Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

A responsabilidade dos advogados no auxílio à correção dos problemas sociopolitícos embrionários brasileiros.

O advogado como agente de tradução do direito e de integração social

Exibindo página 1 de 2
Agenda 31/10/2014 às 09:36

Considerando as anomalias da formação sociopolítica brasileira, as quais excluíram parcialmente o povo do terreno da participação pública, os advogados têm a capacidade técnica para influenciar um novo cenário de integração social.

Resumo: A concentração do poder no Brasil, inicialmente excluindo o povo e, posteriormente, diminuindo a competição política, acabou por formar um sistema oligárquico que ainda perdura em regiões pobres. Porém, a referida formação do povo o tornou, de maneira geral, com o auxílio do modelo capitalista, não integrado e alheio aos interesses públicos, voltado exclusivamente às questões individuais de sobrevivência. O fato social construiu anomalias no sistema político representativo, o tornando incompatível com a tradução do Direito pelas leis. A constituição do problema de legitimidade e, consequentemente, da necessidade de reformulação cultural, política e jurídica, nesta ordem, traz à discussão a obrigação legal do advogado de interferir no sistema político e jurídico, defendendo o Estado Democrático de Direito também em suas valorações pré-legais, surgidas e discutidas na fase dos debates políticos, como a justiça, a paz social, a moralidade pública, os problemas da cidadania e, o aprimoramento, não somente das leis, mas do Direito. Dessa forma, o objetivo do presente trabalho é, além de expor algumas das questões primordiais da formação do povo brasileiro, estudar a natureza da advocacia, incluindo os saberes jurídicos, sociais e a prática da dialética, e, sendo assim, constatar o que torna o advogado importante, ou mesmo essencial para a dinâmica do Direito.

Palavras-chave: Filosofia do Direito; Filosofia; Ciência Política; Ética; Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil; Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil.

SUMÁRIO: Introdução.  1. A ausência de integração como fator desencadeador de anomalias no sistema político representativo. 2. O advogado como agente tradutor da sensação do justo e reformador do sistema representativo. 2.1. O trabalho do advogado em juízo e sua influência social no valor justiça. 2.2. O advogado como agente reformador do sistema representativo: o dever legal de integralizar o povo. Considerações Finais.  Referências Bibliográficas.


INTRODUÇÃO

Por muito tempo, oficialmente, o Brasil permaneceu uma colônia de extrativismo, e continuou sendo quando se assentaram aqui os primeiros donos das terras. Uma particularidade ausente nas colônias inglesas do norte dos atuais Estados Unidos da América, onde o clima temperado desfavoreceu o latifúndio e priorizou as pequenas propriedades que, quando grandes eram fragmentadas por arrendamentos (como Nova Iorque)[1]. No Brasil, a primeira concessão de terra em 1534, expedida por D. João III a Duarte Coelho, dando início a repartição das doze capitanias hereditárias, assinalou a ausência de relação entre os moradores das diferentes terras no mesmo território[2], onde os poderes[3] dos donatários eram absolutos[4]. Os vários “pequenos domínios absolutistas”, são reflexo da cultura de forte concentração de poder presente na colônia, que permaneceu unida, de maneira diversa do processo de fragmentação das ex-colônias espanholas no mesmo continente[5].

A partir da vigência do Regimento do Governador-Geral, unificando os “governos” das capitanias, houve grandes partilhas do território, contudo, sempre com a presença da autoridade real centralizada, porém, descompromissada, mantendo os domínios dos antigos donos das capitanias[6]. O processo esboçou o sistema coronelista oligárquico brasileiro, onde o povo (incluindo os escravos) foi excluído sumariamente da participação política nas casas legislativas locais[7]. Para exemplificar a dissociação do povo com o próprio governo, em 1696 foram nomeados pelo Rei os juízes-de-fora, na Bahia, no Rio de Janeiro e em Pernambuco, substituindo os juízes ordinários eleitos nas localidades[8]. Sendo que, em Salvador, capital do Brasil na época, os próprios membros da Câmara passaram a ser escolhidos pela Coroa[9].

O tolhimento da participação do povo também, e principalmente, deu-se pela ausência de estruturação da educação no território, sendo oferecida, por algum tempo, exclusivamente por ordens clericais. Aos indivíduos livres, os quais tinham personalidade jurídica (de pessoa, e não coisa) eram permitidos os estudos mais aprofundados, incluindo os jurídicos. Porém, a restrição não dizia respeito apenas ao “estado” do homem (liberto ou escravo), e sim aos seus recursos financeiros para o financiamento dos cursos estrangeiros, chegando a cidade do Rio de Janeiro a abrigar apenas 33 advogados em 1794. Ademais, mesmo em 1818, não existiam médicos verdadeiros e os engenheiros eram todos poucos militares[10]. No cenário, com poucos direitos ao povo e poucas postulações, em juízo e fora dele, o coronelismo perdurou fortemente fora do Rio de Janeiro (capital entre 1763 e 1960)[11], mesmo após a transferência do domicílio da Família Real para a cidade, e de todo o aparelhamento e órgãos necessários para um governo viável, ato ainda desagregado dos interesses coletivos[12].

A independência foi proclamada em 1822, de um Estado brasileiro ainda imperial[13] e, sob ataques portugueses apenas cessados em 2 de julho de 1823 em Salvador, no estado da Bahia[14]. Contudo, em um estágio - político e jurídico - ainda atrasado, muitos anos depois de várias revoluções políticas internacionais[15], a restrição do exercício político aos “homens bons”[16] (latifundiários) foi defendida fortemente por Campos Sales, mesmo após a Constituição Republicana Brasileira de 1891[17].  Segundo Iná Elias de Castro, antes de 1945 (ano do fim da Guerra Mundial), existia uma “subcompetição oligárquica” no Brasil, que foi transformada progressivamente em competição poligárquica até 1990, quando “todas as eleições estaduais se tornaram competitivas”. Todavia, hoje, em Estados onde se encontram “bolsões de pobreza” e “índices de escolaridade baixos”, existe ainda uma concentração de poder, com “baixa competitividade eleitoral”[18].

Contudo, com as disparidades regionais acerca do número de grupos políticos dispostos (ou com acesso efetivo) às eleições, todo o povo brasileiro parece apresentar mais acentuadamente uma característica comum em todas as sociedades humanas: uma vontade natural que subsiste mesmo quando há integração social induzida. Nas palavras de Arthur Schopenhauer, a vontade “existe inteira, indivisa em cada um dos seus fenômenos e vê, em torno de si, a imagem do seu próprio ser repetida ao infinito”. Devido à essência da vontade, segundo o filósofo, a “verdadeira realidade”, a humanidade (em sua vontade de querer-viver), como parte da natureza, quer tudo para si e facilmente está disposta a destruir tudo o que lhe constrói barricadas, pois se julga (em seu “microcosmo”), não só parte do “macrocosmo”, mas “igual em valor” a este[19].

Mais associado está o povo brasileiro com este sentimento, pois, não só, como todos os homens, é convicto de sua perpetuidade e de ser ele próprio “a natureza e como ela imperecível”[20], além disto, também inadmite sua plena integração, apenas mantendo “contatos” com seus pares, não estabelecendo reais “relações”[21] com o organismo social, estando “apenas nele” e não “com ele”[22]. Porém, como preleciona Paulo Freire, a integração é a parte adversa da acomodação, sendo que esta última, promotora dos “contatos”, se traduz em “respostas singulares, reflexas (e não reflexivas) e culturalmente inconsequentes”. E apenas a integração pode, estabelecendo cultura, construir um liame entre os homens, em comunhão de desígnios, inviabilizando a imobilidade dos indivíduos[23] em relação aos questionamentos públicos.


1. A AUSÊNCIA DE INTEGRAÇÃO COMO FATOR DESENCADEADOR DE ANOMALIAS NO SISTEMA POLÍTICO REPRESENTATIVO

A existência da relação (integração) é de suma importância para a real participação e viabilidade da ligação entre povo e representante (representação), pois da relação advém a capacidade de decisão que afasta do homem o estado de “massificação”, “destemporalização” e o simples “ajustamento” à ideia imposta por poucos indivíduos ou uma única classe[24]. Assim, quando o homem se relaciona com sua realidade, ele decide e domina a própria, sendo capaz de recria-la de acordo com sua vontade, agora não só individual e natural (traduzida no querer-viver), mas coletiva e artificial. A medida viabiliza a tradução das vontades dos interessados, considerando o interesse coletivo, no Estado Democrático de Direito, que, de certa forma sempre é artificial.

Contudo, a representatividade no Estado Democrático pode ser, na prática, dos interessados, e não da maioria, pois essa pode não querer, ou não poder, ser representada, apenas tendo a vontade do querer-viver. A consequência da ausência de relação (participação) pode levar a maioria (agora massificada) a ser representada pela minoria. Todavia, quando o Estado Democrático é de Direito, a legalidade, como princípio, impõe a vontade, oriunda das discussões construídas pela participação, a todos de forma geral (erga omnes), o que atribui igualdade na execução da lei[25].

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Assim, a comunidade não integrada ao seu grupo social (ou nacional), mesmo caracterizada como maioria, tem a obrigação legal de aceitar o que foi discutido pelos integrados, por um pequeno conjunto de interesses privados, em um fenômeno degenerado (injusto), mas necessário para a existência da dita segurança jurídica, em detrimento do valor “justiça”[26]. Daí a incongruência na representatividade do sistema político brasileiro, um tipo de representação necessária, porém, de certa forma, ilegítima, onde a maioria quando sente que está dissociada da vontade estatal (do interesse público institucionalizado) revolta-se, mas nem sabe revoltar-se, ou exteriorizar sua revolta e vontade, e muitas vezes, por isso, apenas “ajusta-se”[27].

Porém, imerso na ignorância sobre a expressão da própria vontade e emerso da vontade dos que já se integraram, em sua revolta, quando não pacífico, o sujeito luta desesperadamente contra a ordem, transgredindo as leis positivadas. O homem, dessa forma, retorna a priorizar apenas seu querer-viver, desprezando a vontade geral, pois não reconhece sua legitimidade, não se reconhece no Estado Democrático de Direito. Do panorama, onde surgem mais facilmente as vontades individuais, surge, de outra forma, novamente a injustiça, uma usurpação “sobre os limites da afirmação da vontade de outrem”, mesmo quando a ação injusta fira nitidamente o próprio conceito de “querer-viver” (empático) do infrator, causando-lhe o pavor e desconforto[28] que muitos dos homens sentem diante do canibalismo, do homicídio ou da escravidão, quando os cometem ou os avistam[29]. A partir do raciocínio, percebe-se o perigo na ilegitimidade da representação, risco traduzido na violência ou indiferença, insegurança jurídica e desordem social (a instabilidade do jus).

E não é tudo. A integração por meio da participação não é inalcançada apenas quando há ignorância sobre a prática pública, positivada no Estado Democrático de Direito (ativismo – voto – eleição – aprovação – vacatio legis - vigor), para se buscar a tradução dos próprios interesses no ordenamento jurídico. Mesmo se relacionando com a realidade, a moldando à sua vontade, o indivíduo pode não estar integrado com o meio (e o interesse coletivo), existindo no procedimento eleitoral apenas o querer-viver natural (o egoísmo, mesmo no método artificial de votação). É que, como pensava Alexis de Tocqueville, o “individualismo” (um querer-viver com relação) pode ser ou não egoísta, pois o conceito é distinto de “egoísmo”. O individualismo ou interesse individual, para o pensador, convive plenamente com outros interesses individuais, porém, o mesmo não acontece com o egoísmo[30].

Mesclados os raciocínios de Tocqueville e Schopenhauer, entende-se que o egoísmo é um querer-viver dissociado de relações necessárias à integração (restando apenas os contatos). Por outro lado, o individualismo é um querer-viver associado às relações com integração, levando ao que Paulo Freire entendia como colocar o indivíduo “com” o organismo social e não “no” organismo social. O fenômeno do egoísmo, que pode ser entendido como a ausência de integração com os vários interesses individuais (que em comunhão determinam o interesse coletivo), pode ser a explicação lógica da corrupção brasileira exercida por indivíduos cientes das consequências políticas, jurídicas e sociais de um mau governo, sendo esses muitas vezes eleitos ilegitimamente (pela consciência da minoria e inconsciência da maioria).

Assim, tanto a ignorância, quanto o egoísmo, como constatado, são, ambos, motivos para a inaplicabilidade da integração, e constroem um tipo de ordenamento jurídico com acesso (e dominação) restrito. Com reflexo direto no Direito, pois, devido a previsões legais expressas, os interesses ilegítimos já foram erroneamente positivados, uma reforma no sistema político é necessária. Porém, a reforma, constatando os problemas fundamentais do povo, não é apenas legal e sim cultural. Dessa forma, no contexto, considerando sua natureza, a obrigação de reparar anomalias no organismo social, recai, mais do que em outros profissionais, sobre o advogado.


2. O ADVOGADO COMO AGENTE TRADUTOR DA SENSAÇÃO DO JUSTO E REFORMADOR DO SISTEMA REPRESENTATIVO

O egoísmo e a ignorância impossibilitam a integração, pois, ao mesmo tempo em que sanam o desejo de sobrevivência (querer-viver), impedem o exercício da liberdade de compor o Direito. Um raciocínio de Hannah Arendt, exposto por Tércio Sampaio Ferraz Junior, ajuda a pontificar a questão. O doutrinador explica que o homem tem duas vidas: a primeira vida é a oikia (casa) na “esfera privada”, onde os seres são “privados” (privus) de suas liberdades, sendo submetidos às necessidades da natureza e ao pater famílias. A segunda vida é a “bios-politicós”, na “esfera pública”, onde na polis (civitas ou cidade) o homem tem a oportunidade de, entre iguais, agir livremente, com a ação política[31]. O pensamento já tinha sido trazido por Montesquieu em 1748, expressando que a liberdade está na vida pública:

Como os homens renunciaram à sua independência natural, para viverem sob leis políticas, eles renunciaram à comunhão natural dos bens para viverem sob as leis civis. Essas primeiras leis adquiriram para eles a liberdade; as segundas, a propriedade[32].

Contudo, a “teia de relações” (e não a estrutura física) que a polis necessita, precisa do trabalho do legislador para ser construída por meio da legislação. A questão é que, Ferraz Junior distinguiu “trabalho” de “ação”. O primeiro conceito produz a lex (lei), já a ação (política) é a única capaz de construir a justiça (“virtude do justo”) que proporciona estabilidade ao jus[33]. Assim, a lei produzida pelo “trabalho” do legislador pode carecer de legitimidade se não for precedida da “ação” política, do ativismo do povo, constituindo um Direito com a ausência ou diminuição de ativismo e postulação. No cenário, ainda existem limitações à autonomia do representante em seu trabalho, como a existência de grupos de interesses nos partidos políticos, negociações parlamentares no exercício legislativo, e a necessidade própria do legislador de manter-se na classe política[34].

E mais. Ferraz Junior explica que na atual sociedade de consumo, submerso na preocupação da sobrevivência (o “querer-viver” de Schopenhauer), o povo é voltado para a esfera privada e sobrevive alheio aos seus próprios interesses na esfera pública. Dessa forma, o Direito torna-se sem o conteúdo da vontade popular, virando um “saber tecnológico”, um ordenamento jurídico uniforme e indiferente às divergências de opinião[35]. No contexto, a liberdade então não é plenamente exercida pelo povo. Porém, mesmo com a ilegitimidade, o Direito é positivado, pois é necessário à ordem, mesmo que essa não seja proveniente de uma “relação”, mas apenas de “contato”, nos dizeres de Paulo Freire. A uniformidade indiferente que se assenta no Direito torna-se válida devido ao imediatismo da manutenção da ordem (o estado normal das coisas, as “premissas”), onde sendo dogmático o ordenamento, os problemas sociais (“constatações”, da zetética) tornam-se “pseudoproblemas”[36].

A questão se agrava em um círculo vicioso, já que o povo, por ignorância ou egoísmo, não podendo ou não querendo substituir os dogmas traduzidos nas leis, mantem os problemas sociais na esfera das evidências (zetética), todavia, sem soluções vigentes e/ou relativamente inquestionáveis, no plano da aplicação (dogmática), para as proposições. No caminho circular do povo sem integração, sempre terminando na ilegitimidade (“trabalho” sem “ação”, “lex” sem “justiça”), a interferência do advogado se faz necessária, pois, segundo a legislação e a própria razão funcional desse profissional, é deste a função da representação do povo e do bom funcionamento das normas, mesmo que desconectado (o advogado) do interesse estatal (dos governantes, legisladores e julgadores), sendo uma resposta a cultural concentração de poder e a limitação às postulações.

2.1. O trabalho do advogado em juízo e sua influência social no valor justiça

O advogado, em juízo, do qual faz parte, participa do contraditório, que, para Elpídio Donizetti, nada mais é que um “debate democrático”. Para o doutrinador, de todos os membros do juízo - Juiz, escrivão e demais “agentes permanentes”, além dos “agentes variáveis”, dentre eles o Ministério Público, a Defensoria Pública, perito e advogado – apenas os advogados são “sujeitos parciais por excelência”[37]. A parcialidade em questão surge do fato de que o advogado, ao mesmo tempo em que “está” no Estado (juízo), não “é” da máquina pública. Dessa forma são, dentre os sujeitos com múnus público, os únicos elementos essencialmente dinâmicos do juízo.

Por esse motivo, mais facilmente do que todos os componentes do juízo, o profissional em questão poderá estar dissociado dos interesses de qualquer anomalia do sistema representativo, como a prevalência dos interesses da minoria já positivados, e, devido ao fato, diretamente ligado às postulações do povo (maioria).  Geoffrey C. Hazard Junior e Angelo Dondi afirmam ainda que, “os juízes exercem uma importante forma de autoridade política, e a advocacia pode influir no modo como eles exercem essa autoridade. Logo, o direito de audiência do advogado é uma forma importante de poder político”[38]. E qual seria a vantagem da referida dissociação? O advogado não tem a própria opinião atrelada ao Estado, ou mesmo à própria lei inconstitucional ou injusta[39]. Ao mesmo tempo, é um profissional especializado no funcionamento do Estado, nas leis e suas interpretações, e com a cultura das postulações.

Mesmo se não fosse configurado como um “saber tecnológico”, o Direito, em si, é passível de manipulações “que, por sua complexidade, é acessível apenas a uns poucos especialistas”[40]. A responsabilidade dos estudiosos do Direito para com o povo é latente, pois apenas estes dedicam a vida, mesmo a privada, ao estudo do ordenamento e de suas interpretações. A estabilidade do jus é, dessa forma, ao mesmo tempo “trabalho” (vida privada[41]) e “ação” (vida pública) para um advogado. Quanto ao seu trabalho em juízo, de plano, os advogados têm domínio do Direito enquanto “saber tecnológico”, o que, para Hazard Jr. e Angelo Dondi, é uma compreensão dos “escritos”, enquanto os demais cidadãos concebem o “direito como o que se pode e o que não se pode fazer”, ainda agindo baseados nos usos e costumes[42].

Com o domínio dos “escritos” se consegue a melhor interpretação do ordenamento. Mas a dita interpretação não sobrevive apenas de tecnicismo, do profissional é exigida a capacidade de discutir, de expor sua opinião frente a outras opiniões. O benefício de tal luta de argumentos é o alcance do melhor argumento, da verdade. Todavia a finalidade não é a “verdade objetiva”, pois esta não existe na discussão. A disputa argumentativa, a dialética, é, para Schopenhauer, separada da busca da verdade objetiva:

Ao se estabelecerem as regras da dialética, não se pode considerar a verdade objetiva, pois, em geral, não se sabe onde ela se encontra. É comum não sabermos se temos razão ou não; muitas vezes acreditamos tê-la e nos enganamos; com frequência ambas as partes acreditam: pois veritas est in puteo ((...) [a verdade está no fundo], (...))”. (...) Ela (a dialética) é uma esgrima intelectual; somente quando entendida desse modo puro pode ser apresentada como disciplina própria, pois, se nos colocamos como meta a pura verdade objetiva, retornamos à mera lógica; se, por outro lado, nos colocamos a realização de proposições falsas, temos então a mera sofística. E em ambas seria pressuposto que já soubéssemos o que é objetivamente verdadeiro e falso, porém é raro que haja certeza sobre isso de antemão[43].

Contudo, se na disputa de argumentos, inicialmente, não se quer chegar à verdade objetiva, qual o beneficio da dialética em juízo? Mesmo que a discussão não tenha a pretensão de alcançar a verdade objetiva, a luta das várias teses de diferentes verdades pode construir a melhor verdade. Daí o bônus do debate democrático (contraditório) em juízo: para Stuart Mill não existe desvantagens na expressão da opinião, pois, quando silenciada, “se a opinião for correta, (os homens) ficarão privados da oportunidade de trocar erro por verdade; se estiver errada, perdem uma impressão mais clara e viva da verdade, produzida pela sua confrontação com o erro – o que constitui um benefício quase igualmente grande”[44].

Todavia, em juízo, as argumentações dos advogados não criam direitos. Nesse âmbito, o das discussões perante o Poder Judiciário, como apresenta Javier Hervada, não se cria um direito, se oferece “o que cabe ao direito” de cada um, e, “o ato de criar ou outorgar o direito – o que pressupõe sua existência anterior – não é de justiça, mas de domínio ou de poder”. Segundo o doutrinador, o ato de criar direito é um “ato primário”, já a justiça é um “ato secundário (...) que atua em relação à divisão já feita”[45]. Javier Hervada, desse modo, mesmo concordando com Ferraz Junior que o Direito não é criado em juízo (e sim por atos primários), diverge desse último quando afirma que o que existem antes do Direito são apenas “aspirações”, não sendo questões de justiça, e sim de política[46]. Já para Ferraz Junior, a ação política (ato primário, que gera poder) é a única capaz de promover justiça e, consequentemente, a estabilidade do jus.

Tudo leva a crer que, para Ferraz Junior, a sensação de justo, experimentada pelos cidadãos, já é justiça, e surge no mesmo âmbito público que o poder, um sentimento chamado por Hazard Jr. e Agelo Dondi de “direito como o que se pode e o que não se pode fazer”. Considerando esse momento da existência da justiça, há uma incongruência na teoria de Hervada. Levando-se em conta a concepção do doutrinador, no caso específico dos advogados (já que agem no juízo), o trabalho influencia na justiça (o justo, a divisão), porém, o povo, só poderá alcançar a justiça, a estabilidade do jus, por meio dos advogados, ou mesmo por membros do parquet, quando estes estiverem postulando algo no Poder Judiciário.

O raciocínio de Hervada já foi explicado por Ferraz Junior: trata-se de um pensamento surgido a partir da Era Moderna que confunde os conceitos de “trabalho” e “ação”, entendendo a ação como atividade finalista, e não mais como virtude (virtude do justo – justiça), e a igualando ao que na antiguidade se entendia como trabalho (que era finalista). A confusão entre trabalho e ação, que claramente pode reduzir o homem aos assuntos privados, desse modo, influencia diretamente na construção da ideia de surgimento da justiça apenas em juízo, a retirando das discussões políticas. Os reflexos no Direito são inevitáveis: para Ferraz Junior, “a ação tornada um fazer, portanto entendida como um processo que parte de meios para atingir fins, assistirá a uma correspondente redução progressiva do jus à lex, do direito à norma”[47].

Mas a justiça não é a lei, e o direito não é a norma. O que fazer se a lei (e sua interpretação) estiver em desacordo com o bem-estar do povo, que não tinha plena consciência das consequências do seu voto, que não tem liberdade efetiva (na vida pública), que não discute? Na teoria que aceita a justiça apenas produzida por interpretações dos membros do juízo, como irá surgir o justo na lei injusta? A justiça (a estabilidade do jus) seria encontrada apenas por meio do trabalho dos membros do juízo (incluído do advogado)? Apesar de afirmar que a intervenção do Juiz é necessária para dizer a justiça, Hervada aceita que as ditas “aspirações” (políticas) podem ser “justas em sentido próprio”, quando são “verdadeiros direitos”[48].

Mas, se já precede a lei, o justo, ou o Direito, precisa ser dito por um Juiz para existir? Poder-se-ia acreditar que não. O Juiz não cria o Direito, ele tem o trabalho de declará-lo com segurança jurídica, porém, dizer o Direito é uma ação do povo, já que este (incluindo o Juiz como cidadão) sente o justo (sente a divisão justa). Assim, a estabilidade do jus precede a segurança jurídica, e esta última depende da primeira para existir, pois não há obediência sem a sensação do justo, sem uma certeza, mesmo que relativa, da legitimidade das leis, já que o povo, mesmo massificado e/ou ajustado, poderia se revoltar contra uma ordem instituída sem a plena participação popular, transgredindo as normas por meio dos mais diversos tipos de crimes.

Ligada às relações de poder, a justiça continua sendo um valor muito mais amplo do que a lei, e é natural que assim seja. De tão extenso, segundo Paulo Nader, o conceito de justiça associa-se à moral, apartando-se desta, pois “se caracteriza na conduta adotada, seja ação ou omissão” (no “forum externum”), pertencendo a moral apenas ao “forum internum”, de acordo com o “desejo íntimo”. Mas, “não pode haver o justo divorciado da moral, nem ações morais que não sejam substancialmente justas”, e é a moral (associada à justiça) que está na fase de valoração, antes de escritas as leis pelos legisladores[49]. No cenário preliminar, nas eleições, quando o povo escolhe o legislador que confeccionará as leis, habita as discussões. Estas sim são ações (diferente de trabalho do povo, do legislador, ou do Juiz) que, para Ferraz Junior, são a únicas que traduzem a justiça. E o melhor argumento, ou opinião, não necessita de especialidade, e sim de consciência (as respostas reflexivas surgidas da integração).

Mas, como exposto, o povo brasileiro ainda não é integrado. No quadro, o advogado, especialista no Direito, nas questões sociais (exigidas pelo estudo do Direito), e com o hábito da dialética, pode argumentar fora do tecnicismo jurídico e com a vantagem de, presumidamente, ser um cidadão integrado (com respostas reflexivas), o que seria útil para orientar o povo nas eleições, coadjuvando as ações daqueles sem o hábito das postulações e submetidos a um poder culturalmente centralizador. O advogado, sujeito dinâmico do juízo, tem a característica já constatada, de ser um profissional que possui os instrumentos do seu âmbito privado plenamente úteis à sua ação política: conhecimentos do Direito e de questões sociais, e a habilidade de exposição das ideias. Surgem, por isso, as obrigações de induzimento, que não são apenas morais, mas sim legais.

2.2. O advogado como agente reformador do sistema representativo: o dever legal de integralizar o povo

As previsões legais sobre as obrigações cívicas (as ações) dos advogados são muitas. A Constituição Federal, em seu artigo 133, logo eleva o advogado como indispensável à justiça, sendo invioláveis os seus atos e manifestações na advocacia. O Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (EAOAB) especifica o entendimento constitucional, dizendo, em seu artigo 2º, que “o advogado é indispensável à administração da justiça”, ou seja, é essencial ao funcionamento da justiça, portanto à sua existência. Porém, quando as previsões legais se referem à justiça, podem estar se referindo ao valor, e não ao Poder Judiciário, ou a qualquer órgão estatal. E o valor justiça surge das ações políticas na cidade, e não dos trabalhos do juízo. Assim, os advogados, para administrar a justiça, não só devem postular em juízo, mas postular sempre perante o poder instituído, em nome do povo e sua sensação do justo.

E não é tudo. O Código de Ética e Disciplina da OAB, no seu artigo 2º, afirma que, além de indispensável para a existência da justiça, o que pode ser entendido (erroneamente) no sentido de essencialidade para o funcionamento do Poder Judiciário, o advogado é defensor do Estado Democrático de Direito, já que o seu “ministério privado” é subordinado à “elevada função pública que exerce”. A previsão legal esclarece o “múnus público” (função pública) do advogado[50]. Ou seja, além da função técnica que restringe aos advogados a postulação no Poder Judiciário, bem como quase todas as atividades que requeiram conhecimentos jurídicos (Art. 1º, I, II, EAOAB), o que possibilita a ampla defesa e paridade de armas, os advogados tem a atribuição da manutenção do funcionamento de todo o Estado, incluindo a orientação do povo, sendo “defensor (...) da cidadania, da moralidade pública, da justiça e da paz social” (Art. 2º, Código de Ética e Disciplina da OAB).

O artigo 2º do Código de Ética, porém, não apenas caracteriza a natureza do “ser” do advogado, mas também atribui vários “deveres” públicos a ele. Diz o dispositivo que o advogado deve melhorar a si mesmo, num “aperfeiçoamento pessoal” constante (IV, do mesmo artigo). O compromisso de empenho regularmente ordenado é necessário às demais atribuições expostas no artigo, como “contribuir para o aprimoramento das instituições, do Direito e das leis (V, do mesmo artigo); pugnar pela solução dos problemas da cidadania e pela efetivação dos seus direitos individuais, coletivos e difusos, no âmbito da comunidade (IX, do mesmo artigo); e abster-se de emprestar concurso aos que atentem contra a ética, a moral, a honestidade e a dignidade da pessoa humana” (VII, d, do mesmo artigo). O advogado - como jurista e cidadão - tem no seu trabalho, não só o dever de proteger a sua sobrevivência (bem como, na sua ação pública, viabilizar a estabilidade do Jus), mas também as ações públicas dos outros cidadãos. Assim, ele, na esfera pública, tem sua participação maximizada, podendo-se deduzir que o advogado sempre está na esfera pública.

Já que representante dos interesses e defesa dos advogados (artigo 44, II, do EAOAB), o que é, hipoteticamente, o interesse coletivo e defesa do povo, à Ordem dos Advogados do Brasil são atribuídas funções análogas às de seus membros. Assim, a OAB, não mantendo vínculo com a administração pública (§ 1º do mesmo artigo), deve defender a Constituição, a ordem jurídica, o Estado Democrático de Direito, os direitos humanos, a justiça social, a aplicação eficiente das leis, a administração da Justiça e as instituições jurídicas, além do aperfeiçoamento da cultura (Art. 44, I, do EAOAB). A OAB configura-se como uma representação do dever legal dos advogados de orientação e defesa do povo, no caminho da integração e da liberdade real, em uma reforma politica substancial (cultural), e não só legal. Contudo, as funções públicas dos advogados e da OAB, ainda existem quando os advogados retiram-se da prática de postulação em juízo, e voltam-se exclusivamente para os estudos do Direito.

Paulo Nader auxilia na distinção entre o “operador do Direito” e o “jurista”. Os operadores manipulam o Direito, por meio da postulação e aplicação, já os juristas conhecem o Direito. Nessa investigação o jurista não só sistematiza e interpreta o Direito (nível da prática), mas também o questiona, avaliando se as leis estão em conformidade com os fatos e valores sociais (fase da crítica). Por último, ele ainda pode influenciar a opinião do legislador (em seu “trabalho” de confecção da “lex”), construindo e remodelando o Direito[51]. Em todos esses aspectos, o jurista atua em seu “trabalho” na esfera privada, porém, mesmo se afastado da operação da norma (como advogado), o estudioso do Direito tem também um dever social, pois, devido a sua credibilidade (fonte do Direito – a doutrina) ele influencia decisões judiciais, pondo em suas costas uma grande responsabilidade: “colocar a sua cultura a serviço do aperfeiçoamento das instituições e da conscientização da sociedade em geral”[52].

Neste contexto, o dever (legal e moral) dos advogados (e também da OAB) e/ou juristas pode incidir em dois momentos do processo para a liberdade do povo: no início, na indução de respostas reflexivas (incluindo a valoração da justiça), com a ação pública do advogado, ou no final, na defesa do Direito, com o trabalho privado do advogado em juízo. Assim, o advogado, tendo ciência da história do Brasil, pois o estudo do Direito também exige este conhecimento[53], deve orientar o desfazimento do que foi moldado na fase embrionária do Estado, sugerindo as respostas reflexivas que são inviabilizadas quando se têm apenas contatos, e oferecer ao povo a oportunidade de construir as relações que foram tolhidas a partir da divisão das grandes faixas de terras e outros muitos fenômenos históricos. Tem-se aí uma verdadeira reforma política, uma reformulação cultural.

A orientação, não só a respeito das leis, mas sobre os sentidos do Direito, como exposto, é dever legal do advogado, que deve, para tanto, ir além do seu trabalho em juízo, e efetivar, de fato, sua função pública na polis, discutindo, orientando, reformulando, e conduzindo o povo ao exercício da liberdade. Essa reformulação de comportamentos é mais profunda do que qualquer reforma política legal discutida por um povo sem integração, que facilmente, novamente, como quase sempre, poderá ser vítima das anomalias do sistema representativo. Após a reformulação que poderá integrar os cidadãos, a reforma política legal poderá ser finalmente viabilizada. No contexto, a ação pública do advogado poderá ser capaz de induzir a integração do povo, e, por sua vez, provocar a ação política de uma comunidade hoje massificada, voltada para o trabalho com finalidade exclusiva de sobrevivência.

Sobre o autor
Lucas Maia Carvalho Muniz

Bacharel em Direito pela Faculdade Ruy Barbosa, bacharelando em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia, especializando em Ciências Criminais pela Faculdade Baiana de Direito. Advogado

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MUNIZ, Lucas Maia Carvalho. A responsabilidade dos advogados no auxílio à correção dos problemas sociopolitícos embrionários brasileiros.: O advogado como agente de tradução do direito e de integração social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4139, 31 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30425. Acesso em: 19 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!