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A concepção do precedente judicial pelo direito brasileiro.

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Agenda 27/08/2014 às 12:22

2. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRECEDENTE: DO SURGIMENTO DO COMMON LAW AO STARE DECISIS

A análise de qualquer fenômeno jurídico feita a contento não prescinde do exame de sua evolução histórica. E aqui não se poderia proceder de maneira diferente.

Com efeito, a tradição33 jurídica do common law é marcada pela forte prevalência da jurisprudência e de direito comuns, anteriores às leis e às próprias decisões que os reconhecem.

A Common Law corresponde a um sistema de princípios e de costumes observados desde tempos imemoriais e aceitos, tacitamente, ou expressamente pelo poder legislativo, revestindo ora caráter geral, quando vigoram em todas as jurisdições, ora caráter especial, quando imperam em certas regiões, tão somente. Sua prova resulta da jurisprudência, pois ao julgarem os casos concretos, os juízes declaram o direito comum, que lhes é aplicável. Os julgados assim proferidos, registrados nos arquivos das cortes e publicados em coletâneas (reports), adquirem a força obrigatória de regras de precedentes (rules of precedents), para regerem os casos futuros; ademais juízes e juristas deles extraem princípios e regras, que subsequentemente, ampliam os limites da Common Law e, assim generalizados, propiciam a sua evolução.34

A tradição jurídica perfilhada em especial pela Inglaterra e pelos Estados Unidos segue a diretriz do judge make law (o juiz faz a lei). A nomenclatura do postulado, contudo, pode conduzir a equívoco. Com o brocardo judge make law ou law-making authority (autoridade de fazer a lei) não se quer dizer que as normas são veiculadas pelas decisões judiciais, mas que os atos estatais e as próprias leis são controlados pelo Judiciário. A bem da verdade, o papel do juiz no common law se assemelha muito ao do juiz submetido à Constituição e aos direitos fundamentais35.

Com efeito, se alguém perguntar a qualquer teórico do common law a respeito da natureza da função do juiz que não aplica a lei por reputá-la inconstitucional, que se vale da técnica da interpretação conforme a Constituição ou que supre a omissão de uma regra processual que deveria ter sido estabelecida em virtude de um direito fundamental de natureza processual, certamente se surpreenderá. Tal atividade obviamente não significa declaração de direito, e assim, na perspectiva das doutrinas produzidas no common law, certamente revela uma atividade produtora, verdadeira criação judicial do direito.36

O uso da jurisprudência como fonte primeira do Direito surgiu de forma espontânea nessa tradição jurídica, sendo que “pouco se pode precisar sobre o seu nascimento, pois ‘cresceu, de forma assistemática, e é tão natural na cena inglesa como o carvalho, o freixo e o sabugueiro’”37.

E enquanto a porção continental da Europa incorporava, no decorrer do século XI, a dinâmica jurídica advinda do Império Romano, cultivando o embrião do civil law, “a Inglaterra passou praticamente ilesa à influência do direito romano”38.

Quando o direito romano atingiu o horizonte da Inglaterra, esta já tinha em formação uma classe de técnicos do direito capazes de desenvolver, à base autônoma dos usos anglo-normandos, uma jurisprudência criativa que, curiosamente, era metodicamente similar, sob o aspecto casuístico, àquela romana clássica e, portanto, tecnicamente auto-suficiente.39

O Estado inglês, assim, permaneceu regrado por um Direito germânico-feudal comum, sobretudo em razão da invasão do país pelos normandos, em 1066, o que significou o estabelecimento, na Inglaterra, de um poder forte, centralizado, carregado de uma grande experiência administrativa40. Guilherme I (1066-1087), Duque na Normandia, considerava-se herdeiro dos reis saxões e, portanto, acolheu os seus costumes e seu modo de conceber o direito41.

Durante o reinado de um de seus sucessores, Henrique II (1154-1189), em que vigia um direito composto por normas consuetudinárias, anglo-saxônicas e normandas, houve a expansão dos limites da jurisdição inglesa, robustecendo-se, assim, essa tradição jurídica42.

A esse propósito, os primeiro juízes da common law aplicavam regras de origem germânica, já que “princípios provenientes do direito germânico serviram de alicerce do sistema jurídico anglo-americano”43. A esses mesmos magistrados cabia, a fim de cumprir seu mister, a tarefa de identificar a ratio decidendi para adaptá-la ao caso concreto.

Nesse passo, em 1187, foi publicada a obra intitulada “Glanvill”, considerada o marco do início científico do common law. No livro houve a elaboração de comentários acerca dos procedimentos a serem seguidos pela Corte Real.

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Mais tarde, em 1220, Henry Bracton publicou pela primeira vez a obra “Treatise”, em linhas muito gerais, criticando os juízes de seu tempo, e elogiando seus antecessores, o que teria influenciado os juristas da época a pleitearam perante as cortes fazendo o uso de casos já decididos. Trata-se de outro significativo marco científico do common law.

Não é preciso salientar que essa concepção de organização judiciária centralizada, possibilitando a todos os homens livres o acesso à justiça, contribuiu sobremaneira para infundir nos súditos o conhecimento do direito em vigor.

O desenvolvimento e a aceitação dessa práxis foram tão amplos e inusitados, que Henrique de Bracton, escrevendo em meados do século XIII, foi capaz de desenhar um grande sistema de direito e de processo, arquitetado pelos próprios ingleses.44

Nesse andar, as decisões judiciais que continham o comando a seguir em um caso determinado iam sendo catalogadas, ao longo dos anos, nos statue books.

A guarda e seleção das atas de julgamento (court enrollments ou, simplesmente, plea rolls), a partir de um writ real, de 1292, passam a ser observadas com o escopo de auxiliar no aprendizado do ensino jurídico. Esse costume já estava consagrado sob a coroa de Henrique VI (1422-1461), tomando-se inclusive o cuidado de traçar, com maior clareza e precisão, a questão de direito debatida no caso concreto.

(...)

Em meados do século XVI, seguindo uma natural evolução, o estilo dessas compilações foi substituído pelos Law Reports, em formato muito próximo aos repertórios da época moderna, com a transcrição textual do caso e do respectivo julgamento. É evidente que esse novo método possibilitava maior precisão no estudo e manuseio das anteriores decisões à guisa de precedentes.45

Dessa forma, em pouco tempo havia se instituído o hábito das partes de realizar citações de casos análogos já solucionados, a fim de exemplificar seus direitos. Foram criadas, assim, publicações periódicas visando à divulgação das petições de advogados e decisões das cortes. Eis o surgimento de uma prática característica do Direito inglês: o case law.

Ademais, enquanto na França o ideário iluminista acarretou o engessamento da atividade judiciária, fazendo prevalecer o Legislativo, na Inglaterra, as revoluções do século XVII – Puritana e Gloriosa –, também incentivadas pelo novo modo de pensar o mundo, reforçaram os poderes e a liberdade interpretativa dos magistrados, garantindo maior legitimidade à tradição do common law. Isso porque, no Estado inglês, os juízes sempre estiveram a favor dos indivíduos e contra o absolutismo, comungando, portanto, com os ideais revolucionários. Confira-se, nesse sentido:

A Revolução inglesa, conduzida pelos nobres proprietários do Parlamento contra o absolutismo do rei, diversamente da Revolução Francesa, não considerava os juízes como uma ameaça, mas antes como um poder amigo do Parlamento na luta contra as arbitrariedades do soberano. Por essa razão que, no direito inglês, não houve a necessidade de se criar o dogma da prevalência da lei e da aplicação estrita da lei pelo magistrado (juiz boca da lei), garantindo-lhe espaço e poder para interpretar a lei.46

Tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos, diferentemente do contexto francês, os juízes desempenhavam frequentemente um papel progressista em favor dos indivíduos contra os abusos de poder, assim como também desempenharam um importante papel no processo de centralização do poder e de desmantelamento do feudalismo, de modo que o medo quanto à possibilidade de o juiz criar o direito ou quanto à possibilidade de interferência deste na administração não existiu nesses países.47

A permanência do common law propiciou a manutenção do caráter jurisprudencial do direito inglês, razão pela qual se pode reconhecer, naquele país, a existência de um verdadeiro Poder Judiciário. Esse é um dos elementos diferenciadores do direito inglês em relação ao Francês, onde [sic] existe uma função jurisdicional, autoridades judiciárias, mas não, verdadeiramente, um Poder Judiciário. A Constituição Francesa de 1958, ao tratar simplesmente de “autoridade judiciária”, traduziu com essa terminologia o que era, desde há muito, realidade na vida política francesa.48

Em que pese a difusão e a importância dos precedentes judiciais na tradição jurídica do common law, estes, por muito tempo, não tiveram o condão de vincular decisões ulteriores de casos semelhantes49. A diretriz que garante a eficácia vinculante dos precedentes – stare decisis –, ao contrário do que se pode imaginar, só veio a se estabelecer no século XIX, como natural evolução da dinâmica jurídica praticada desde tempo imemoriáveis no espaço geográfico que hoje denominamos Inglaterra.

No particular, a nomenclatura “stare decisis” é a abreviação do brocardo latino stare decisis et non quieta movere (mantenha aquilo que já foi decidido e não altere aquilo que já foi estabelecido)50. Trata-se, noutros termos, do efeito vinculante dos precedentes (aspecto detidamente abordado no item “3.1.1”).

O fenômeno jurídico é assim definido em obra de coordenação de Luiz Guilherme Marinoni, a partir do magistério de Schauer:

O stare decisis, portanto, mostra-se como “uma forma distinta de restrição por precedente. Sob a doutrina do stare decisis, uma corte deve decidir as questões da mesma forma que ela decidiu no passado, mesmo que os membros da corte tenham mudado, ou ainda que os mesmos membros tenham mudado de ideia. Tanto quando o precedente vertical, o stare decisis – precedente horizontal – trata de seguir as decisões de outros”.51

Demais disso, explicita José Rogério Cruz e Tucci a base teórica que alicerçou a doutrina do stare decisis:

A moderna teoria do stare decisis (...) informada pelo princípio do precedente (vertical) com força obrigatória externa para todas as cortes inferiores, veio inicialmente cogitada em prestigiada doutrina de um dos maiores juristas ingleses de todos os tempos, Sir Baron Parke J., que (...) escreveu: “O nosso sistema de Common Law consiste na aplicação, a novos episódios, de regras legais derivadas de princípios jurídicos e de precedentes judiciais; e, com o escopo de conservar uniformidade, consistência e certeza, devemos aplicar tais regras, desde que não se afigurem ilógicas e inconvenientes, a todos os casos que surgirem; e não dispomos da liberdade de rejeitá-las e de desprezar a analogia nos casos em que ainda não foram judicialmente aplicadas, ainda que entendamos que as referidas regras não sejam tão razoáveis e oportunas quanto desejaríamos que fossem. Parece-me de grande importância ter presente esse princípio de julgamento, não meramente para a solução de um caso particular, mas para o interesse do direito como ciência”.52

A noção do stare decisis, ademais, está desde a sua concepção vinculada aos postulados da segurança jurídica e da isonomia, tal qual abordado no item “1.3”, retro, do presente estudo.

É interessante notar que na obra dos primeiros comentadores da common law já se manifesta preocupação com o problema de julgamentos contraditórios. Sobretudo “na obra de Bracton começa a delinear-se a importância de ater-se, na decisão de casos similares, àqueles que já tinham sido antes decididos”. Chega-se mesmo a suscitar a questão da certeza do direito, quando colocada em perigo pelos juízes que decidiam desprezando o direito elaborado nos vetera iudicia.53

A vinculação ao precedente por força do stare decisis, insta mencionar, ocorre em relação ao próprio órgão prolator da decisão paradigma e àqueles inferiores a ele.

Com o fito bem elucidar, convém demonstrar a estrutura hierárquica de vinculação das decisões no Judiciário inglês, que pode ser resumida nos seguintes pontos:

1) As decisões tomadas pelo Comitê de Apelação da Câmara dos Lordes (mais alta corte do Reino Unido, de competência apenas recursal) constituem precedentes obrigatórios para todos aqueles investidos de jurisdição, salvo, excepcionalmente, para ele próprio;

2) As decisões da Court of Appeal (corte de segundo grau dentro da Suprema Corte) afiguram-se obrigatórias para todos os julgadores inferiores e, à exceção de matéria criminal, para a própria corte;

3) Os julgamentos proferidos pela High Court of Justice (corte civil-administrativa também da Suprema Corte) vinculam os julgadores abaixo dela, mas não a própria High Court of Justice, tampouco a Crown Court (órgão da Suprema Corte que aprecia apenas matéria criminal), não obstante tenham um grande valor persuasivo54.

Sobre o autor
Guilherme Mungo Brasil

Aluno regular do Mestrado em Fronteiras e Direitos Humanos (interdisciplinar) da Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD, pesquisando sobre a resolução consensual de conflitos coletivos. Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/Minas, graduado em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS. Atualmente é Analista do Ministério Público da União: Especialidade Direito, com lotação no Ministério Público Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRASIL, Guilherme Mungo. A concepção do precedente judicial pelo direito brasileiro.: Aspectos históricos, atuais e prospectivos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4074, 27 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31291. Acesso em: 23 dez. 2024.

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