ser a opção mais adequada de canalização do ativismo judicial sem desrespeitar o imperativo de deferência democrática do Parlamento. Essa estratégia institucionalista fortalece ainda o próprio senso comunitário ao reconvocar o cidadão à responsabilidade de atuação política.
Como bem apregoa Henri Benjamin-Constant “é preciso que as instituições terminem a educação moral dos cidadãos [...] consagrar a influência deles sobre a coisa pública, [...] garantir-lhes o direito de controle e de vigilância pela manifestação de suas opiniões” (CONSTANT, 1985, p.7). Afinal, a cidadania “conquista-se não através da estatização da sociedade [ou judicialização das deliberações políticas], mas sim através da civilização da política” (CANOTILHO, 2008, p.122). A democracia não se desenvolve, afinal, em um modus operandi de delegação de responsabilidades, mas “por meio de formas refinadas de mediação do processo público e pluralista da política e da práxis cotidiana” (HÄBERLE, 2002, p.36).
Em outras palavras:
um ótimo desenvolvimento da força normativa da Constituição depende não apenas do seu conteúdo, mas também de sua práxis. De todos os partícipes da vida constitucional, exige-se partilhar aquela concepção anteriormente por mim denominada vontade de Constituição (Wille zur Verfassung). Ela é fundamental, considerada global ou singularmente (HESSE, 1985, p.21).
Ao perquirir acerca da regularidade da gestão administrativa / legislativa, não está o Judiciário indo de encontro ao princípio da confiança que deve reger a cooperação ente Poderes. O princípio da confiança circunscreve-se no espaço de discricionariedade cognitiva dos direitos fundamentais. Nesse espaço, cabe ao Judiciário guardar deferências às escolhas do Legislador; ao trazer à tona essas decisões não se está incorrendo em conflito interpoderes, mas possibilitando ao cidadão conhecer e acompanhar o processo decisório democrático. Postula-se aqui abrir a caixa-preta dos arcana imperii (BOBBIO, 1986), retirar-lhe o manto de invisibilidade (CANOTILHO, 2008). A potestas deve dar lugar à civitas; o súdito ao cidadão. Desse modo faz-se necessária “uma virada institucionalista [...] requer o que poderíamos ousar chamar de publicização de escolhas [...] não apenas divulgar, mas tornar público o processo de escolha” (AMARAL, 2010, p.180).
Destarte, ainda que negada, por exemplo, certa tutela judicial a prestação social in concreto, resta imprescindível a máxima transparência acerca de como se dão os gastos públicos.
A exigência de publicidade dos atos de governo é importante não apenas, como se costuma dizer, para permitir ao cidadão conhecer os atos de quem detém o poder e assim controlá-los, mas também porque a publicidade é por si mesma uma forma de controle, um expediente que permite distinguir o que é lícito do que não é (BOBBIO, 1986 p.30).
O magistrado é parte da engrenagem social e, mais que isso, dotado de responsabilidade pelo locus privilegiado de poder público que ocupa. Isso não deve, torna-se a dizer, servir a um posicionamento judiciocrata, mas à reorientação das deliberações democráticas a sua legítima Ágora, e, mais importante, descortinar Id quod plerunque accidit (“o que lá realmente acontece”). A coisa pública deve ser publicizada, ambas as expressões oriundas da mesma raiz latina publicum, forma reduzida de populus, “povo”. Em suma, a res publica é de todos e a todos interessa. Sua definição imprescinde dos conotativos de visibilidade ou transparência do poder.
O desenvolvimento do Estado de Direito impinge, portanto, uma necessária democratização e controle judicial das escolhas operadas diuturnamente pela comunidade política que não devem ser tomadas à revelia da esfera pública. Para consecução desse mise au point dogmático, entrementes, é preciso superar a cultura do sigilo que grassa a res publica no Brasil. Essa cultura de “boudoir”, de “alcova”, da falta de transparência decorre de uma herança cultural patrimonialista “conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente” (FAORO, 2008, p. 866). Nesse contexto, “para o funcionário ‘patrimonial’, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; [...] é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados” (HOLANDA, 1995, p.73).
Soma-se ao patrimonialismo a herança de uma concepção dogmática centrada na soberania e nos privilégios da Administração. A soberania sabe-se bem, configura a possibilidade de definir exceção; soberania subordina, não se encontra subordinada. Essa noção, como pode se intuir, não se adéqua bem ao ideário de prestação de contas em uma sociedade democrática.
Por isso, não raras vezes, a autoridade administrativa daí derivada incide em autoritarismo. Nessa perspectiva, “subsiste a dominância da razão hierárquica, com completa indiferença, e até ignorância, relativamente aos destinatários” (CANOTILHO, 2008, p. 258).
É contra essa cultura do sigilo que deve se dirigir a proatividade do Judiciário. Afinal, “a lógica da divisão de poderes só faz sentido se a separação funcional garantir ao mesmo tempo a primazia da legislação democrática e a retroligação do poder administrativo ao comunicativo” (HABERMAS, 2003, p. 233). O que se busca são “guideliness de boas práticas”, espécie de “clinical governance” pelo Estado (CANOTILHO, 2008, p. 177). Em suma, trata-se de incorporar mecanismos de governança e accountability já reconhecidos internacionalmente[25].
Os preceitos constitucionais, direitos fundamentais, prestações sociais podem auferir sua máxima efetividade mais mediante uma gestão pública adequada de recursos escassos que por um imperativismo verborrágico, inócuo do ponto de vista jurídico, dogmático e social.
A ‘floresta tem caminhos’. É necessário descobrir os caminhos da floresta. [...] Se a ‘lógica dirigente’ está, hoje, posta em causa, isso não significa que o direito tenha deixado de se assumir como instrumento de direção [...] a uma ‘nova estatalidade’, uma ‘nova arquitetura do Estado’, onde se recortem novas formas institucionalizadas de cooperação e de comunicação (CANOTILHO, 2008, p.257-258).
Essa proposta institucionalista não se identifica com o modelo criticado por Gunther Teubner (1987, p.37) de “direito comunal” (communal Law) “fora das cortes” (out-of-court), mas um modelo de gestão integrada inserido (with within) na dinâmica relação interpoderes. É necessária uma translação (shift) da tarefa clássica da Jurisprudência de regulação de conflitos (conflict regulation) para a regulação social (social regulation), aspecto central da juridificação moderna; “‘a justiça legalista-liberal’ é substituída pela ‘justiça normativa-tecnocrática’” (TEUBNER, 1987, p. 15). Essa transição enseja vistosas modificações na estrutura dogmática da decidibilidade jurídica, na qual o “propósito da norma” (purpose in Law) torna-se diretriz hermenêutica hegemônica no quadro de um “direito responsivo” (responsive Law) voltado à orientação de resultados (TEUBNER, 1987, p. 18). A formação de standards institucionais de trato da coisa pública em direção (towards) à eficiência alocativa perpassa (não antagoniza) pela generalização de congruência de expectativas, atendendo às exigências sistêmicas de regulação do direito.