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A aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor ao contrato de transporte aéreo nacional de pessoas

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Agenda 11/08/2014 às 14:38

Faz-se um estudo da relação jurídica como um todo, mas com especial foco no contratante vulnerável, trazendo à tona circunstâncias comuns da contratação do serviço de transporte e informando os passageiros de seus direitos e deveres.

1. INTRODUÇÃO

É notório que o mercado e a economia, na medida de suas evoluções, acabam por exigir meios de locomoção suficientemente aptos a atenderem as suas necessidades, modernizando-se e possibilitando aos seus usuários a agilidade, o conforto e, principalmente, a otimização de tempo almejados. Seguindo esta lógica, era de se esperar que ocorressem inúmeras mudanças na aviação civil no decorrer dos anos, justamente por este ser, atualmente, um dos meios de transporte mais céleres que se tem conhecimento.

Ocorre que este cenário de crescente desenvolvimento de um mercado, somado à evolução das companhias aéreas e ao consequente preço mais acessível dos bilhetes de passagem no decorrer dos anos, está lógica e diretamente relacionado ao crescente desenvolvimento do seu consumo, isto é: a demanda pelo transporte aéreo, em especial o nacional, tem aumentado de forma notoriamente relevante ao passar dos anos. Este cenário, ao mesmo tempo em que se apresenta social, econômica e politicamente interessante, pode se mostrar preocupante quando observado sob o viés das legislações a ele aplicáveis, especialmente quando se foca na aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, tão eminentemente principiológico e assecuratório de direitos.

O estudo abrangente do contrato de transporte aéreo e da regularidade e do respeito às legislações específicas, além da análise da responsabilidade civil das empresas de transporte aéreo de pessoas quando da inobservância de seus deveres e das práticas abusivas que frequentemente ocorrem no decorrer da contratação, mostra-se de todo relevante, justamente porque sabe-se serem comuns os casos de usuários lesados diante do caos aéreo que acabou se implantando dentro do Brasil quando do crescimento acelerado da demanda.

Desta forma, por se tratar de mercado em expansão e possuidor de inúmeras falhas, é de extrema relevância que se analise a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor no que tange ao tema, buscando incentivar a busca pelo respeito aos direitos de cada consumidor e, consequentemente, minimizando os efeitos das diversas abusividades comumente cometidas neste campo.

Para tanto, abordar-se-á, no primeiro capítulo deste trabalho, os aspectos gerais do Código de Defesa do Consumidor, explicando o que é e como se dá a Política Nacional das Relações de Consumo, elencando, na sequência, alguns dos princípios basilares que orientam as relações de consumo e enumerando os principais direitos básicos dos consumidores relevantes para o tema aqui anotado. Ainda, explicitar-se-á neste primeiro capítulo quais são os pressupostos da relação de consumo, determinando, assim, não só quais são os elementos necessários para a formação deste tipo de relação, mas como também a exposição de fatores que a descaracterizam como tal, de acordo, principalmente, com as correntes de interpretação existentes acerca da qualificação de consumidor.

Feitas essas considerações, focar-se-á, no segundo capítulo, especificamente no contrato de transporte aéreo de pessoas, explicando, de início, no que consiste este tipo de contrato, como se dá e quais as suas principais características. Revelados e elucidados os conceitos básicos do contrato de transporte aéreo de pessoas, dar-se-á a breve análise do histórico do aumento da demanda nacional, da evolução legislativa deste tipo de transporte no Brasil e dos direitos e deveres legalmente assegurados tanto às empresas de transporte aéreo quanto aos seus respectivos passageiros.

Ato contínuo, far-se-á, no terceiro capítulo, a análise da aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor no contrato de transporte aéreo nacional de pessoas, isto é, avaliando e defendendo a possibilidade da efetiva aplicação deste na relação contratual existente entre uma empresa de transporte aéreo e seu passageiro, em que condições esta se dá e o que o Código deve assegurar e/ou evitar a ocorrência. Para tanto, buscar-se-á relacionar os pressupostos da relação de consumo, genericamente falando, com as partes contratantes do transporte aéreo de pessoas, assim como avaliar-se-ão os aspectos gerais da responsabilidade civil do transportador aéreo, com fulcro nas legislações aplicáveis. Finalmente, serão expostas quais são as práticas abusivas mais ocorrentes no contrato de transporte aéreo de pessoas e como o passageiro pode se defender das mesmas, ao mesmo tempo em que se discute o que deve o transportador almejar fazer para evitá-las.

Assim, utilizando-se do método indutivo e fazendo uma pesquisa predominantemente descritiva e de análise de textos, artigos e obras relacionadas ao tema pesquisado, com referências também aos dispositivos legais e à jurisprudência pertinente, o presente trabalho terá como objetivo principal focar na análise da responsabilidade civil do transportador quanto aos danos causados aos seus passageiros e da exposição dos direitos dos usuários do serviço de transporte, a partir da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, das práticas comuns no mercado de transporte aéreo de pessoas e, ainda, das mudanças no tratamento deferido ao consumidor no decorrer dos anos, tendo por bem incentivar os consumidores a buscarem o respeito aos seus direitos e terem maior ciência quanto à existência de erro ou falha na prestação dos serviços oferecidos, minimizando, assim, os efeitos e a frequência dos abusos cometidos pelas empresas de transporte aéreo neste mercado.


2. O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

2.1. POLÍTICA NACIONAL DAS RELAÇÕES DE CONSUMO

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) é uma lei de ordem pública econômica, conforme expressa previsão constitucional1, e, assim sendo, é norma com caráter de função social. Imperioso reconhecer que “a entrada em vigor de uma lei de função social traz como consequência modificações profundas nas relações juridicamente relevantes na sociedade”2 e, para tanto, foi necessária uma abrangente e precisa proteção do grupo social a que se pretendia alcançar: consumidor, justamente porque este “não dispõe de controle sobre os bens de produção e, por conseguinte, deve se submeter ao poder dos titulares destes”3.

A ideia de submissão nas relações de consumo, certamente, ocasiona uma desigualdade contratual, na qual um lado da relação possui maior poder de palavra e imposição que o outro. Foi, então, a partir deste cenário de claro desequilíbrio entre os participantes das relações de consumo, e de carente intervenção estatal, que surgiu a Política Nacional das Relações de Consumo (PNRC), prevista nos arts. 4º4e 5º5do CDC. Conforme as palavras de José Geraldo Brito Filomeno, “quando se fala em ‘política nacional de relações de consumo’, por conseguinte, o que se busca é a propalada ‘harmonia’ que deve regê-las a todo o momento”6.

O art. 4º do CDC é “um dos artigos mais citados deste Código, justamente porque resume todos os direitos do consumidor e sua principiologia em um só artigo valorativo”7, de forma que é, então, o responsável pela apresentação da PNRC. O conteúdo do referido dispositivo, segundo José Geraldo Brito Filomeno,

Visa exatamente a harmonia das sobreditas ‘relações de consumo’, porquanto, se por um lado efetivamente se preocupa com o atendimento das necessidades básicas dos consumidores (isto é, respeito à sua dignidade, saúde, segurança, e aos interesses econômicos, almejando-se a melhoria de sua qualidade de vida), por outro visa igualmente a paz daquelas, para tanto atendidos certos requisitos, como serão analisados a seguir, dentre os quais se destacam as boas relações comerciais, a proteção da livre concorrência, do livre mercado, da tutela das marcas e patentes, inventos e processos industriais, programas de qualidade e produtividade, enfim, uma política que diz respeito muito mais ao mais perfeito relacionamento possível entre consumidores – todos nós em última análise, em menor ou maior grau – e os fornecedores.8

A principal finalidade da PNRC é exteriorizar os objetivos do CDC, quais sejam, conforme previsão ipsis litteris do art. 4º: o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo.

Para tanto, corroborando os ideais lançados, o Código impõe alguns princípios, que serão abordados oportunamente neste trabalho, quais sejam: princípio da vulnerabilidade (art. 4º, I), princípio do dever governamental (art. 4º, II e VIII), princípio da garantia da qualidade, prestabilidade e adequação (art. 4°, II, "d" e V), princípio da boa fé (art. 4º, III), princípio da harmonia nas relações de consumo (art. 4º, III), princípio da informação (art. 4º, IV), princípio da confiança (art. 4º, V), princípio da segurança (art. 4º, V e VII), princípio do combate ao abuso (art. 4º, VI), princípio do acesso à justiça (art. 6º, VII e VIII9), princípio da solidariedade (art. 7º, parágrafo único10), princípio da equidade (art. 51, IV11), entre outros.

Como parte igualmente fundamental da PNRC, tem-se o art. 5º do CDC, o qual estabelece os instrumentos para a realização desta política ou destes objetivos ora citados, como, entre outros, a assistência jurídica, integral e gratuita, para o consumidor carente (art. 5º, I), as Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, no âmbito do Ministério Público (art. 5º, II), as delegacias de polícia especializadas no atendimento de consumidores vítimas de infrações penais de consumo (art. 5º, III), os Juizados Especiais de Pequenas Causas e Varas Especializadas para a solução de litígios de consumo (art. 5º, IV), assim como a concessão de estímulos às Associações de Defesa do Consumidor (art. 5º, V). Por meio das previsões do art. 5º, então, “o poder público contará com instrumentos voltados para a defesa do consumidor com atuações nos campos da educação, da orientação e das identificações de situações insatisfatórios para os consumidores”12, com fulcro no art. 55, §1º13do CDC, inclusive.

Expostas estas considerações, tem-se a importância da PNRC e a caracterização do seu maior objetivo: harmonizar os interesses envolvidos em uma relação de consumo, fazendo com que sejam atendidas as necessidades dos consumidores ao mesmo tempo em que se efetiva a execução do objeto justificador da existência do fornecedor, alcançando, assim, o equilíbrio entre as partes.

2.2. PRINCÍPIOS BASILARES DAS RELAÇÕES DE CONSUMO

2.2.1. Princípio da Vulnerabilidade

O princípio da vulnerabilidade é extraído do art. 4º, inciso I do CDC e é reconhecido como o princípio básico do CDC, eis que fundamenta toda a razão de ser da proteção do consumidor nas relações de consumo. Tal princípio busca, essencialmente, “estabelecer o equilíbrio necessário a qualquer harmonia econômica no relacionamento ‘consumidor-fornecedor’”14.

A ideia de vulnerabilidade, conforme Bruno Miragem,

Associa-se à identificação de fraqueza ou debilidade de um dos sujeitos da relação jurídica em razão de determinadas condições ou qualidades que lhe são inerentes ou, ainda, de uma posição de força que pode ser identificada no outro sujeito da relação jurídica.15

Este princípio basilar decorre, portanto, da posição de submissão e inferioridade do consumidor nas relações de consumo, eis que, por utilizar do fornecimento dos produtos ou da prestação dos serviços dos fornecedores, o consumidor tem suas escolhas limitadas e deve se submeter ao que é oferecido no mercado. Segundo Bruno Miragem, “o reconhecimento desta situação pelo direito é que fundamenta a existência de regras especiais, uma lei ratione personae de proteção do sujeito mais fraco da relação de consumo”16. Assim sendo, a vulnerabilidade é qualidade intrínseca de todo consumidor, tratando-se de presunção legal absoluta.

A doutrina e a jurisprudência costumam distinguir algumas espécies de vulnerabilidade e o fazem por entender que os consumidores, apesar de sempre serem vulneráveis, não o são da mesma forma. Conforme expõe Bruno Miragem17, Cláudia Lima Marques, por exemplo, distinguiu a vulnerabilidade em quatro grandes espécies - vulnerabilidade técnica, vulnerabilidade jurídica ou científica, vulnerabilidade fática e, mais recentemente, vulnerabilidade informacional – e Paulo Valério Dal Pai Moraes ainda acrescentou a estas, por sua vez, outras três espécies - vulnerabilidade política ou legislativa, vulnerabilidade biológica ou psíquica e vulnerabilidade ambiental –, sendo certo que estas são as principais divisões reconhecidas sobre o tema.

Basicamente, no que tange às citadas divisões feitas por Cláudia Lima Marques, considera-se que a vulnerabilidade técnica decorre da ideia de que o consumidor não tem todo o conhecimento técnico ou especializado sobre o produto ou o serviço que se está contratando; a vulnerabilidade jurídica ou científica parte do pressuposto de que o consumidor não tem o conhecimento adequado sobre os seus direitos e deveres ou, também, não tem noções econômicas e contábeis suficientes para compreender as consequências efetivas das relações que estabelece sobre o seu patrimônio; já a vulnerabilidade fática tem abrangência genérica e decorre, principalmente, da capacidade econômica e social do consumidor contratante; e, por sua vez, a vulnerabilidade informacional parte da ideia de que o consumidor não tem acesso a todas as informações adequadas sobre o produto ou o serviço que se pretende adquirir.

Já no que se refere às espécies adicionais de Paulo Valério Dal Pai Moraes, subentende-se que a vulnerabilidade política ou legislativa parte da ideia de que o lobby dos fornecedores nas casas parlamentares e demais autoridades públicas é muito maior do que o dos seus consumidores; a vulnerabilidade biológica ou psíquica decorre da exposição do consumidor ao marketing e às modernas técnicas adotadas pelos fornecedores no momento da apresentação do produto ou do serviço; e, ainda, a vulnerabilidade ambiental é representada pelos processos e produtos poluentes que chegam ao mercado e que, de alguma forma, prejudicam o consumidor.

Ressalta-se que, no caso de consumidores crianças e idosos, caracteriza-se a hipervulnerabilidade ou a vulnerabilidade agravada, ou seja: a acentuação da vulnerabilidade reconhecida aos demais consumidores. Tal diferenciação ocorre justamente porque estas pessoas, além de já terem proteções especiais no Direito – a criança no art. 22718da Constituição Federal (CF) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº. 8.069/90) e o idoso no art. 23019da CF e no Estatuto do Idoso (Lei nº. 10,741/03) –, possuem características específicas próprias que as tornam mais propensas ao desequilíbrio existente nas relações de consumo e, portanto, merecem maior atenção e presunção de sua situação de vulnerabilidade acentuada. O CDC reconhece essas hipervulnerabilidades e as utiliza como critério para aplicação em determinadas hipóteses, relacionadas à responsabilidade, à proteção contra práticas abusivas e publicidades enganosas e outras situações ocorrentes, no caso da criança, nos arts. 37, §2º20e 39, IV21, por exemplo, e, no caso do idoso, entre outros, nos arts. 3022, 3523, 39, IV e 4624.

Importante ressaltar, ainda, a diferença entre vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor, eis que a primeira é regra de direito material e a segunda, prevista no inciso VIII do art. 6º25do CDC, é tão somente processual. A hipossuficiência decorre do caso em concreto e, quando reconhecida pelo juiz, possibilita a facilitação da defesa e a inversão do ônus da prova nos processos judiciais, garantindo a igualdade entre as partes no processo. É relacionada a “uma ligação umbilical que o legislador constitucional e infra-constitucional faz do direito de acesso à Justiça com as condições econômicas da pessoa”26, partindo sempre de uma análise subjetiva e casual. Apesar da hipossuficiência se relacionar com os ideais do princípio da vulnerabilidade, não é sinônimo dele, já que, como visto, este último é sempre presumido e decorre tão somente da caracterização de relação de consumo.

2.2.2. Princípio da Informação

Primeiramente, importante ressaltar que o respeito à informação é exigência imprescindível quando se tem em vista o contexto atual das sociedades, eis que, conforme palavras de Luís Gustavo Grandinetti Castanho, “não há sociedade sem comunicação de informação. [...] O pensar e o transmitir o pensamento são tão vitais para o homem como a liberdade física”27.

Levando em conta, principalmente, esta realidade de inerência e constância da informação nas sociedades atuais, tem-se que o princípio da informação é uma das mais importantes balizas norteadoras das regras previstas na PNRC. O dever de informação é, portanto, princípio fundamental dentro do sistema de defesa e proteção ao consumidor e, inclusive, está intimamente ligado aos princípios da boa-fé e da transparência, os quais também estão previstos no CDC e são igualmente considerados essenciais a qualquer relação de consumo.

Conforme alerta José Geraldo Brito Filomeno28, é de todos a tarefa de informar: Estado, empresas, órgãos públicos e entidades privadas de defesa ou proteção do consumidor. E, “embora haja vários instrumentos colocados à disposição do consumidor (art. 5º do Código), há que se bem informá-lo até para que a eles tenha o devido acesso”29.

O dever de informação nas relações de consumo, segundo Ricardo Luis Lorenzetti,

Alude a uma conduta imposta a alguém, a fim de que esclareça a outra pessoa relacionada, ou que pode se relacionar com ele, aspectos que conhece e que diminuem, ou podem diminuir, a capacidade de discernimento, ou de previsão, do outro, se tais dados não se subministram. Poderíamos dizer que se trata do dever jurídico obrigacional.30

Além da imposição do dever de informação para o fim de intensificar a capacidade de discernimento do consumidor e amenizar o desequilíbrio nas relações de consumo, a informação deve ser considerada, da mesma forma, no que tange a sua relação com a educação. Segundo Antônio Carlos Efing,

A educação caminha junto com a informação, e estas almejam a efetiva proteção e defesa do consumidor. Desta forma, quanto mais desenvolvido o sistema educacional, maior a possibilidade de se concretizar o fim pretendido por estes institutos. À medida que a sociedade de consumo passa a ser informada, suas chances de defesa e obtenção de tutela aumentam em proporção igual ou superior.31

Seguindo esta lógica, observa-se a forte ligação que a informação tem, também, com a educação; tanto é assim que o CDC menciona a educação e a informação no mesmo artigo, qual seja: 4º, inciso IV. E esta educação engloba a educação para as relações de consumo, inclusive, tendo em vista que a tecnologia, que alcança a todos, não é compreensível e preferível por todos.

Antônio Carlos Efing apresenta duas principais interpretações da informação garantida no CDC: “a informação de cunho educacional, no sentido de conscientização dos consumidores acerca da busca dos seus interesses”32e a “informação sobre os produtos e serviços colocados à disposição no mercado de consumo”33. Ou seja, a informação deve se dar tanto de uma maneira educativa, dando ciência ao consumidor dos seus direitos e deveres, quanto de uma maneira propriamente informativa, fazendo com que o consumidor saiba o que efetivamente está adquirindo e quais são os esclarecimentos pertinentes e necessários ao uso do produto ou garantia do serviço que necessariamente devem ser disponibilizados a ele.

De qualquer forma, seja qual for a interpretação utilizada no caso em concreto, a informação tem de ser qualificada, ou seja, deve ter como principais elementos: a clareza, a precisão, a veracidade, a completude, a adequação e a compreensibilidade. Uma informação é clara quando utiliza de signos e sinais apropriados, é precisa quando marcada pela exatidão e fidelidade das orientações, é verídica quando representa o exato conhecimento sobre o produto ou o serviço, é completa quando os signos e símbolos representam integralmente o produto ou o serviço disponibilizado, é adequada quando utiliza-se de meios e conteúdos suficientes à sua compreensão e, finalmente, é compreensível quando pode ser facilmente entendida por todos os consumidores, inclusive os leigos34.

Finalmente, traz-se a tona, ainda, a consideração de que os consumidores tem tanto o direito à informação, quanto o direito a não ser informado, ou seja: tem o consumidor o direito de escolha entre ser ou não informado acerca do produto ou serviço a ser adquirido. Diferentemente do fornecedor, que tem um dever de informar, o consumidor tem, portanto, a opção de se valer, ou de não se valer, do seu direito de ser informado.

2.2.3. Princípio da Boa-Fé

O princípio da boa-fé é considerado o princípio máximo tanto das relações de consumo quanto das relações privadas em geral e dele decorrem diversos deveres anexos35, ou seja, deveres gerais de conduta. Assim como grande parte dos princípios previstos no CDC, o da boa-fé está previsto no art. 4º, mais especificamente em seu inciso III.

A boa-fé é gênero do qual são espécies a boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva, sendo certo que somente a segunda está presente no princípio ora em questão. A boa-fé subjetiva é caracterizada como uma forma de conduta, pois decorre de um estado psicológico que se reconhece à pessoa. Sendo considerada interna ao ser humano, impossibilita a produção de qualquer prova ou a imposição de qualquer forma. Já a boa-fé objetiva, esta sim de interesse do Direito, é uma norma de conduta, uma ética comportamental que é,

Fonte de deveres jurídicos não expressos, ou seja, deveres que não estão estabelecidos na lei ou no contrato, mas que decorrem da incidência do princípio sobre uma determinada relação jurídica, implicando o reconhecimento de deveres jurídicos de conduta36.

Karl Larenz ensina, também, que “o princípio da boa-fé significa que cada um deve guardar fidelidade com a palavra dada e não frustrar a confiança ou abusar dela, já que esta forma a base indispensável de todas as relações humanas”37.

Ainda, Carlos Roberto Gonçalves explana que o princípio da boa-fé objetiva, “impõe ao contratante um padrão de conduta, de agir com retidão, ou seja, com probidade, honestidade e lealdade, nos moldes do homem comum, atendidas as peculiaridades dos usos e costumes do lugar”38.

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Conforme se vê, a boa-fé é muito abrangente e pode ter numerosas definições, mas o que não se discute é a exigência do respeito e da lealdade com o outro sujeito da relação e com as suas legítimas expectativas39, impondo que as partes se comportem de forma correta tanto no momento das tratativas quanto durante a formação, cumprimento e após a extinção do contrato.

A aplicação do princípio da boa-fé tem, principalmente, uma função harmonizadora entre as relações de consumo, mas, além dessa, possui ainda outras três: “a) fonte autônoma de deveres jurídicos; b) limite ao exercício de direitos subjetivos; c) critério de interpretação e integração dos negócios jurídicos”40.

Ainda, a incidência do princípio da boa-fé nas relações contratuais, sejam estas de consumo ou não,

Implica a multiplicação de deveres das partes. Assim, são observados não apenas os deveres principais da relação obrigacional (o dever de pagar o preço ou entregar a coisa, por exemplo), mas também deveres anexos ou laterais, que não dizem respeito diretamente com a obrigação principal, mas sim com a satisfação de interesses globais das partes, como os deveres de cuidado, previdência, segurança, cooperação, informação, ou mesmo os deveres de proteção e cuidado relativos à pessoa e ao patrimônio da outra parte41.

Os deveres anexos da relação de consumo são, como dito, deveres gerais de conduta. Assim sendo, o cuidado, a segurança, a cooperação, a informação e os tantos outros deveres decorrentes da boa-fé deverão ser igualmente observados pelo Direito.

A boa-fé é sempre presumida, devendo a má-fé, portanto, ser comprovada. Em caso de comprovação da má-fé ou de inobservância da boa-fé, ocorre a violação positiva do contrato, ou seja, a inobediência dos deveres anexos ora citados. Essa violação positiva do contrato decorrerá, então, não do descumprimento da prestação principal, mas sim da inobservância dos deveres anexos ditados pelo princípio da boa-fé objetiva, daí a relevante importância deste.

Cumpre ressaltar, por fim, que o princípio da boa-fé “deve ser seguido por ambas as partes da relação de consumo, justamente por seu caráter universal, visando à aproximação de interesses entre consumidor e fornecedor”42. Ou seja, o princípio ora explicitado é de observância tanto do consumidor quanto do fornecedor, justamente porque deve ser mantido o respeito mútuo, fazendo com que a relação seja a mais transparente e segura possível para ambos os contratantes.

2.2.4. Princípio da Confiança

O princípio da confiança não tem expressa previsão no CDC, porém, em compensação, decorre, eis que é um dever anexo, de um princípio muito importante: boa-fé objetiva. Ainda, é intimamente ligado ao princípio da transparência43, o qual, além de também decorrer do princípio da boa-fé objetiva e possuir o dever de informação como consequência, impõe uma relação de cooperação entre consumidor e fornecedor.

Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro afirma que a confiança do contratante “exprime a situação em que uma pessoa adere, em termos de actividade ou de crença, a certas representações, passadas, presentes ou futuras, que tenha por efectivas”44, ou seja, se baseia em representações motivadas e estimuladas pelo fornecedor e tomadas como realidade pelo consumidor. Sérgio Cavalieri Filho, por sua vez, conceitua ‘confiança’ como “a credibilidade que o consumidor deposita no produto ou no vínculo contratual como instrumento adequado para alcançar os fins que razoavelmente dele se espera”45. É notório, a partir dessas exposições, que o princípio da confiança possui, portanto, forte correspondência com as legítimas expectativas dos consumidores. Nota-se, assim que, havendo quebra do princípio da confiança, estar-se-á ferindo a legítima expectativa, respeitável fator presente nas relações de consumo.

É importante constar, antes de prosseguir, que esta observância ao princípio da confiança deve se dar tanto de uma forma positiva, conquistando a literal confiança do consumidor, quanto de uma forma negativa, ou seja, abstendo-se o fornecedor de comportamentos que impliquem em desconfiança.

Cláudia Lima Marques, ao referir-se ao princípio da confiança, aponta que,

No sistema do CDC, leis imperativas irão proteger a confiança que o consumidor depositou no vínculo contratual, mais especificamente na prestação contratual, na sua adequação ao fim que razoavelmente dela se espera, e irão proteger também a confiança que o consumidor deposita na segurança do produto ou do serviço colocado no mercado.46

É importante ressaltar, portanto, que a confiança do consumidor na prestação contratual não diz respeito tão somente à adequação e qualidade do produto ou do serviço, mas principalmente à segurança que dele se espera.

O princípio da confiança, segundo Cláudia Lima Marques, foi criado para,

Garantir ao consumidor a adequação do produto ou do serviço, para evitar riscos e prejuízos oriundos dos produtos e serviços, para assegurar o ressarcimento do consumidor, em caso de insolvência, de abuso, desvio da pessoa jurídica-fornecedora, para regular também alguns aspectos da inexecução contratual do próprio consumidor.47

Então, um dos principais efeitos do princípio da confiança no CDC está presente no seu art. 3048, do qual decorre a ideia de que “a oferta vincula, cria obrigação pré-contratual, para que não se frustre a legítima expectativa criada no consumidor”49. Ainda, poder-se-ia citar o art. 31. do CDC, o qual prevê que a oferta e a apresentação dos produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores, sendo certo que tais exigências acabam por refrear a ocorrência de expectativas ilegítimas.

A confiança do consumidor, no mais das vezes, é depositada em toda a cadeia de fornecedores, sejam eles diretos ou indiretos, e, portanto, no que tange à responsabilidade, o Código “quando alude ao fornecedor, [...] pretende alcançar todos os partícipes do ciclo produtivo-distributivo, vale dizer, todos aqueles que desenvolvem as atividades descritas no art. 3º do CDC”50. Para o sistema do CDC, a responsabilidade civil dos fornecedores se divide em responsabilidade por fato do produto ou do serviço (arts. 12. a 17, CDC), responsabilidade por vício do produto ou do serviço (arts. 18. a 25) e responsabilidade (subjetiva) do profissional liberal (art. 14, §4º), sendo certo que toda a cadeia de fornecedores tende a ter responsabilidade objetiva, independente de culpa, e solidária (art. 7º, parágrafo único) sobre os vícios de qualquer natureza ou os danos e riscos à saúde e a segurança de qualquer grau que seus produtos ou serviços vierem a causar aos consumidores, bastando que estejam presentes os elementos conduta, defeito, nexo de causalidade e dano, sendo certo que este último é o efetivo pressuposto de responsabilidade. Ocorre a exclusão da responsabilidade, porém, nos casos previstos nos arts. 12, §3º51e art. 14, §3º e, apesar de não previsto no CDC, na ocorrência de caso fortuito ou força maior52.

De qualquer forma, é de extrema importância ter em mente, no caso de uma relação de consumo, a necessidade de se respeitar e preservar a confiança depositada pelo consumidor no produto ou no serviço a que se adquire.

2.2.5. Princípio da Garantia da Qualidade, Prestabilidade e Adequação

O sistema de garantia trazido pelo CDC preza, sempre e principalmente, pela qualidade dos produtos e serviços, assim como sua prestabilidade e adequação, conforme previsão do art. 4°, incisos II, alínea "d" e V do CDC. Tal ideia é inerente à observância do princípio da confiança, mencionado anteriormente.

Cláudia Lima Marques destaca que “o fim último da garantia de adequação instituída pelo CDC é o reequilíbrio da relação de consumo, especialmente da contratual”53, de modo que o princípio da garantia da qualidade, prestabilidade e adequação possui relação, também, com o princípio da vulnerabilidade e o da equidade.

O fornecedor é sempre protagonista e responsável à efetivação da qualidade e adequação dos seus produtos e serviços, ou seja: possui um papel plenamente ativo. A garantia de adequação do produto ou do serviço, segundo Cláudia Lima Marques, “é um verdadeiro ônus natural para toda a cadeia de produtores; a adequação do produto nasce com a atividade de produzir, de fabricar, de criar, de distribuir, de vender o produto”54.

José Geraldo Brito Filomeno, apresenta um conceito que expande e explicita bem o ideal do princípio,

O conceito de ‘qualidade’ não é mais a adequação às normas que regem a fabricação de determinado produto ou a prestação de um determinado serviço, tão somente, mas principalmente a satisfação de seus consumidores, tem-se que cabe às próprias empresas o zelo por esse tipo de qualidade, até para o seu próprio crescimento.55

Para tanto, os fornecedores, tendo em vista a grande responsabilidade que tem pelos seus produtos ou serviços, devem prezar por:

Como se vê, então, o fornecedor não deve se preocupar, tão somente, com a qualidade do produto ou do serviço em si, mas com toda a relação que este tem com o seu consumidor, ou seja: uma adequação no que diz respeito ao tratamento, ao alcance das legítimas expectativas, à totalidade e suficiência das informações e à atenção às sugestões recebidas. Deve-se oferecer uma qualidade tamanha que enseje uma plena e perfeita satisfação da parte que adquire ou faz uso dos produtos ou serviços ofertados.

Finalmente, insta ressaltar que “a garantia de adequação a ser promovida pelos fornecedores deve ter o apoio secundário do Estado, como mero agente fiscalizador da consagração deste princípio”57, ou seja, há uma forte ligação ao princípio do dever governamental, o qual será abordado na sequência.

2.2.6. Princípio do Dever Governamental

O princípio do dever governamental, ou princípio da intervenção estatal, está previsto nos arts. 4º, inciso II e 5º do CDC e resulta da importância da atuação do Estado na defesa e proteção do consumidor, seja fiscalizando as relações de consumo ou proporcionando meios de se buscar a resolução de possíveis conflitos. A própria Constituição consagra o direito do consumidor como um direito fundamental (art. 5º, XXXII, CF)58e como princípio geral da ordem econômica (art. 170, V, CF), de forma que já decorre daí a imposição ao Estado deste papel de fiscalizar e garantir, portanto, os direitos legalmente reconhecidos aos consumidores.

O referido art. 4º, inciso II do CDC, dispõe que a ação governamental buscará proteger o consumidor por meio de iniciativa direta (alínea ‘a’), de incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas (alínea ‘b’), da presença do Estado no mercado de consumo (alínea ‘c’) e, ainda, da garantia de padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho dos produtos e serviços (alínea ‘d’).

Já o art. 5º do CDC, por sua vez, garante que o Poder Público contará com os seguintes instrumentos para alcance dos seus objetivos protetivos: manutenção de assistência jurídica, integral e gratuita para o consumidor carente (inciso I), instituição de Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, no âmbito do Ministério Público (inciso II), criação de delegacias de polícia especializadas no atendimento de consumidores vítimas de infrações penais de consumo (inciso III), criação de Juizados Especiais de Pequenas Causas e Varas Especializadas para a solução de litígios de consumo (inciso IV) e concessão de estímulos à criação e desenvolvimento das Associações de Defesa do Consumidor (inciso V).

Segundo Bruno Miragem,

Não se exige do Estado a neutralidade ao arbitrar, via legislativa ou judicial, as relações entre consumidores ou fornecedores. Ao contrário, o dever estatal de defesa do consumidor faz com que, por exemplo, o Código de Defesa do Consumidor, nesta condição, estabeleça aos consumidores uma série de direitos subjetivos e aos fornecedores os respectivos deveres de respeitar e realizar tais direitos.59

O Estado, em seu papel de incontestável importância, vai, portanto, buscar meios de garantir o respeito aos direitos subjetivos e deveres jurídicos inerentes às relações de consumo.

É possível a análise deste dever estatal sob outro ângulo ainda, o qual “reside no dever do próprio Estado de promover incessantemente a ‘racionalização e melhoria dos serviços públicos’ (art. 4º, VIII)”60, tendo em vista que “o próprio ente público, em alguns casos, assume o papel de fornecedor”61, cujos casos serão oportunamente abordados neste trabalho.

Por fim, é importante mencionar a lembrança de Antônio Carlos Efing62no que tange à ampliação da proteção do consumidor no mercado de consumo e a sua relação com o princípio do dever governamental, ressaltando o fato de ser ilegal qualquer retrocesso no padrão de defesa dos consumidores brasileiros.

2.2.7. Princípio da Equidade

O art. 51, inciso IV do CDC faz referência à equidade, que, segundo o Dicionário Jurídico, significa “disposição de reconhecer igualmente o direito de cada um. Conjunto de princípios imutáveis de justiça que induzem o juiz a um critério de moderação e de igualdade, ainda que em detrimento do direito objetivo”63. No referido artigo, o Código aborda as cláusulas contratuais abusivas, proibidas por lei e, portanto, sujeitas à revisão em juízo.

O princípio da equidade diz respeito às técnicas de hermenêutica, às técnicas de interpretação que o juiz pode se valer a fim de analisar, em juízo, os direitos e deveres inerentes a uma relação de consumo. Segundo Cláudia Lima Marques, o princípio da equidade é o que visa o “equilíbrio de direitos e deveres nos contratos, para alcançar a justiça contratual”64.

A equidade, segundo Aristóteles65, tem duas funções: integradora e corretiva. Sérgio Cavalieri Filho explica que, a equidade, em sua função integradora,

Tem lugar quando há vazio ou lacuna na lei, caso em que o juiz pode usar a equidade para resolver o caso, sem chegar ao ponto de criar uma norma, como se fosse o legislador. Essa equidade integradora ou supridora de lacuna permite ao juiz, partindo das circunstâncias do caso específico que está enfrentando, chegar a uma conclusão, independentemente da necessidade de criar uma norma. Deve o juiz procurar expressar, na solução do caso, aquilo que corresponda a uma ideia de justiça da consciência média, que está presente na sua comunidade. Será, em suma, a justiça do caso concreto, um julgamento justo, temperado, fundado em sentimento comum de justiça. Aquilo que o próprio legislador diria se tivesse presente; o que teria incluído na lei se tivesse conhecimento do caso.66

Já a função corretiva da equidade, segundo o mesmo autor,

Permite ao juiz ir além da lei para garantir a aplicação do justo. Por outras palavras, o direito, que é obra da justiça para estabelecer uma relação de igualdade e equilíbrio entre as partes, na justa proporção do que cabe a cada um, permite ao juiz aplicar, em certos casos, a equidade corretiva. [...] é a regra a equidade corretiva, que permite ao juiz, quando tiver de afastar uma injustiça que resultaria da aplicação estrita da lei ou do contrato, ajustar a sua decisão ao caso que está tratando, para fazer um julgamento justo.67

Desta forma, tem-se a importância de sua observância em qualquer julgamento, mas, principalmente, nos que dizem respeito às lides de consumo. No caso do CDC, a norma do art. 51, inciso IV, dá ao juiz, portanto, a possibilidade de valorar, analisar e até revisar, de acordo com as características do caso concreto, as cláusulas contratuais, seja a pedido do consumidor, de suas entidades de proteção, do Ministério Público ou, ainda, ex officio.

2.2.8. Princípio da Solidariedade

O trabalho humano e a livre iniciativa são protegidos pelos arts. 1º, inciso IV68e 17069da Constituição, os quais fundamentam o princípio da solidariedade, que, apesar de não ser de uso exclusivo do direito do consumidor, é de fundamental importância a este. O CDC, especificamente, faz referência ao princípio da solidariedade em diversos momentos, como no caso dos arts. 7º, parágrafo único, 1870, 1971, 25, §1º72, 28, §3º73, 3474e 87, parágrafo único75.

Conforme se verá, o art. 3º76do CDC prevê que fornecedor é toda pessoa que participa da cadeia de fornecimento do produto ou do serviço que se contrata, seja direta ou indiretamente, seja contratual ou extracontratualmente. Assim sendo, aceitável é que, na relação de débito/crédito, débito/responsabilidade, a existência do contrato seja “oponível a todos, de modo que todo aquele que contribua para o seu descumprimento, sejam partes ou terceiros, responderá pelos prejuízos que causar”77. Cláudia Lima Marques expõe a seguinte problemática,

O consumidor muitas vezes não visualiza a presença de vários fornecedores, diretos e indiretos, na sua relação de consumo, não tem sequer consciência – no caso dos serviços, principalmente – de que mantém relação contratual com todos ou de que, em matéria de produtos, pode exigir informação e garantia diretamente daquele fabricante ou produtor com o qual não mantém contrato.78

Justamente em decorrência disso é que a teoria contratual do CDC deve permitir, conforme Cláudia Lima Marques79, uma visão conjunta do esforço econômico do ‘fornecimento’ e valorizar, a partir de uma responsabilidade solidária, a participação dos vários responsáveis pela organização e realização do fornecimento dos produtos ou serviços.

Tendo em vista essa realidade, é notório que os contratos de consumo geram efeitos sociais muito importantes, principalmente porque, segundo Bruno Miragem, a presença do princípio da solidariedade no direito do consumidor “não se restringe apenas à proteção do mais fraco nos contratos de consumo, mas adiante, a consideração dos múltiplos aspectos da relação de consumo e sua repercussão social”80.

Uma das características mais importantes dos contratos em geral, segundo a teoria clássica dos contratos, é a de que o contratado pelas partes não gera obrigações às pessoas que não os contratantes81e este é, sem dúvida, o efeito que acaba sendo mais relativizado no momento da aplicação do princípio da solidariedade. Bruno Miragem explica que essa relativização se trata de “uma superação da regra romana, segundo a qual res inter alios acta allius neque nocere neque prodesse potest (o negociado entre as partes não podem nem prejudicar nem beneficiar terceiros)”82e a principal razão para que isso ocorra é que, nas palavras de Antônio Junqueira de Azevedo é que, “embora não sejam partes dos contratos, os terceiros não podem se comportar como se o contrato não existisse”83.

A principal razão de ser do princípio da solidariedade é orientar a divisão de riscos estabelecidos pelo CDC. Conforme lição de Bruno Miragem,

A regra da responsabilidade civil objetiva estendida a toda a cadeia de fornecimento (todos os fornecedores que participam do ciclo econômico do produto ou serviço no mercado) é resultado dos ditames de solidariedade social, uma vez que orienta a adoção de um critério sobre quem deve arcar com os riscos da atividade econômica no mercado de consumo, afastando-se a regra da culpa para imputação da responsabilidade.84

Arruda Alvim apresenta a principal consequência da aplicação do princípio da solidariedade, qual seja: “cada responsável solidário responde pela totalidade dos danos, estando obrigado cada um individualmente a responder pela completa indenização”85, bastando para isso, tão somente, a caracterização do dano e do nexo de causalidade.

O princípio da solidariedade, portanto, permite que se observem os reflexos da atuação individual no mercado de consumo sobre a sociedade e orienta a divisão dos riscos instituídos pelo CDC, fazendo com que todos os fornecedores que contribuíram para que o produto ou o serviço fosse colocado à disposição dos consumidores sejam responsáveis pelos danos ou riscos que estes possam vir a causar.

2.3. DIREITOS BÁSICOS DO CONSUMIDOR

O art. 6º86do CDC apresenta um rol exemplificativo de direitos básicos do consumidor, que, segundo Sérgio Cavalieri Filho são “aqueles interesses mínimos, materiais ou instrumentais, relacionados a direitos fundamentais universalmente consagrados que, diante de sua relevância social e econômica, pretendeu o legislador ver expressamente tutelados”87.

Bruno Miragem, afirma que os direitos básicos do consumidor tem como finalidade “preservar a pessoa humana consumidora em suas relações jurídicas e econômicas concretas, protegendo seu aspecto existencial e seus interesses legítimos no mercado de consumo”88, tendo em vista, principalmente, a concepção de personalização das relações de consumo, ou seja: a ideia de que a pessoa humana se encontra no centro do ordenamento jurídico, nunca o seu patrimônio.

Os direitos básicos de maior relevância para o presente trabalho são o direito à vida, saúde e segurança, o direito à proteção contra práticas abusivas e cláusulas abusivas, o direito à efetiva prevenção e reparação de danos e, ainda, o direito de acesso à justiça, já que estes são os direitos que mais se destacam na relação existente entre um passageiro89e uma companhia aérea.

2.3.1. Vida, Saúde e Segurança

O direito à proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos ao consumidor está previsto tanto na PNRC quanto no art. 6º, inciso I do CDC. Porém, é relevante constar que tanto o direito à vida quanto o direito à segurança são, acima de tudo, direitos fundamentais de todo e qualquer ser humano (art. 5º, caput, CF), assim como a segurança e a saúde são direitos sociais (art. 6º, caput90 , CF) de imprescindível observância.

Insta ressaltar, de início, que estes direitos, justamente por sua importância, abrangem tanto a dimensão individual, quanto a coletiva (transindividual) dos consumidores, ou seja: o fornecedor tem para si um dever de segurança, seja ela física ou financeira91, em relação a todos os consumidores. Assim sendo, “não basta que os produtos e/ou serviços sejam simplesmente adequados aos fins a que se destinam (qualidade-adequação); é preciso que sejam seguros (qualidade-segurança)”92.

Bruno Miragem expõe que o direito à saúde é o que assegura “ao consumidor no oferecimento de produtos e serviços, assim como no consumo e utilização dos mesmos, todas as condições adequadas à preservação de sua integridade física e psíquica”93e que o direito à segurança “consiste basicamente em direito que assegura proteção contra riscos decorrentes do mercado de consumo”94, podendo ser considerado “como espécie de direito geral de não sofrer danos, ao qual corresponde o dever geral de proteção à vida, à pessoa e ao patrimônio do consumidor”95. Já o direito à vida, está intimamente relacionado à proteção da integridade física do consumidor.

O respeito ao direito de proteção da vida, saúde e segurança implica, por exemplo, em observância ao exposto nos arts. 8º96, 9º97e 1098do CDC, dos quais decorrem os deveres do fornecedor de viabilizar “a devida informação sobre os riscos que produtos e serviços possam apresentar, de maneira clara e evidente, ou simplesmente não colocá-los no mercado, se tais riscos forem além do que normalmente se espera deles”99e de “retirarem do mercado produtos e serviços que venham a apresentar riscos à incolumidade dos consumidores ou terceiros, alheios à relação de consumo, e comunicar às autoridades competentes a respeito desses riscos”100 .

Ainda, a violação do dever de segurança importa em um dever de indenizar pelo fato do produto ou do serviço (arts. 12, 13101 e 14, CDC), ou seja, pelos prejuízos decorrentes de defeitos do produto ou do serviço. E pode, outrossim, resultar em responsabilidade administrativa e até penal.

Vale lembrar que a nocividade e periculosidade inerentes ao produto ou serviço “não induz defeito (rectius vício de qualidade)”102 , já que estas acabam por ser normalmente aceitas ou previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, como é o caso, por exemplo, dos serviços de sauna e massagem, segundo explicação de Zelmo Denari103 .

Estes direitos são, portanto, direitos que asseveram direitos constitucionais e que visam a proteção do consumidor contra os riscos na sociedade de consumo, fazendo com que o consumidor tenha sua saúde, sua segurança, seja ela física ou financeira, e, por consequência, sua vida preservadas.

2.3.2. Proteção Contra Práticas Abusivas e Cláusulas Abusivas

O CDC atentou-se em reger a abusividade em duas relevantes circunstâncias: práticas abusivas e cláusulas abusivas. A proteção contra essas abusividades se encontra prevista no art. 6º, inciso IV, parte final do CDC, e é um direito básico do consumidor de relevante importância, principalmente prática, justamente porque “a sistemática das normas de proteção do consumidor orienta-se, em boa medida, na coibição do comportamento abusivo do fornecedor”104 .

Segundo Sérgio Cavalieri Filho, a expressão ‘prática abusiva’ remete a um conceito genérico, devendo ser considerado abusivo

Tudo o que afronte a principiologia e a finalidade do sistema protetivo do consumidor, bem assim se relacione à noção de abuso do direito (art. 187, Código Cível c/c art. 7º, caput, CDC), o que vale tanto para a relação fornecedor-consumidor, quanto para a relação dos fornecedores, entre si, como a concorrência desleal, por exemplo.105

Bruno Miragem, por sua vez, sustenta que prática abusiva é “toda a atuação do fornecedor em desconformidade com padrões de conduta reclamados, ou que estejam em desacordo com a boa-fé e a confiança dos consumidores”106 , ou seja, é toda a ação ou omissão que caracterize desrespeito a padrões de conduta que foram regularmente estabelecidos pelas partes, seja na fase de execução dos contratos de consumo, sejam nas fases pré e pós-contratual.

Sérgio Cavalieri Filho observa que as práticas abusivas devem ser consideradas,

Atos ilícitos ipso facto, apenas por existirem e se manifestarem no mundo das coisas, em descompasso com o ordenamento jurídico. Não há necessidade de que o consumidor seja efetivamente lesado ou, até, que se sinta lesado, como, por exemplo, o recebimento de cartão de crédito (não solicitado) em casa. Ainda que o consumidor desejasse ter um cartão de crédito e tenha gostado da iniciativa da administradora, mesmo assim, a prática é de ser considerada abusiva.107

No mesmo sentido, Antônio Carlos Efing ressalta que as práticas consideradas abusivas devem ser assim consideradas independentemente da ocorrência de dano para o consumidor, de modo que, “na verdade, o legislador quer alterada a conduta do fornecedor, atingindo objetiva e diretamente circunstâncias que poderiam resultar em danos ao consumidor”108 .

O art. 39. do CDC apresenta um rol exemplificativo de critérios concretos que permitem reconhecer o abuso nas práticas dos fornecedores, quais sejam: condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos (inciso I); recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes (inciso II); enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço (inciso III), com a ressalva de que as amostras grátis equiparam-se à tais produtos ou serviços (parágrafo único); prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços (inciso IV); exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva (inciso V); executar serviços sem a prévia elaboração de orçamento e autorização expressa do consumidor, ressalvadas as decorrentes de práticas anteriores entre as partes (inciso VI); repassar informação depreciativa, referente a ato praticado pelo consumidor no exercício de seus direitos (inciso VII); colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro) (inciso VIII); recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais (inciso IX); elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços (inciso X); deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou deixar a fixação de seu termo inicial a seu exclusivo critério (inciso XII); aplicar fórmula ou índice de reajuste diverso do legal ou contratualmente estabelecido (inciso XIII). Porém, tratando-se de um rol exemplificativo, outras práticas podem ser enquadradas como abusivas, a depender do caso em concreto.

Ainda, quanto às práticas abusivas, citam-se os arts. 40109 e 41110 do CDC, os quais, respectivamente, esclarecem os elementos que deverão constar nos orçamentos elaborados previamente à execução do serviço e determinam que deve ser respeitado o tabelamento de preços sempre que um produto ou serviço estiver sujeito a este tipo de previsão.

No que se refere às cláusulas abusivas, tem-se que estas são caracterizadas quando se figura o abuso de um direito em consequência de uma cláusula contratual. Ainda, uma cláusula contratual é presumidamente considerada abusiva quando “afronta aos bons costumes, ou quando ela se desviar do fim social ou econômico que lhe fixa o direito”111 .

Bruno Miragem sustenta que

O caráter abusivo de certas disposições contratuais decorre da posição dominante do fornecedor em relação ao consumidor, que permite a imposição unilateral de condições contratuais prejudiciais aos interesses legítimos dos consumidores112 .

Notória, portanto, a relação dessas abusividades contratuais com a afronta aos princípios que presidem as relações consumidor-fornecedor, como o da boa-fé objetiva e o da vulnerabilidade do consumidor, principalmente.

Algumas cláusulas abusivas estão elencadas no rol exemplificativo do art. 51. do CDC, as quais são passíveis de nulidade absoluta, ou seja, são impossíveis de serem sanadas pelo juízo, qual sejam: cláusulas que impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. (inciso I); cláusulas que subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos no Código (inciso II); cláusulas que transfiram responsabilidades a terceiros (inciso III); cláusulas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade (inciso IV); cláusulas que estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor (inciso VI); cláusulas que determinem a utilização compulsória de arbitragem (inciso VII); cláusulas que imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor (inciso VIII); cláusulas que deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor (inciso IX); cláusulas que permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral (inciso X); cláusulas que autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor (inciso XI); cláusulas que obriguem o consumidor a ressarcir os custos de cobrança de sua obrigação, sem que igual direito lhe seja conferido contra o fornecedor (inciso XII); cláusulas que autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato, após sua celebração (inciso XIII); cláusulas que infrinjam ou possibilitem a violação de normas ambientais (inciso XIV); cláusulas que estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor (inciso XV); e cláusulas que possibilitem a renúncia do direito de indenização por benfeitorias necessárias (inciso XVI). Além de presumir-se exagerada, com fulcro no parágrafo único do art. 51. do CDC, a vontade que, por exemplo, ofender os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence (inciso I), que restringir direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual (inciso II) e/ou que se mostrar excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso (inciso III).

Ressalta-se que, assim como no caso das práticas abusivas, que também não estão previstas de forma exaustiva pelo CDC, a depender do caso em concreto poderão configurar-se inúmeras outras cláusulas abusivas; porém, nestes casos não haverá presunção de nulidade absoluta, cabendo, pois, a intervenção do Poder Judiciário para analisar e, se for o caso, efetuar a revisão do contrato, já que este “sobrepõe-se à vontade das partes para o estabelecimento do equilíbrio entre direitos e obrigações”113 .

Ainda na seara das cláusulas abusivas, tem-se os arts. 52114 e 53115 do CDC, os quais são responsáveis, respectivamente, por disciplinar a informação no fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor e por regulamentar determinadas cláusulas dos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações e das alienações fiduciárias em garantia.

Visando sanar os abusos contratuais e controlar as cláusulas abusivas, o Código criou “instrumentos destinados a efetivar a ‘equidade’ no conteúdo das condições contratuais gerais, de forma a conquistar a ‘justiça substancial’”116 . Este controle das cláusulas abusivas,

Poderá limitar-se à formação das cláusulas contratuais, quando empreenderá o controle sobre o consentimento. Contudo, poderá também recair sobre o conteúdo do contrato, quando se pretende a razoabilidade da proporção entre as prestações, donde haveria as preocupações com a lesão117 .

Outrossim, Cláudia Lima Marques, observa que “os efeitos civis da prática comercial abusiva não inibem a aplicação de outras sanções cabíveis, como as sanções administrativas, as sanções oriundas da prática de concorrência desleal e, mesmo, as sanções penais previstas pelo próprio CDC”118 .

Assim sendo, é de se considerar que toda e qualquer condição contratual que, de alguma forma, afronte o equilíbrio e a boa-fé objetiva e traga algum prejuízo, de qualquer ordem, ao consumidor ou toda e qualquer prática que atente ao ordenamento jurídico protetivo do consumidor e à sua confiança deve ser considerado abusivo e, por consequência, reprimido pelo Direito.

2.3.3. Prevenção e Efetiva Reparação de Danos

O direito à efetiva prevenção e reparação de danos está previsto no art. 6º, inciso VI do CDC e engloba tanto os danos de natureza material, quanto os de natureza moral; tanto os de abrangência individual, quanto os de abrangência coletiva ou difusa119 . Nota-se que a reparabilidade dos danos causados aos consumidores já se encontra consagrada no regime de responsabilidade civil, de modo que se pode considerar que o referido dispositivo apresentou como inovação em relação àquele tanto a previsão de reparabilidade do dano moral, como bem lembrou Bruno Miragem120 , quanto à reparação integral de todos os danos causados ao consumidor, ou seja, a fixação da indenização com base na efetiva extensão dos prejuízos sofridos pelo lesado.

De início, é oportuno constar o significado da expressão ‘efetiva’ a que o Código se remete ao apresentar os direitos de prevenção e reparação de danos, qual seja: “tudo aquilo que atinge o seu objetivo real”121 . É certo, portanto, que o CDC buscou garantir a verdadeira proteção do consumidor, seja enfaticamente prevenindo a ocorrência de danos, seja reparando-os, de forma eficaz, no caso de falha do primeiro.

Segundo Bruno Miragem, “prevenir significa eliminar ou reduzir, antecipadamente, causas capazes de produzir um determinado resultado”122 , ou seja, no caso do CDC, indica que os destinatários das normas de proteção do Código devem ter uma série de “deveres conducentes à eliminação ou redução dos riscos de danos causados aos consumidores, em razão da realidade do mercado de consumo”123 . Usou-se a expressão ‘destinatários das normas de proteção do Código’ justamente porque, aqui, não se trata apenas dos fornecedores, os quais possuem um dever próprio em razão de sua função de agente econômico, mas também do Estado, já que este tem o dever constitucional de promoção da defesa do consumidor.

José Geraldo Brito Filomeno sustenta, por sua vez, que “quando se fala em prevenção de danos, fala-se certamente, em primeiro lugar, nas atitudes que as próprias empresas fornecedoras de produtos e serviços devem ter para que não venham a ocorrer danos ao consumidor ou a terceiros”124 , ou seja, pode-se dizer que se trata de um desestímulo às práticas abusivas, com o fim de evitar que danos aconteçam.

Segundo sustenta Sérgio Cavalieri Filho, se previne a ocorrência de danos

Educando, orientando e informando consumidores e fornecedores, criando deveres para os fornecedores, restringindo a autonomia das vontades nos contratos, intervindo sempre que se fizer necessário ao estabelecimento do equilíbrio na relação jurídica, responsabilizando civil, administrativa e penalmente os fornecedores pelo descumprimento dos deveres estabelecidos pela lei.125

Analisando esses exemplos, vê-se que a prevenção de danos impõe tanto deveres positivos quanto negativos aos fornecedores, fazendo com que eles ajam de forma preventiva quando houver necessidade e se omitam com o mesmo objetivo, se for o caso.

Já no que tange ao direito de efetiva reparação de danos, “o que o Código se prontifica a fazer é dotar o consumidor, sobretudo organizado, de instrumentos processuais dos mais modernos e eficazes, para que se dê a prevenção de danos, [...] bem como sua reparação”126 , já que, por mais que se tenha sido previsto o direito à prevenção de danos, este não é garantia de que os danos não ocorram.

Quando se fala em reparação de danos, é de se ter em mente que estes podem ser de natureza moral ou material. À reparação dos danos materiais utiliza-se do princípio da restittutio in integrum, ou seja, da reparação integral, já que pode o consumidor comprovar tanto a ocorrência quanto a extensão deste. Por outro lado, “a compensação dos danos morais é tarefa das mais árduas e complexas”127 , devendo ser analisada e arbitrada, com moderação e prudência, pelo juiz, de modo que “além de proporcionar ao ofendido um bem-estar psíquico compensatório pelo amargor da ofensa, deve ainda representar uma punição para o infrator, capaz de desestimulá-lo a reincidir na prática do ato ilícito”128 .

Ainda, vale lembrar que, para que haja reparação dos danos suportados pelo consumidor, basta a demonstração do dano e do nexo causal, uma vez que a responsabilidade objetiva, inerente ao CDC, dispensa a necessidade de comprovação de culpa, cuja comprovação seria necessária se fosse aplicável a responsabilidade subjetiva atinente ao Código Civil (CC).

Em suma, o direito à efetiva prevenção de danos visa desestimular a ocorrência de práticas abusivas e a reparação de danos tem como objetivo remediar, de forma integral, os danos causados pelas práticas abusivas que acabam por ocorrer nas relações de consumo.

2.3.4. Acesso à Justiça

O acesso à justiça tem origem constitucional, eis que presente no art. 5º, inciso XXXV129 da Constituição, e está previsto no art. 6º, inciso VII do CDC, tratando-se tanto de um direito básico do consumidor quanto de um princípio basilar das relações de consumo. Ainda, o CDC prevê, nos seus arts. 81130 e 104131 , algumas formas específicas para a defesa do consumidor em juízo.

Bruno Miragem alerta que “o reconhecimento de direitos subjetivos aos consumidores, por si só, não assegura a efetividade da proteção jurídica conferida por lei”132 . No mesmo sentido, Sérgio Cavalieri Filho, bem ressalta que “de nada adiantaria o legislador prever uma série de direitos materiais para o consumidor se não lhes fossem assegurados os instrumentos necessários à realização dos mesmos”133 , sendo certo que a facilitação ao acesso à justiça se dá tanto na seara do Poder Judiciário, quanto na da Administração Pública.

Segundo Antônio Carlos Efing, ainda, o acesso à justiça

Pretende estabelecer ao consumidor meios processuais contundentes na busca da defesa de seus interesses, como forma de proporcionar a plena utilização dos direitos já subjetivados e positivados no Código de Defesa do Consumidor e demais legislações pertinentes.134

O CDC resguarda, portanto, diversos instrumentos facilitadores deste acesso à justiça, quais sejam: reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I), inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII), impossibilidade de intervenção de terceiros em lides de consumo (arts. 88135 e 101, II136 ), sistema de responsabilidade objetiva (arts. 12. e 14137 ), desconsideração da personalidade jurídica (art. 28) e antecipação de tutela (art. 84, §3º138 ).

No que se refere às formas específicas de defesa do consumidor em juízo, tem-se, como dito, os arts. 81. e 104 do CDC. O primeiro prevê que o consumidor pode exercer seu direito tanto de forma individual, em uma lide particular e específica, quanto de forma coletiva, nos casos de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos; e o segundo, por sua vez, apresenta características processuais específicas referentes às lides coletivas de relação de consumo.

Resta claro que o consumidor, por ser parte vulnerável em uma relação de consumo, necessita dessas prerrogativas previstas pelo CDC, justamente para que se amenize o desequilíbrio de forças existentes nas relações de consumo e se oportunize uma situação de igualdade no que diz respeito à sua defesa em juízo.

2.4. PRESSUPOSTOS DA RELAÇÃO DE CONSUMO

Sabe-se que a finalidade máxima do CDC é regular as relações de consumo, porém, este não traz uma definição específica do que seria esta relação. O que o Código faz é, tão somente, delimitar seus elementos constitutivos: consumidor, fornecedor e produto ou serviço; além de ressaltar a necessidade da existência da remuneração para que a relação de consumo se caracterize efetivamente.

Insta consignar que, segundo explana Bruno Miragem, estes conceitos trazidos pelo CDC acerca das figuras integrantes de uma relação de consumo devem ser considerados como diretamente relacionados e dependentes, uma vez que “só existirá um consumidor se também existir um fornecedor, bem como um produto ou serviço”139 .

Nelson Nery Junior entende que relação de consumo é “a relação jurídica entre ‘fornecedor’ e ‘consumidor’ tendo como objeto o ‘produto’ ou o ‘serviço’”140 . José Geraldo Brito Filomeno, por sua vez, sustenta que a relação de consumo se configura em uma “relação jurídica por excelência, pressupondo sempre três elementos, quais sejam, dois pólos de interesses (consumidor e fornecedor) e a coisa – objeto desses interesses – que representa [...] produtos e serviços”141 .

Antônio Carlos Efing ressalta que “a importância do reconhecimento da existência ou não de uma relação de consumo reside na possibilidade de serem aplicadas as normas determinadas pelo CDC”142 , já que, caso não se caracterize uma relação de consumo, as regras a serem aplicadas a esta situação jurídica serão outras, tais como as previstas no CC e no Código Comercial (CCom), por exemplo.

Resta claro que, para que se caracterize uma relação de consumo e seja possível a aplicação das normas e princípios previstos no CDC é necessário, portanto, a concretização dos elementos ‘consumidor’ e ‘fornecedor’, os sujeitos da relação, e o ‘produto ou serviço’, que é o objeto das prestações ali surgidas. Passa-se à análise destas figuras.

2.3.1. Conceito de Consumidor

O CDC define, em seu art. 2º143 , que consumidor é “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. Ainda, consumidor pode ser, de forma equiparada e em uma visão mais ampla, a coletividade de pessoas (parágrafo único do art. 2º do CDC), todas as vítimas do evento (‘bystander’)144 ou todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas de uma relação de consumo145 . O conceito previsto no caput do art. 2º é o do consumidor standart ou padrão e os demais se referem aos consumidores equiparados.

De início, ao se analisar o conceito de consumidor, é necessário ter em mente a existência de três teorias que buscam delimitar a abrangência da expressão ‘destinatário final’, utilizada pelo Código. Passa-se à exposição da ideia central das teorias finalista ou subjetivista, maximalista ou objetivista e finalista aprofundada ou mitigada.

Segundo a teoria finalista, destinatário final é o “destinatário final fático e econômico de um produto ou serviço”146 , ou seja, “é aquele que adquire ou utiliza produto ou serviço de modo a exaurir sua função econômica, da mesma forma como, ao fazê-lo, determina com que seja retirado do mercado de consumo”147 . Em outras palavras, destinatário final é o que retira o produto ou o serviço da cadeia de consumo, fazendo com que este seja fim e não meio de se alcançar um novo fim econômico. Não pode, portanto, para a teoria finalista, haver qualquer finalidade de obtenção de lucro, ou de utilização de insumo a uma determinada atividade, ao se adquirir um produto. O consumidor é, só e tão somente, “aquele que adquire ou utiliza produto ou serviço para satisfação de interesse próprio ou de sua família”148 , levando a crer, inclusive, que a pessoa jurídica, expressamente prevista como consumidora no caput do art. 2º, não é consumidora. Esta teoria, por restringir muito a ideia de consumidor como destinatário final, não se coaduna com o sistema amplo e protetivo previsto no CDC.

A teoria maximalista, por sua vez, parte de um viés de que as normas do CDC são “o novo regulamento do mercado de consumo brasileiro, e não normas orientadas para proteger somente o consumidor não-profissional”149 , defendendo que “a definição de consumidor deve ser interpretada extensivamente”150 , não importando “se a pessoa física ou jurídica tem ou não fim de lucro quando adquire um produto ou utiliza um serviço”151 . Isto é, destinatário final é o destinatário fático do produto ou do serviço, independente da finalidade do ato de consumo, ou seja, a partir do momento em que a pessoa tira o produto de circulação no mercado, adquirindo-o, já pode ser caracterizada como consumidora. Não é também a melhor corrente, pois, já que toda e qualquer pessoa que adquire um produto ou contrata um serviço se caracteriza como consumidora, estar-se-ia negando a própria epistemologia do CDC, que é protetiva do ser vulnerável.

Finalmente, a corrente de interpretação finalista mitigada, considera, assim como a teoria finalista, o destinatário final como o destinatário fático e econômico do produto ou do serviço, porém, estende este conceito ao prever que a questão da vulnerabilidade deve ser igualmente analisada. Ou seja, esta teoria apresenta-se a partir de dois critérios básicos:

a) Primeiro, de que a extensão do conceito de consumidor por equiparação é medida excepcional no regime do CDC;

b) Segundo, que é requisito essencial para esta extensão conceitual e por intermédio da equiparação legal (artigo 29), o reconhecimento da vulnerabilidade da parte que pretende ser considerada consumidora equiparada152 .

Pode, portanto, a partir dessas observações, “admitir a aplicação do CDC à pessoa jurídica empresária excepcionalmente, quando evidenciada a sua vulnerabilidade no caso em concreto”153 , isto é, quando a pessoa jurídica empresária se mostrar fragilizada no mercado de consumo, equiparando-se à pessoa física. Conclui-se, de todo modo, que a teoria finalista mitigada é favorável à análise do caso em concreto, reconhecendo a situação de consumidor a determinadas pessoas, de acordo com suas situações particulares. Para esta teoria, o pequeno empresário, por exemplo, pode ser considerado consumidor, por meio do uso da figura de consumidor por equiparação.

Portanto, entende-se que a teoria mais adequada aos ideais do CDC, cujos artigos buscam proteger o ser vulnerável, seja ele pessoa física ou jurídica, é a teoria finalista mitigada. Isto porque, além de não expandir demais a ideia de ‘vulnerabilidade’, como faz a teoria maximalista, também não restringe exageradamente a figura do ‘consumidor’, que é o que acaba por fazer a teoria finalista. Este é o atual entendimento dos Tribunais Superiores154 e o que será adotado, também, no presente trabalho.

De qualquer forma, tem-se que consumidor é “qualquer pessoa física ou jurídica que, isolada ou coletivamente, contrate para consumo final, em benefício próprio ou de outrem, a aquisição ou a locação de bens, bem como a prestação de um serviço”155 , cabendo a ressalva de que “será consumidor tanto quem adquirir, ou seja, contratar a aquisição de um produto ou serviço, quanto quem apenas utilize este produto ou serviço”156 .

Por fim, para que se caracterize a figura do consumidor equiparado, igualmente sujeito dos direitos e proteções previstos no CDC, desnecessária é a “existência de um ato de consumo (aquisição ou utilização direta), bastando para incidência da norma, que esteja o sujeito disposto às situações previstas no Código”157 . Consumidor pode ser, portanto, toda uma coletividade de pessoas, todas as vítimas de um evento ou, ainda, qualquer pessoa, determinável ou não, exposta às práticas de uma relação de consumo.

2.3.2. Conceito de Fornecedor

O conceito de fornecedor pode ser encontrado no art. 3º158 do CDC, que expõe que fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

Conforme sustenta Bruno Miragem,

Os conceitos de consumidor e fornecedor são dependentes, relacionais, uma vez que só haverá relação de consumo com a presença destes dois sujeitos. Neste sentido, se por consumidor tem-se aquele que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final, como fornecedor observa-se quem oferece os produtos e serviços no mercado de consumo.159

Sérgio Cavalieri Filho expõe que se pode considerar fornecedor,

Todos aqueles que, mesmo sem personalidade jurídica (‘entes despersonalizados’), atuam nas diversas etapas do processo produtivo (produção-transformação-distribuição-comercialização-prestação), antes da chegada do produto ou serviço ao seu destinatário final. Deste modo, não apenas o fabricante ou o produtor originário, mas também todos os intermediários (intervenientes, transformadores, distribuidores) e, ainda, o comerciante.160

Por sua vez, José Geraldo Brito Filomeno, expõe que fornecedor é o “protagonista das sobreditas ‘relações de consumo’ responsável pela colocação de produtos e serviços à disposição do consumidor”161 , sendo assim considerados “todos quantos propiciem a oferta de produtos e serviços no mercado de consumo, de maneira a atender as necessidades dos consumidores, sendo despiciendo indagar-se a que título”162 .

Ou seja, a figura do ‘fornecedor’ alcança a todos, inclusive os entes despersonalizados, que atuam com habitualidade no processo produtivo, seja qual for sua etapa ou modalidade, e que visam disponibilizar o produto ou o serviço ao mercado de consumo. Há, nos arts. 2º e 12 do CDC, um rol exemplificativo de atividades realizadas pelo fornecedor, como, por exemplo, a produção, a montagem, a criação e a transformação de produtos ou serviços.

Justamente em função da amplitude do conceito de fornecedor, até o próprio Estado, diretamente ou por intermédio de seus Órgãos e Entidades, pode vir a ser fornecedor. O CDC, inclusive, faz expressa referência ao fornecimento de serviços por parte do poder público, em seu art. 22163 , cuja abordagem será realizada no tópico referente ao conceito e análise de ‘serviço’.

Ainda, oportuno trazer a tona a classificação dos fornecedores em real, aparente e presumido, cuja distinção é importante para o fim de se identificar e analisar a questão da responsabilização dos fornecedores frente aos danos causados aos consumidores. Fornecedor real é “o fabricante, o produtor ou o construtor do produto”164 , o fornecedor aparente é “o quase-fornecedor, que empresta aos produtos que comercializa seu nome, marca ou sinal distintivo”165 , assumindo perante o consumidor a posição de real fabricante, já o fornecedor presumido, por sua vez, é “aquele que importa produtos para venda, locação, leasing ou qualquer outra forma de distribuição, assim como aquele que forneça mercadoria sem identificação ou com identificação imprecisa”166 .

De qualquer forma, ao utilizar a expressão ‘desenvolver atividade’, no caput do art. 3º do CDC, o Código expõe sua única exigência para a caracterização da pessoa como fornecedora, qual seja: que esta realize atividade de forma habitual e não necessariamente com profissionalismo. Diz-se isso porque ‘desenvolver atividade’ pressupõe certa habitualidade, conforme orienta Bruno Miragem, o qual também observa que “não exige a legislação brasileira, de modo expresso, que o fornecedor seja um profissional”167 . Antônio Carlos Efing expõe a diferença entre habitualidade e profissionalismo, referindo que o primeiro é “a sucessividade ou constância no exercício de um ato ou na prática de atos que tornam a pessoa profissionalmente hábil na sua execução”168 e o segundo “pressupõe o estado ou a condição do profissional em certa arte, que a exerce como profissional, permanentemente, mediante certa paga ou ajuste”169 . Assim sendo, por mais que o profissional exerça sua atividade habitualmente, não se mostra necessário que o fornecedor seja profissional para que possa realizar a atividade de fornecimento de forma habitual.

Expõe-se, por fim, que, no caso do CDC, “a definição de fornecedor não é exaurida pelo caput do artigo 3º, senão que deve ser interpretado em acordo com os conceitos de produto e serviço (objetos da relação de consumo)”170 , os quais estão previstos nos §§ 1º e 2º do mesmo art. 3º e serão abordados na sequência.

2.3.3. Conceito de Produto e Serviço

Como visto, o CDC faz referência ao produto e ao serviço nos §§ 1º e 2º do seu art. 3º, prevendo que “produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial” e que “serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”. Essas figuras são, em síntese, os objetos de uma relação de consumo.

O termo ‘produto’, utilizado pelo CDC, é altamente criticado por grande parte da doutrina. José Geraldo Brito Filomeno, por exemplo, afirma que seria melhor “falar-se em ‘bens’ e não ‘produtos’, mesmos porque, como notório, o primeiro termo é bem mais abrangente do que o segundo, aconselhando tal nomenclatura, aliás, a boa técnica jurídica, bem como a economia política”171 . No mesmo sentido, Sérgio Cavalieri Filho sustenta que “teria andado melhor o legislador se tivesse usado o vocábulo bens ao invés do vocábulo produto, eis que, juridicamente, o primeiro tem significado genérico, sendo mais abrangente que o segundo”172 .

Porém, de outro lado, entende José Fernando Simão que,

Se o próprio Código de Defesa do Consumidor opta por definir produto como qualquer bem, podemos considerar que, para as relações jurídicas de consumo, bem e produto tem idêntico significado. Ainda que procedentes as críticas sobre a utilização do termo bens no lugar de produtos, sendo mais adequada porque mais abrangente, parece-nos clara a intenção do legislador de utilizar as expressões como sinônimas.173

De qualquer forma, superadas as questões relacionadas ao vocábulo utilizado pelo CDC, produto, em seu sentido econômico e universal, deve ser compreendido como tudo “aquilo que resulta do processo de produção ou fabricação”, conforme orienta Sérgio Cavalieri Filho174 . Já Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, por sua vez, afirmam que “todo e qualquer bem jurídico disponível, corpóreo ou incorpóreo, móvel ou imóvel, pode ser definido como produto”175 . E, ainda, José Geraldo Brito Filomeno sustenta que produto “é qualquer objeto de interesse em dada relação de consumo, e destinado a satisfazer uma necessidade do adquirente, como destinatário final”176 .

Por se tratar de uma definição ampla, já que o CDC aborda todos os bens jurídicos móveis, imóveis, materiais e imateriais, produto pode ser compreendido, portanto, como qualquer bem suscetível de ser adquirido pelo consumidor, inclusive os incorporados177 .

Serviço, por sua vez, “é a ação de servir”178 e pode ser considerado como “quaisquer atividades fornecidas no mercado de consumo mediante remuneração”179 . Sérgio Cavalieri Filho destaca, inclusive, que “essas atividades podem ser de natureza material, financeira ou intelectual, prestadas por entidades públicas ou privadas, mediante remuneração direta ou indireta”180 . Ou seja, o conceito de serviço é tão abrangente quanto o de produto.

Ressalta-se que a remuneração é a expressão chave do conceito de serviço, ao menos sob a égide do CDC, e, justamente por este motivo, mostra-se relevante a diferenciação entre serviços remunerados (remuneração direta), aparentemente gratuitos (remuneração indireta) e puramente gratuitos.

A remuneração direta se dá por meio do efetivo pagamento diretamente ao fornecedor, ou seja, quando o serviço tem um preço que deve ser pago pelo consumidor a fim de receber uma contraprestação. A remuneração indireta, por sua vez, ocorre quando “indiretamente, o executor tem interesse ou vantagem patrimonial no serviço, estando os custos destes cobertos pelos benefícios daí advindos para o prestador”181 , isto é, quando se demonstram “benefícios comerciais indiretos ao fornecedor, advindos da prestação de serviços apenas aparentemente gratuitos, visto que a remuneração já se encontra diluída e embutida em outros custos”182 , como é o caso das amostras grátis, por exemplo. Já os serviços puramente gratuitos são os que não exigem qualquer remuneração por parte do beneficiário e que são prestados no exclusivo interesse deste, sem qualquer vantagem financeira para o fornecedor, conforme orienta Sérgio Cavalieri Filho183 . Os serviços de remuneração direta e indireta são submetidos às regras do CDC e os puramente gratuitos, por não se adequarem ao sistema protetivo do CDC, ao CC.

Ainda na seara da conceituação de serviços, aborda-se, por oportuno, a questão da abrangência do CDC aos serviços públicos, já que se trata de um ponto de relevante controvérsia na doutrina. O Código prevê sua aplicabilidade aos serviços públicos em diversos momentos: ao se referir ao conceito de fornecedor, incluindo as pessoas de direito público (art. 3º, CDC); ao estabelecer como princípio da PNRC a melhoria dos serviços públicos (art. 4º, VII, CDC); ao consagrar como direito básico do consumidor a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral (art. 6º, X, CDC); e, ainda, ao estabelecer determinados deveres aos fornecedores de serviços públicos (art. 22, CDC). Nada obstante, sobre o assunto, deve-se identificar quais são os serviços públicos que se encontram sob a égide do CDC e analisar o binômio ‘continuidade x possibilidade de interrupção’ dos serviços públicos considerados essenciais.

Sérgio Cavalieri Filho, ao abordar o momento em que os serviços públicos estão sujeitos às regras do CDC, expõe as duas correntes doutrinárias existentes sobre o assunto:

Uma corrente defende a aplicação do CDC somente aos serviços remunerados por tarifa (preço público), estando dentre os adeptos dessa corrente Cláudio Banolo e Paulo Valério Del Pai Moraes [...] . Uma segunda corrente, menos ortodoxa, da qual são adeptos Cláudia Lima Marques e Adalberto Pasqualotto, entende que o CDC é aplicável, indistintamente, a todos os serviços públicos, remunerados por tributos ou tarifa.184

Bruno Miragem, cujo entendimento se coaduna com a primeira corrente, sustenta que

Dentre as diferentes espécies de serviços públicos, o CDC aplicar-se-á àqueles em que haja a presença do consumidor como agente de uma relação de aquisição remunerada do respectivo serviço, individualmente e de modo mensurável (serviços uti singuli). Não se cogita assim, a aplicação do CDC à prestação de serviços públicos custeados pelo esforço geral, através da tributação, como é o caso dos que são oferecidos e percebidos coletivamente, sem possibilidade de mensuração ou determinação de graus e utilização do mesmo (serviços uti universi).185

Prevalece o entendimento de que os serviços públicos remunerados por tributos não estão submetidos à incidência do CDC, “porque trava-se entre o Poder Público e o contribuinte uma relação administrativo-tributária [...] , disciplinada pelas regras do Direito Administrativo”186 . Deste modo, em suma, tem-se que os serviços públicos remunerados por tarifa ou preço público seriam os únicos passíveis de se sujeitarem às regras do CDC, por se tratarem de serviços uti singuli187 .

Traz-se a tona, por fim, a problemática referente ao binômio ‘continuidade x interrupção’ das atividades essenciais, já que o CDC, no seu art. 22, faz expressa menção à necessidade de se preservar a continuidade dos serviços públicos essenciais, que, segundo analisa Sérgio Cavalieri Filho, são “aqueles que atendem as necessidades inadiáveis da comunidade”188 , as quais, por sua vez, são “aquelas que, não atendidas, colocam em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”189 .

No caso de inadimplência de um usuário de um serviço considerado essencial, como o caso é o caso do fornecimento de luz, por exemplo, quais seriam as possíveis consequências? Poderia o serviço ser interrompido? A princípio, a resposta seria negativa, já que o CDC preza pela continuidade dos serviços públicos essenciais, justamente em decorrência de sua indispensabilidade. Porém, de outro lado, orienta Sérgio Cavalieri Filho que “a paralisação do serviço impõe-se quando houver inadimplência, repudiando-se apenas a interrupção abrupta, sem aviso prévio, como meio de pressão para o pagamento das contas em atraso”190 , ressaltando que “embora permitida a suspensão do serviço público objeto das reclamações de consumo, ela não se constitui em direito absoluto”191 , devendo o fornecedor, além de colaborar para que o consumidor consiga adimplir o contrato, conceder prazo para se proceder à interrupção, no caso de inadimplência.

Sobre a autora
Thaine Kovaleski

Acadêmica do 10º período do curso de Direito do Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Trata-se de monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito do Centro Universitário Curitiba. Orientadora: Prof. Dra. Fernanda Schaefer Rivabem.

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