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A concepção do precedente judicial pelo direito brasileiro:

aspectos históricos, atuais e prospectivos

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Agenda 27/08/2014 às 12:22

O sistema de precedentes vinculantes cuja adoção pelo Brasil é iminente virá a contribuir sobremaneira para o aprimoramento do Processo Civil pátrio, inclusive majorando a credibilidade do Judiciário perante a sociedade.

RESUMO: A forma de aplicar o direito a partir de uma dinâmica de precedentes judiciais vinculantes é há muito utilizada pelo direito estrangeiro, em especial pela Inglaterra, seu berço, e pelos Estados Unidos, possuindo bons resultados quanto à efetiva solução dos litígios e, por extensão, à realização do bem estar social. Os precedentes vinculantes têm o condão de garantir o real respeito aos postulados da isonomia e da segurança jurídica. E, rumando ao aprimoramento de seu direito processual civil, o Brasil tem incorporado institutos jurídicos próprios de uma teoria de precedentes. Há hoje no país, v.g., precedentes vinculantes (decisões proferidas em sede controle de constitucionalidade – concentrado ou difuso), além de serem aplicadas técnicas como o distinguishing e o overruling, ainda que não haja plena consciência disso por parte do operador do direito. Mas não é só. O Projeto do Novo Código de Processo Civil, em consonância com a dimensão constitucional do processo, está a adotar amplamente um sistema de precedentes vinculantes, o que tem a contribuir – e muito – para a evolução do direito nacional.

Palavras-chave: Teoria do precedente; Brasil; Novo Código de Processo Civil.


INTRODUÇÃO

Tal qual é largamente dito nos dias atuais, o modelo do Processo Civil brasileiro – em verdade, toda a estrutura do Judiciário nacional – não se mostra plenamente de acordo com os anseios sociais contemporâneos, tampouco perfeitamente afinado com uma dimensão constitucional do processo. Seria necessário, assim, que se promovessem mudanças visando ao aprimoramento de nossa dinâmica processual.

Pois bem, mobilizados parlamentares e a comunidade jurídica, o Projeto do Novo Código de Processo Civil está hoje na iminência de ser promulgado.

E é em meio a esse contexto de mudanças com vistas à melhora do Processo Civil pátrio que se assoma o tema do presente estudo: o precedente judicial.

De há muito vimos incorporando ao nosso direito experiências jurídicas bem sucedidas em outros países, e o precedente judicial, na forma concebida pelo direito anglo-saxão, é fenômeno jurídico que, se bem delimitado no direito positivo interno, tem o condão de produzir efetivas melhoras no exercício da jurisdição.

A adoção de um sistema de precedentes vinculantes pode garantir ao jurisdicionado, a um só tempo, o efetivo respeito de seu direito à igualdade e à segurança jurídica, além de assegurar a coerência da ordem jurídica. No Brasil de hoje, v.g., é bastante comum que jurisdicionados envolvidos em lides que encerram idêntico quadro fático, ao se socorrerem no Judiciário, tenham cada qual soluções distintas a suas quezílias. Essa inegável e vexatória pecha pode ser solucionada pelos precedentes vinculantes. Ao se padronizarem as decisões judiciais, não se permite que casos análogos tenham desfechos díspares e variáveis de acordo com o julgador.

Defende-se aqui, pois, a adoção de um sistema vinculante de precedentes no Brasil, em consonância com o que está sendo elaborado no Projeto do Novo Código de Processo Civil.

Mas não se engane o leitor ao achar que o direito brasileiro atual está à parte da dinâmica dos precedentes judiciais. Já é possível vislumbrar no cenário jurídico brasileiro de hoje uma série de especificidades que evidenciam o perfilhamento de uma teoria de precedentes.

Nesse contexto, a fim de bem expor a reflexão acerca do precedente judicial, o presente estudo foi dividido em quatro partes. A primeira busca inserir o leitor no ambiente da teoria do precedente por meio das necessárias noções preliminares. Ao depois, explanar-se-á  o surgimento histórico do precedente, de seu berço no direito anglo-saxão ao status que ostenta na Inglaterra de hoje. Em uma terceira etapa, será abordado o Processo Civil brasileiro contemporâneo à luz da teoria do precedente, identificando-se nele institutos e caracteres próprios dessa teoria. Ao fim, demonstrar-se-á o que se pode esperar do direito processual civil pátrio no que toca ao precedente em futuro próximo, notadamente com o advento de um novo Código de Processo Civil.


CAPÍTULO 01 – O PRECEDENTE JUDICIAL: NOÇÕES PRELIMINARES

1.1)   CONCEITUAÇÃO

Seria ao menos indesejável iniciar a análise do precedente judicial em diversas perspectivas temporais sem antes proceder à sua conceituação, de forma a delimitar o objeto do estudo que ora se expõe.

Pois bem, Karl Larenz é pontual ao indigitar que o precedente judicial define-se como “resoluções em que a mesma questão jurídica, sobre a qual há que decidir novamente, foi já resolvida por um tribunal noutro caso”[1].

Sejamos mais detalhistas, sem, contudo, desviarmo-nos da essência da conceituação dada pelo renomado jurista alemão.

Com efeito, a solução de litígios realizada pelo Judiciário culmina, invariavelmente, na prolação de decisões judiciais.

No direito brasileiro contemporâneo, essas decisões podem ser meramente interlocutórias (art. 162, §2º, do Código de Processo Civil/1973), pondo termo à questão incidente do processo (v.g., a análise de antecipação de tutela ou a admissibilidade de determinada prova), assim como podem, a partir da atividade intelectiva do órgão jurisdicional, julgar, em sentido técnico[2], a questão de fundo posta à análise (art. 269, inciso I, do codex processual mencionado). Há a possibilidade de a decisão, por outro lado, tão somente pôr fim ao processo, resolvendo seu mérito, sem que se proceda ao exame do bem da vida discutido na demanda (art. 269, incisos II a V, do Código de Processo Civil/1973), sendo possível, ainda, a extinção do processo sem resolução do seu mérito (art. 267 do diploma processual civil vigente).

E a decisão, fundada em quaisquer das hipóteses supra, prolatada em instância singela ou colegiada, em qualquer grau, interessa ao presente estudo, uma vez que terá o condão de ostentar o status de precedente.

O precedente é, nessa linha, uma decisão judicial qualificada, detentora de determinados aspectos – um positivo e outro negativo. Para que a decisão judicial se revista da qualidade de precedente, deverá necessariamente decidir questão de direito em sua ratio decidendi (condição positiva), não obstante o possa fazer a partir de um caso concreto, é dizer, de matéria de fato, não se configurando como tal se se cingir a afirmar a letra da lei (condição negativa), hipótese em que sequer há significativa atividade cognitiva e interpretativa do magistrado.

Portanto, uma decisão pode não ter os caracteres necessários à configuração de precedente, por não tratar de questão de direito ou se limitar a afirmar a letra da lei, como pode estar apenas reafirmando o precedente. Outrossim, um precedente requer a análise dos principais argumentos pertinentes à questão de direito, além de poder necessitar de inúmeras decisões para ser definitivamente delineado.

Nesta dimensão fica claro que um precedente não é somente uma decisão que tratou de dada questão jurídica como determinada aptidão, mas também uma decisão que tem qualidades externas que escapam ao seu conteúdo.[3]

É possível dizer, pois, que todo precedente judicial deriva de uma decisão, mas nem toda decisão configura precedente. A última é gênero do qual o primeiro é espécie. Dessa forma, pode-se ilustrar a relação entre precedente judicial e decisão como sendo ambos dois círculos concêntricos, tendo o último maior espectro de abrangência:                                                        

De remate, concluímos, diante do já exposto e à luz das demais ponderações que alicerçam este estudo, que o precedente é decisão judicial que, partindo ou não da análise de um caso concreto, decide questão de direito a partir de uma ratio decidendi, tendo o condão de vincular e/ou persuadir.

1.2)  ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PRECEDENTE

O precedente judicial, nos moldes expostos no tópico anterior, possui elementos que, agregados, garantem-lhe um todo de sentido. Passemos à sua análise.

1.2.1) RATIO DECIDENDI

É a ratio decidendi o elemento nuclear do precedente judicial. Trata-se, em suma, da tese jurídica esposada na decisão.

A ratio decidendi (...) constitui a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso contrato (rule of law). É essa a regra de direito (e, jamais, de fato) que vincula os julgamentos futuros inter alia.[4]

A ratio decidendi – ou, para os norte-americanos, a holding – são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão; a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão não teria sido proferida como foi; trata-se da tese jurídica acolhida pelo órgão julgadora no caso concreto.[5]

Pode o leitor afoito pensar num primeiro momento que a ratio decidendi encontra paralelo na fundamentação da decisão judicial (art. 458, inciso II, do Código de Processo Civil/1973). Mas não. “É preciso sublinhar que a ratio decidendi não tem correspondência no processo civil adotado no Brasil, pois não se confunde com a fundamentação e com o dispositivo. Assim, quando relacionada aos chamados requisitos imprescindíveis da sentença, ela certamente é ‘algo a mais’”[6].

Já é de se ver que a compreensão da ratio decidendi demanda atividade intelectiva que, partindo dos elementos da decisão, extraia seu conteúdo. Tal atividade se assemelha à do hermeneuta que, diante de dispositivos legais, busca a norma neles contida, de modo que é possível afirmar que a compreensão da ratio decidendi está para a decisão assim como a compreensão da norma está para os dispositivos de lei.

Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado.[7]

Se o hermeneuta tem à disposição métodos próprios para extrair de dispositivos a norma, como as variadas espécies de interpretação, a atividade de intelecção da ratio decidendi também demanda técnicas específicas. A doutrina estrangeira afeita à tradição jurídica do Common Law e, por consequência, à dinâmica dos precedentes, concebeu teorias que auxiliam o jurista nesse mister, das quais destacam-se duas: a de Eugene Wambaugh e a de Arthur Goodhart[8].

Para o primeiro autor, a compreensão da ratio decidendi se faz a partir de um raciocínio contrariu sensu. Dá-se sentido oposto à proposição adotada no julgado, de modo que, se com a inversão a decisão tiver que também ser alterada por coerência lógica, está-se diante da ratio decidendi. Tem-se, nessa hipótese, a proposição que conduziu o julgamento. Se, ao revés, a despeito da inversão, a decisão permanecer incólume, trata-se a proposição de mera obiter dictum (elemento a seguir abordado).

Diante do teste de Wambaugh, invertendo-se o sentido da proposição tomada em conta pelo tribunal, a sua decisão não pode ser a mesma para que a proposição constitua ratio decidendi. A proposição com sentido invertido – portanto, outro proposição – faria com que o caso fosse decidido de outra maneira. Se a nova proposição gera igual decisão, a proposição original, em vez de constituir ratio decidendi, representa obiter dictum.[9]

Ocorre, entretanto, que o método de Wambaugh não tem sido bem aceito pela atual doutrina, na medida em que se mostra falho diante de uma situação. Acaso o precedente contenha duas ou mais rationes decidendi, sendo cada uma delas bastante à conclusão a que chegou o órgão julgador, mesmo que se proceda à inversão delas, manter-se-á a mesma forma de decidir. Logo, nessa hipótese, a teoria de Wambaugh levaria o jurista a equivocadamente concluir que duas ou mais rationes decidendi são obiter dicta.

A teoria de Goodhart, por outro lado, ressoa em mais vozes. Seu método “propõe que a ratio decidendi seja extraída a partir do exame dos fatos fundamentais (material facts) considerados pelo julgador e da conclusão jurídica advinda da análise dos referidos fato”[10]. Assim, para Goodhart, para que se identifique a ratio decidendi, deve-se reconhecer a tese jurídica que decorre dos principais fatos analisados pelo magistrado.

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(...) para Goodhart é necessário determinar todos os fatos do caso como vistos pelo juiz e, após, identificar quais destes fatos o juiz admitiu como materiais ou fundamentais para decidir. Mas, para a ratio, além dos fatos que o juiz considerou materiais, também seria importante a decisão que neles se fundou.

Goodhart explica através de exemplo, servindo-se do caso Ryland v. Fletcher. Fletcher contratou um empreiteiro para construir um reservatório em sua propriedade. O empreiteiro atuou com negligência e a água do reservatório invadiu as terras do vizinho, causando prejuízos. Goodhart, ao analisar a situação, admitiu como “fatos do caso”: i) B tinha um reservatório em sua propriedade; ii) o empreiteiro, contratado por B para edificá-lo, agiu com negligênci; iii) a água escoou do reservatório e prejudicou A. Foram considerados “fatos materiais”: i) B tinha um reservatório construído em sua propriedade; ii) a água escoou e prejudicou A. Anota Goodhart que a Corte ignorou o fato relacionado à negligência do empreiteiro, que foi implicitamente considerada como fato imaterial.[11]

A nosso ver, contudo, salvo melhor juízo, a proposta de Goodhart também não é cabal, pois, na medida em que tem como pressuposto a análise fática, deixa à margem o precedente que não aprecia um caso concreto, como o oriundo do controle abstrato de normas.

1.2.2) obiter DICTUM

O conceito de obiter dictum – obiter dicta no plural – está intimamente ligado ao de ratio decidendi, visto que o elemento do precedente que não constituir a ratio decidendi será, por exclusão, obiter dictum.

O obiter dictum ­­­nada mais é que os argumentos acessórios constantes da decisão, e que, não obstante contribuam para a formação do precedente quando somados a ratio decidendi, isoladamente, pouco significam.

O obiter dictum (...) consiste nos argumentos que são expostos apenas de passagem na motivação da decisão, consubstanciando juízos acessórios, provisórios, secundária, impressões ou qualquer outro elemento que não tenha influência relevante e substancial para a decisão (“prescindível para o deslinde da controvérsia). Normalmente é definido de forma negativa: é obiter dictum a proposição ou regra de Direito que não compuser a ratio decidendi. É apenas algo que se fez constar “de passagem”, não podendo ser utilizado com força vinculativa por não ter sido determinante para a decisão.[12]

Sem embargo disso, o obiter dictum não é de todo insignificante. Isso porque “o obiter dictum pode sinalizar uma futura orientação do tribunal, por exemplo. Além disso, o voto vencido em um julgamento colegiado é obiter dictum e tem a sua relevância para a elaboração do recurso dos embargos infringentes, bem como tem eficácia persuasiva para uma tentativa futura de superação do precedente”[13].

1.2.3) DISTINÇÃO PRÁTICA ENTRE RATIO DECIDENDI E obiter DICTUM

Considerando que está o leitor diante de assunto que pode se afigurar demasiadamente abstrato, com o fito de tornar sólida e clara a compreensão dos conceitos de ratio decidendi e obiter dictum, passemos a um exercício de identificação dos elementos do precedente em casos concretos.

Pois bem. Analisemos, ab initio, o Recurso em Mandado de Segurança n° 18.534/SP, de relatoria do então ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 1° de outubro de 1968 pelo Supremo Tribunal Federal, largamente citado, em que pese sua vestutez, quando da discussão acerca da união homoafetiva.

Trata-se de recurso, interposto pela editora Abril – Abril Comunicações S/A –, que visou contrastar decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que, de seu turno, confirmou a legalidade de ato do juízo da Vara de Menores da Comarca de São Paulo/SP que, por sua vez, determinara a apreensão de milhares de exemplares da revista “Realidade” ao argumento de carrearem conteúdo obsceno. O voto do relator, seguido pela maioria, é deveras rico para o exame que ora se realiza. Vejamos um excerto do acórdão:

Ninguém contesta o direito de a sociedade, da qual é órgão o Estado, defender-se do obsceno e repugnante e, sobretudo, preservar de influências deletérias o caráter do adolescente e da criança.

(...)

Mas o conceito de "obsceno", "imoral", "contrário aos bons costumes" é condicionado ao local e à época. Inúmeras atitudes aceitas no passado são repudiadas hoje, do mesmo modo que aceitamos sem pestanejar procedimentos repugnantes às gerações anteriores. A Polícia do Rio, há 30 ou 40 anos não permitia que um rapaz se apresentasse de busto nu nas praias e parece que só mudou de critério quando o ex-Rei Eduardo VIII, então Príncipe de Gales, assim se exibiu com o irmão em Copacabana. O chamado bikini (ou "duas peças") seria inconcebível em qualquer praia do mundo ocidental, há 30 anos.

Negro de braço dado com branca em público, ou propósito de casamento entre ambos, constituía crime e atentado aos bons costumes em vários Estados norte-americanos do Sul, até tempo bem próximo ao atual.

(...)

Os juízes dos tempos de nossos avós e pais, ao que eu saiba, não apreenderam nunca A Carne, de Júlio Ribeiro, hoje um clássico. Mostraram com isso compreensão acima de qualquer farisaísmo ou pressão religiosa. Não há motivo para imitarmos o puritanismo da autoridade postal dos Estados Unidos, que proibiu o tráfego de cópias coloridas da Maya desnuda, de Goya, pintada no mais católico, preconceituoso e clerical dos países. Seria o mesmo que um cache-sexe no David de Miguel Ângelo.

(...)

Entendo que há direito líquido e certo de alguém expor e defender livremente seu pensamento, respondendo pelos abusos que cometer.

(...)

Concedo que, no exercício do poder de polícia, a autoridade pode apreender a publicação evidentemente pornográfica, obscena ou contrária aos bons costumes (...), sem nenhum propósito de divulgação científica, artística, educacional ou literária. (...) a obra controversa deve ser analisada em seu todo (e não em trechos isolados) do ponto de vista do cidadão médio. É o padrão moral deste, e não do juiz, o metro de aferição.

(...)

Concluindo, pervaguei a vista pelo exemplar de Realidade anexo aos autos – o que foi objeto da apreensão – e não lhe atribuo o caráter de publicação obscena, imoral, sórdida ou contrária aos bons costumes. A linguagem é decorosa, a exposição se fez em tom alto e não encontrei apologia ao vício, da anomalia ou mesmo da irreverência, enfim nenhum juízo de valor que se possa considerar anti-social. Não há ofensa aos padrões atuais do Brasil ou de qualquer país. – (destacamos)

 À vista da manifestação do eminente ministro, é fácil notar que toda a linha argumentativa exposta converge no sentido de ser procedente a rogativa recursal. No entanto, apenas os trechos negritados constituem, quando conjugados, a ratio decidendi do precedente, que, inobstante o direito vigente à época, pode-se resumir da seguinte forma: não sendo a publicação contrária aos bons costumes, terá seu veiculador direito de livremente expô-la. Foi dado, dessa forma, parcial provimento ao recurso.

Em consequência, conclui-se que, à exceção dos trechos acima mencionados, todo o extenso juízo de valor feito pelo julgador não se afigurou decisivo para a construção da tese jurídica perfilhada, não obstante sua pertinência no caso.

Aplicando-se ao precedente a teoria de Wambaugh, previamente exposta, nota-se que as únicas proposições cujas alterações lógicas mudariam o desfecho do julgamento são “há direito líquido e certo de alguém expor e defender livremente seu pensamento” e “não lhe atribuo o caráter de publicação obscena”. As demais, acaso tivessem seu valor positivo ou negativo alterado, em nada modificariam o dispositivo do acórdão, apenas soariam desconexas em relação ao contexto decisório.

Se, por outro lado, aplicarmos o método de Goodhart, também anteriormente abordado, temos como fato central a obscenidade do periódico, sendo a tese jurídica que o circunda – publicações não obcenas podem ser divulgadas – a ratio decidendi.

Efetuemos mais um exame: o do recente julgamento do Recurso Especial n° 1.414.887 – DF, efetuado em 19.11.2013. Na espécie, o deputado Valdemar Costa Neto e a esposa de seu pai, já falecido, interpuseram o especial em face de acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios que confirmou sentença denegatória de sua pretensão de condenação da empresa Abril Comunicações S/A ao pagamento de indenização por danos morais. Aduzia-se que o periódico “Veja”, veiculado pela empresa, teria divulgado reportagem sensacionalista, caluniosa e ofensiva, ao narrar o envolvimento do deputado e de seu pai no notório esquema de corrupção do “mensalão”. Assim votou a ministra relatora Nancy Andrighi, seguida à unanimidade pelos demais membros da 3° Turma do tribunal:

A lide que se apresenta tem como pano de fundo um conflito de direitos constitucionalmente assegurados. Com efeito, enquanto a atividade dos recorridos está pautada pelo direito à liberdade de pensamento (art. 5º, IV, da CF/88), à livre manifestação deste pensamento (art. 5º, IX, da CF/88) e ao acesso à informação (art. 5º, XIV, da CF/88), os recorrentes invocam o direito à sua honra e reputação, visando à compensação por danos morais que alegam ter sofrido (art. 5º, X, da CF/88).

Conforme consignei no julgamento do REsp 984.803/ES que trata de hipótese semelhante, “a solução deste conflito não se dá pela negação de quaisquer desses direitos. Ao contrário, cabe ao legislador e ao aplicador da lei buscar o ponto de equilíbrio onde os dois princípios mencionados possam conviver, exercendo verdadeira função harmonizadora” (3ª Turma, DJe de 19.08.2009).

Além disso, “a liberdade de informação deve estar atenta ao dever de veracidade, pois a falsidade dos dados divulgados manipula, em vez de formar a opinião pública, bem como ao interesse público, pois nem toda informação verdadeira é relevante para o convívio em sociedade” (REsp 896.635/MT, 3ª Turma, de minha relatoria, DJe 10/03/2008).

Em outras palavras, pode-se dizer que a honra dos cidadãos não é atingida quando são divulgadas informações verdadeiras e fidedignas a seu respeito, as quais, outrossim, são de interesse público.

Há que se analisar, portanto, se na hipótese concreta, a informação veiculada, além de verídica, era relevante ao interesse público.

No que respeita à relevância da informação, ela é evidente. A sociedade tem o direito de ser informada acerca de investigações em andamento sobre supostas condutas ilícitas praticadas por deputado federal, eleito como seu representante, na Câmara Federal, bem como por seu pai, quando era prefeito da cidade de Mogi das Cruzes.

Investigações essas, destaque-se, relacionadas ao “escândalo do mensalão”, que decorreram, na hipótese, de depoimentos prestados pelo Sr. Lucio Bolonha Funaro à Procuradoria Geral da República, os quais, à época, culminaram com o recebimento da denúncia pelo STF, e, recentemente, com a condenação de diversos acusados, dentre os quais, o próprio recorrente VALDEMAR COSTA NETO, estando ainda pendente o julgamento de recursos contra a decisão.

(...)

Ocorre, todavia, que a reportagem não conclui que o deputado e seu pai são culpados ou que efetivamente tinham envolvimento com o esquema de corrupção para o desvio de recursos públicos, mas apenas informa a existência de investigações sobre as informações prestadas pelo corretor de câmbio à PGR.

(...)

Ainda que posteriormente nada tivesse ficado comprovado, o fato é que, conforme apontado nas instâncias ordinárias, quando a reportagem foi veiculada, as investigações mencionadas estavam em andamento e o depoimento do Sr. Funaro à PGR havia sido efetivamente realizado.

A responsabilidade da imprensa pelas informações veiculadas é de caráter subjetivo, não se cogitando da aplicação da teoria do risco ou responsabilidade objetiva.

Assim, conforme consignei no acórdão do REsp 984.803/ES, não basta a divulgação de informação falsa, exige-se prova de que o agente divulgador conhecia ou poderia conhecer a inveracidade da informação propalada.

O veículo de comunicação exime-se de culpa quando busca fontes fidedignas, quando exerce atividade investigativa, ouve as diversas partes interessadas e afasta quaisquer dúvidas sérias quanto à veracidade do que divulgará. Pode-se dizer que o jornalista tem um dever de investigar os fatos que deseja publicar.

Diante do exposto, conclui-se que o recorrido foi diligente na divulgação da informação, não atuando com abuso ou excessos. As suspeitas que recaiam sobre o deputado eram decorrentes das investigações realizadas pela PGR, haja vista a colaboração do corretor de câmbio, Sr. Lúcio Bolonha Funaro, em regime de delação premiada, que, em conjunto com outros elementos, culminaram com o oferecimento e recebimento da denúncia pelo STF e, posteriormente, com a condenação do deputado Valdemar Costa Neto pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro (acórdão do Plenário do STF, na AP 470, publicado no DJ em 22.04.2013, www.stf.jus.br).

Não houve, por conseguinte, ilicitude na conduta dos recorridos. E ausente um dos elementos da responsabilidade civil aquiliana, qual seja, a conduta ilícita, também está ausente o dever de indenizar, devendo ser mantido o acórdão do Tribunal de origem que julgou improcedente o pedido. (REsp nº 1.414.887 – DF. Relatora  Ministra Nancy Andrighi, julgamento em 19 de novembro de 2013) – destacamos.

O exercício, agora, ganha maior complexidade.

Mais uma vez, verifica-se que os elementos argumentativos que compõem a razão de decidir do precedente estão destacados em negrito. Nota-se no caso, a esse propósito, a existência de duas rationes decidendi: a) a honra não é atingida quando são divulgadas informações verdadeiras; b) a divulgação de informação falsa não macula a honra, dês que ausente a culpa do que divulga. Há, dessarte, duas razões de decidir independentes no precedente.

A tese jurídica segundo a qual fatos verdadeiros não ofendem a honra (a) levaria à averiguação da veracidade ou não do conteúdo veiculado, e, caso fosse verdadeiro, não se teria responsabilização e, contrariu sensu, sendo falso, responderia o divulgador. Dessa forma, não se condenaria a empresa em razão da veracidade do divulgado.

Se se utilizar a segunda razão de decidir (b), perscrutar-se-á não acerca da veracidade dos fatos – já que indiferentes para a responsabilização –, mas tão somente acerca da culpa (em sentido lato) daquele que divulga o conteúdo. Nessa linha, a empresa não seria responsabilizada ante a falta de culpa.

As razões possuem pontos de contato, e podem, a depender do quadro fático sob julgamento, conduzir o julgador a decisões de igual sentido, mas, como se vê, seus fundamentos são distintos.

Verifica-se, nesse caso, a mencionada falha na teoria de Wambaugh. Como as rationes decidendi são autônomas e, por si só, sustentam a decisão, caso se altere seus valores lógicos, não se terá necessariamente a modificação do modo de decidir, de sorte que, ao se seguir à risca o método, concluir-se-á de forma equivocada que ambas as rationes são obiter dicta. Utilizando-se a teoria Goodhart, por outro lado, tem-se como fatos centrais analisados no precedente a veracidade das alegações e a culpa do veiculador, de modo que as teses jurídicas que os orbitam são as rationes decidendi.

1.3) O PRECEDENTE JUDICIAL E OS PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA ISONOMIA

Ao lado dos aspectos já abordados, avulta de importância para a exata compreensão da temática do precedente judicial sua relação com a segurança jurídica e a isonomia.

O sistema de precedentes, mormente com a concepção do stare decisis (diretriz que garante a eficácia vinculante do precedente, em linhas gerais), busca garantir acima de tudo a coerência da ordem jurídica, prestando-se ao aperfeiçoamento dos princípios mencionados.

Ao fazer com que a ratio decidendi de decisões prolatadas por uma corte superior seja necessariamente seguida pelos órgãos jurisdicionais inferiores, garante-se, de forma plena, a isonomia entre os jurisdicionados. Assegura-se, de igual forma, a previsibilidade e a estabilidade na aplicação do direito e, portanto, a segurança jurídica.

No entanto, a prática judicial brasileira atual, à míngua de um efetivo sistema de precedentes, convive diuturnamente com uma realidade que, a um só tempo, macula ambos os postulados em questão: a solução díspar de casos análogos[14].

Não é demais lembrar que um dos princípios mais caros a um Estado Democrático de Direito é o da a isonomia. A todos, independentemente de classe econômica, condição física, situação social, ascendência, sexo, idade, cor, credo ou quaisquer outros elementos distintivos, deve-se assegurar tratamento jurídico idêntico. O tratamento desigual só se justifica quando necessário à efetivação da própria igualdade.

Nesse tocante, reza o art. 5º, caput, da Constituição Federal que todos são iguais perante a lei, sem quaisquer distinções, bem assim o Código de Processo Civil de 1973 hospeda vários mecanismos destinados a assegurar a igualdade processual, notadamente a paridade de armas. Diante disso, poder-se-ia pensar que a dinâmica do Processo Civil brasileiro está guarnecida de ferramentas bastantes à garantia da efetiva isonomia.

Ocorre, porém, que nosso Processo Civil de hoje, em regra, preocupa-se tão somente com a isonomia na dimensão interna ao processo. Temos uma igualdade meramente processual e procedimental, e não material. É dizer, quando da outorga ou não do bem da vida objeto da demanda, não está o órgão jurisdicional a obedecer o postulado da isonomia, ou, nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni, o magistrado “não se submete ao princípio da igualdade no momento de decidir”[15]. São lapidares, a esse propósito, as seguintes palavras desse doutrinador:

Embora deva ser no mínimo indesejável, para um Estado Democrático, dar decisões desiguais a casos iguais, estranhamente não há qualquer reação a esta situação na doutrina e na praxe brasileiras. É como se estas decisões não fossem vistas ou fossem admitidas por serem inevitáveis. A advertência de que a lei é igual para todos, que sempre se viu escrita sobre a cabeça dos juízes nas salas do civil law, além de não mais bastar, constitui piada de mau gosto àquele que, em uma das salas do Tribunal e sob tal inscrição, recebe decisão distinta a proferida – em caso idêntico – pela Turma cuja sala se localiza metros mais adiante, no mesmo longo e indiferente corredor do prédio que, antes de tudo, deveria abrigar a igualdade de tratamento perante a lei.[16]

A fim de se garantir o respeito material ao princípio da isonomia, é incontornável a necessidade de se garantir que a casos análogos seja dispensado tratamento jurídico idêntico (treat like cases alike). Nessa linha:

É imprescindível que se promova uma necessária redefinição dogmática do princípio da igualdade, que deve ser pensado como ideal isonomia frente ao Direito, e não apenas frente à lei. É preciso que, na leitura do caput do art. 5º da Constituição Federal, o termo “lei” seja interpretado como “norma jurídica”, entendendo-se que todos são iguais, ou que devem ser tratados como iguais, perante a “norma jurídica”, qualquer que seja ela, de quem quer que ela emane.[17]

A par disso, não se pode olvidar que o “Direito propõe-se a ensejar uma certa estabilidade, um mínimo de certeza na regência da vida social. Daí o chamado princípio da ‘segurança jurídica’, o qual, bem por isto, se não é o mais importante dentre todos os princípios gerais de Direito, é, indisputavelmente, um dos mais importantes entre eles”[18].

No entanto, na atualidade, o Judiciário brasileiro não garante de forma cabal ao jurisdicionado a estabilidade e a previsibilidade ínsitas ao postulado da segurança jurídica. À falta de certeza sobre como procederá o magistrado quando da apreciação de determinado caso, não tem o cidadão condições plenas de prever as consequências jurídicas de determinados atos e, por conseguinte, de reconhecer seu próprios direitos[19].

Sucede que não é apenas em relação ao passado que se mostra necessário garantir estabilidade. O indivíduo, muita vez, termina por pautar a sua conduta presente com base num comportamento adotado por outro indivíduo ou, o que mais nos interesse aqui, pelo Estado. Dentro dessa dimensão pública, é natural que as soluções dadas pelo Poder Judiciário às situações que lhe são postas para análise sejam levadas em consideração pelo indivíduo para moldar a sua conduta presente. Isso se verifica ainda mais quando se observa a importância que os precedentes judiciais vem ganhando em nosso ordenamento. Ao conferir-lhes o mais diversos efeitos jurídicos, o legislador brasileiro visa a garantir certa previsibilidade quando à atuação do Estado-juiz.[20]

É bem verdade que em nossa ordem constitucional são previstas as atribuições do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça de, respectivamente, uniformizar a interpretação da Constituição (art. 102, inciso III, da Lei Maior) e da legislação federal (art. 105, inciso III, do diploma constitucional). No entanto, à parte do papel do Pretório Excelso – cujas decisões em sede de controle de constitucionalidade têm possuído efeito vinculante e respeitado, pois, a segurança jurídica e a igualdade –, “as decisões do Superior Tribunal de Justiça não são respeitadas nem no âmbito interno da Corte. As turmas não guardam respeito pelas decisões das Seções e, o que é pior, entendem-se livres para decidir casos iguais de forma desigual”[21].

Não se pode, porém, ser suficientemente ingênuo ao ponto de pensar que a adoção de um sistema de precedente, de per se, excluirá de forma absoluta a possibilidade de haver soluções diferentes de casos parecidos. É que “o sistema de precedentes judiciais jamais eliminará a contradição e a divergência. Ele apenas reduz sua ocorrência, conferindo-lhe maior integridade sistêmica”[22].

1.4) ARGUMENTOS FAVORÁVEIS E CONTRÁRIOS A UM SISTEMA DE PRECEDENTES

A par da relação do precedente judicial com os princípios da segurança jurídica e da isonomia, que, a nosso sentir, afigura-se o argumento de maior peso a favor de uma dinâmica de precedentes – de importância tamanha a garantir-lhe estudo próprio neste trabalho (item 1.3 retro) –, avultam outros que também evidenciam os benefícios desse sistema. É possível, contudo, identificar pontos desfavoráveis a ele. Vejamos, nessa linha, ambos os lados da questão, iniciando com o favorável (1).

Com efeito, pode-se concluir que, em um sistema jurídico em que é possível ao julgador decidir o mesmo caso concreto de maneiras diferentes, a depender de sua interpretação das normas pertinentes, não se pode garantir a sua imparcialidade. Nada obsta que o magistrado decida determinado caso por razões outras que não a melhor aplicação do direito, e mascare sua verdadeira intenção por meio de fundamentação que se apresente escorreita[23]. Dessa forma, ao vincular a atuação do magistrado ao precedente, está-se a (1-a) garantir a imparcialidade do julgador.

Imaginemos a existência de um precedente, vinculante ou não, sumulado ou não que expressa o seguinte entendimento: é legítima frente à Constituição e à Convenção Interamericana de Direitos Humanos a prisão civil do devedor de alimentos. (...)

Caso o juiz, o mal juiz, diga-se de passagem, resolva ceder à pressão, tentado pela vantagem que lhe foi prometida ou já entregue, queira livrar o devedor da prisão, ele terá que contrariar os precedentes, sendo que a situação se agrava se o próprio juiz já tiver decidido casos semelhantes no mesmo sentido dos precedentes.[24]

Ademais, com a padronização da atuação do Judiciário, o que garante a previsibilidade das decisões e torna factível que o jurisdicionado tenha real expectativa na forma com que será julgado seu caso, ocorre o (1-b) desestímulo à ligitância judicial [25].

Isso porque, em um sistema jurídico em que nunca se tem certeza sobre o modo de solução da lide, tendo o indivíduo mínimas chances de êxito, por vezes, convir-lhe-á o manejo de ação judicial. Trata-se de raciocínio idêntico ao do apostador de loteria. Entretanto, se houvesse efetiva previsibilidade quanto ao posicionamento do julgador, saber-se-ia, de antemão, com significativo grau de certeza, o malfadado destino da pretensa demanda, dissuadindo-se, então, seu ajuizamento, mormente porque a litigância judicial possui profundas implicações pessoais e econômicas. Noutro falar, se o apostador soubesse desde logo que não se sagraria vencedor, a aposta não teria razão de ser.

Nesse mesma toada, pode-se afirmar que a previsibilidade das decisões, de modo a ser possível às partes prever com segurança o desfecho de suas pretensões, (1-c) favorece a realização de acordos.

Além disso, a vinculação das instâncias inferiores às superiores garante a (1-d) racionalização do duplo grau de jurisdição, tornando-o mais lógico e coerente.

Não havendo essa vinculação, e podendo o magistrado de grau inferior, portanto, decidir de maneira diversa do entendimento da corte superior, obrigar-se-á a parte a recorrer com o único fito de ver a decisão a quo se alinhar com a posição do órgão ad quem, que, desde o início, deveria definir o caso.

Nesse caso, como é óbvio, além de se agravar, desnecessariamente, a carga de trabalho do tribunal – em total descaso com a eficiência e a economia da administração da justiça –, prejudica-se irracionalmente não só a parte cujo direito já foi reconhecido pelo Judiciário, mas, o que é ainda pior, também a parte que se comportou de acordo com a orientação do tribunal superior e nela depositou sua expectativa.

Ora, se a decisão do tribunal superior previamente fixa o resultado da demanda, na medida em que o processo pode terminar em tal tribunal, dependendo exclusivamente da interposição de recurso, não há como admitir que o tribunal inferior possa decidir de forma diferente.[26]

Nesse mesmo sentido, se se impede que a parte tenha de recorrer apenas para fazer valer a posição do tribunal superior, vinculando a atuação do órgão jurisdicional inferior à do superior, obsta-se que o processo tramite desnecessariamente por mais tempo, perfazendo, por vezes, morosa via-crúcis com início no juízo singular e fim no Supremo Tribunal Federal. Dessa forma, o sistema de precedentes (1-e) contribui para a efetivação do princípio da duração razoável do processo, expressamente inserido em nossa ordem constitucional no inciso LXXVIII do art. 5° da Lei Maior[27], bem assim concorre para que haja (1-f) economia de despesas judiciais.

É deveras interessante o levantamento feito por Gustavo Santana Nogueira a esse respeito:

No STJ (...), há dados relevantes acerca do ano de 2008, como por exemplo:

Taxa de recorribilidade interna em acórdãos publicados: 37,07%

Taxa de recorribilidade interna em decisões unipessoais: 20,97%

Taxa de recorribilidade externa (recursos extraordinários – STF): 12,34%

Taxa de recorribilidade externa em decisões denegatórias de RE: 68,42%

Em 2008 o STJ julgou 354.042 processos, sendo 106.984 recursos especiais, 121.106 agravos de instrumentos, 51.195 agravos regimentais, entre outros. O tempo de duração de um processo no referido Tribunal, entre a distribuição e a baixa/arquivamento é de 470 dias para um recurso especial, 215 dias para um agravo de instrumento e 157 dias para um agravo regimental.

(...) Sabe-se que o Ministro relator, nos termos do arts. 38 da Lei n° 8.038/90 e 557 do Código de Processo Civil,pode julgar um recurso monocraticamente se a sua decisão for respaldada em precedentes, e os dados estatísticos revelam que a quantidade de decisões monocráticas é significativamente superior se comparada com a quantidade de decisões colegiadas. A 1ª Seção do STJ, por exemplo, julgou em 2008 5.012 processos monocraticamente através dos relatores, enquanto que as decisões colegiadas do órgão foram 1.939. A mesma proporção se repete nas demais Seções, nas Turmas e na Corte Especial. Isso nos mostra que o julgamento monocrático transformou-se de exceção em regra.

A taxa de recorribilidade das decisões monocráticas ficou em 20,97%, o que significa que o (bom) uso dos precedentes pode contribuir para uma maior celeridade, pelo menos no STJ, onde [SIC] existem dados estatísticos revelando o que se passa no Tribunal. Assim sendo, suponhamos que em um ano a 1ª Turma do STJ receba 30.000 processos. Desses 30.000, aproximadamente 20.000 serão julgados monocraticamente (...) e 10.000 serão remetidos ao colegiado.

Dessa forma podemos afirmar que os 20.000 processos julgados monocraticamente são causas que têm similitude com outras que já foram julgadas anteriormente e que produziram precedentes (...). Os outros 10.000 remetidos ao colegiado servirão para formar precedentes para o futuro, e certamente contribuirão para que mais na frente tenhamos uma quantidade maior de julgamentos monocráticos, sem a necessidade de provocar a reunião do colegiado. [28]

De outra parte, colhem-se argumentos contrários ao a um sistema jurídico que garanta força vinculante ao precedente (2).

Deveras, em uma análise superficial, pode-se imaginar que a rígida uniformização da atuação do Judiciário, inerente à força obrigatória do precedente, poderia acarretar um (2-a) óbice à evolução e à adaptação temporal do direito.

Esse raso raciocínio, à evidência, parte do pressuposto de que, uma vez fixado determinado precedente, seria ele imutável, devendo, portanto, ser seguido indefinidamente. No entanto, como detidamente se analisará no item “3.2” deste trabalho, a força vinculante dos precedentes não é – tampouco deveria ser – absoluta. Há em um sistema de precedentes mecanismos que visam à modificação daqueles que não se afiguram a melhor solução para o caso, seja porque houve vício em sua origem, seja porquanto não mais se coadunam com a lei, ou mesmo com a ordem social, política, econômica ou qualquer outro aspecto da vida humana com o condão de influir no direito. Não é outra a função do overruling, do overriding, do signaling e da transformation.

E, “no direito brasileiro, firmada uma cultura precedentalista, a revogação dos precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça caberá respectivamente a cada um destes tribunais. E isso será imprescindível ao se ter fortes e convincentes fundamentos da inviabilidade da perpetuação do precedentes em face da mutação da realidade ou dos valores sociais”[29].

Há quem diga, outrossim, que a rigidez da força vinculante do precedente mostra-se (2-b) empecilho à efetivação da igualdade substancial[30], uma vez que não possibilitaria o tratamento diferenciado de casos que, por sua dessemelhança com o quadro fático que pressupõe a aplicação do precedente, não poderiam ser tratados de maneira uniforme. Olvidam os que assim argumentam, contudo, que “respeitar precedentes não redunda – nem jamais redundou – numa obrigação de aplicá-los de forma irrefletida” [31], de sorte que, inclusive, a dinâmica de precedentes vinculantes traz consigo a técnica do distinguishing (item 3.2.1 deste estudo), que justamente impede que seja o precedente aplicado a casos que encerram plexo fático diverso.

Para a clássica tripartição das funções do Estado, concebida inicialmente por Montesquieu em seu “Do Espírito das Leis”, ou mesmo para sua moderna evolução, que considera a distribuição orgânica das funções estatais, realizadas em simbiose por todos os “poderes”, e à luz do sistema de freios e contrapesos (checks and balances), a possibilidade de o Judiciário veicular disposições com o condão de vincular de maneira geral todos os seus membros poderia configurar (2-c) violação à separação dos poderes.

Luiz Guilherme Marinoni, porém, vai ferrenhamente de encontro a esse raciocínio. Para o autor:

O questionamento da força obrigatória das decisões judiciais diante do princípio da separação dos poderes constitui gritante falta de consciência jurídica ou ingenuidade enfadonha e inescusável. Quem vê problemas na imposição obrigatória de determinada interpretação da lei parece não ter percebido que o Judiciário, muito mais do que fixar interpretação da lei, tem o poder de, a partir da Constituição, negar a lei, alterá-la ou mesmo criá-la diante de omissão ou insuficiência capaz de inviabilizar a tutela de direito fundamental. Ora, não é preciso muito esforço para entender que se o juiz, singularmente, pode controlar a constitucionalidade da lei, os tribunais superiores evidentemente podem decidir com força obrigatória sobre todos os membros do Poder Judiciário. Nesta dimensão, aliás, obviamente também não há como afirmar que a súmula vinculante, por ter eficácia que incide além do Poder Judiciário, viola a separação dos poderes.[32]

Entendemos, também nesse sentido, que a força vinculante do precedente não faz com que o Judiciário usurpe função precípua do Legislativo. Isso porque, sobretudo, o precedente não se sobrepõe à lei, mas, em regra, partindo da norma nela veiculada, constrói sua ratio decidendi, ou, na sua falta – e somente nessa hipótese –, cria situação reguladora do caso concreto. Há, pois, relação de harmonia, e não de sobreposição, entre precedente e lei.

Não se pode confundir, a esse propósito, o controle de constitucionalidade das leis com a aventada sobreposição. Os campos de competência da função judiciária e legislativa não se interferem, permanecendo incólumes nessa situação. O que ocorre em verdade é que, justamente por força do sistema de freios e contrapesos, ao Judiciário cabe aferir a compatibilidade vertical das leis com a Constituição, sem que isso signifique indevida ingerência.

Sobre o autor
Guilherme Mungo Brasil

Aluno regular do Mestrado em Fronteiras e Direitos Humanos (interdisciplinar) da Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD, pesquisando sobre a resolução consensual de conflitos coletivos. Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/Minas, graduado em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS. Atualmente é Analista do Ministério Público da União: Especialidade Direito, com lotação no Ministério Público Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRASIL, Guilherme Mungo. A concepção do precedente judicial pelo direito brasileiro:: aspectos históricos, atuais e prospectivos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4074, 27 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31291. Acesso em: 22 nov. 2024.

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