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Estado Talibã

Agenda 13/08/2014 às 11:01

O que há em comum entre Pol Pot - no Camboja e o governo do Estado de São Paulo?

~~ O que há em comum entre Pol Pot - no Camboja, a Coreia do Norte, o Talibã - no Afganistão e o governo do Estado de São Paulo? O primitivismo atávico, o apego ao Código de Manu. Este, por sinal, foi superado com a quase-isonomia, na forma do respeito e engrandecimento prestado às mulheres, pelo Código de Hamurabi. Em São Paulo, muito se falou de uma filiação à conhecida Opus Dei. Depois que nos anos 1960/70 queimaram-se os sutiãs, como é que, em curso o século XXI, o governo do Estado mais rico do país possa exigir, em prova de concurso público, que as candidatas-mulheres apresentem dois exames ginecológicos ou atestado de virgindade ? O que é virgindade? Se houvesse isonomia, tratamento paritário, os homens deveriam apresentar dois exames de próstata. Será que serve apresentar-se trajando cinto de castidade?
 Este é o melhor exemplo de normativismo jurídico – quando o apego cego à norma nos transforma em boçais. Também demarca bem a espécie de transformação do servidor público; o sujeito presta juramento, na posse, em defesa da República e depois se torna um burocrata estapafúrdio. Se não bastasse toda a mediocridade geral e a mendicância para que o Poder Público seja honrado com pitadas de racionalidade, ética, eficiência, ainda temos de suportar a asneira de um fora da lei. Sim, fora da lei, porque a lei é bem clara ao impor a equidade, o tratamento equivalente de homens e mulheres.
É certo que nenhum político profissional, em cargo de direção executiva, consegue ler o que assina. Alguns não sabem ler, outros – a maioria – leem, mas não compreendem nada. Enfim, como assinam o que não leem, porque é quase impossível digerir ou (ler) o que traz a burocracia tupiniquim todos os dias, precisam de asseclas. Quem lê o diário oficial, no café da manhã?
Os bons chamam-se e se reconhecem como servidores públicos. Os inservíveis de tipo pré-histórico – como neste concurso – são meros aspones. Como não assessoram porcaria nenhuma, procuram confusão para os outros: um modo de justificar a sua picaretagem no serviço público. O que fica bem expresso na novela “O Capote” do escritor russo Gogol, em que um funcionário público acaba morrendo na luta pela recuperação de seu casaco ou capote.
Na ácida crítica, Gogol espezinha o pequeno poder e o maquinismo social em torno da conhecida reificação; trata-se de um fenômeno social que se verifica quando uma mercadoria intermedia relações sociais entre dois sujeitos e esses sujeitos não se reconhecem mais enquanto sujeitos, a não ser que alguma mercadoria faça a intermediação. Gogol foi brilhante ao tratar dessa falácia do mercado e do sistema social capitalista. No pequeno romance, o apego "mórbido" às formalidades desta "síndrome do pequeno poder" é descrito de forma belíssima: tenho poder” de dirigir você a este ou àquele guichê, facilito ou dificulto seu acesso à repartição pública, ou seja, nada relevante, apenas "chateante".
As livrarias, especialmente na Rússia, guardam os segredos das sociedades das coisas retratadas por Gogol, quando só nos resta a coisificação – o nada assombrado e representado literalmente por um capote de chuva. Afinal, como se sabe, coisa é ausência total de validade, de sentido expresso, de simultaneidade; empregamos o vocábulo “coisa” quando não há adjetivos ou vocabulário apropriado – isto é, quando só há insignificância ou significado frágil, inútil, pouco expressivo, quase nada expansivo, muito pouco explicativo. Quando você acha que já viu de tudo, vem uma dessas. Sou servidor público federal e agradeço todos os dias, porque só eu sei a dificuldade para chegar, mas sinto enorme vergonha diante do machismo megalodonte. Como há o teste psicotécnico, deveria haver um teste para os psicodélicos.
 

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

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