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A concepção do precedente judicial pelo direito brasileiro:

aspectos históricos, atuais e prospectivos

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27/08/2014 às 12:22
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CAPÍTULO 04 – ASPECTOS PROSPECTIVOS DO PRECEDENTE NO DIREITO BRASILEIRO

A só análise do precedente judicial no direito brasileiro contemporâneo de certo traz ao leitor uma série de conceitos novos quando comparados ao Processo Civil de uma década atrás, podendo o fazer imaginar que estamos bastante adiantados quanto à matéria, e que, quiçá, as inovações parariam por aí.

A dinâmica jurídico-processual pátria que se avizinha, porém, trará significativas mudanças no Processo Civil brasileiro a partir da adoção de um sistema inédito de precedentes no país.

Portanto, veremos nas linhas que seguem as constatações e contribuições teóricas quanto ao assunto e, ao depois, o modo com que está sendo tratado o precedente judicial no Projeto de Novo Código de Processo Civil.

4.1) O REDIMENCIONAMENTO DO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO À LUZ DO SISTEMA DE PRECEDENTES

Para que iniciemos a análise pro futuro do precedente judicial no direito brasileiro, é necessário que antes nos atenhamos a um fato unívoco: a adoção de um sistema de precedentes vinculantes no país exige que repensemos dogmas e princípios.

4.1.1) FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL

Tal qual já exposto, um sistema de precedentes possui como núcleo a ratio decidendi. Assim, para que bem funcione, é mister que a todos se mostre clara e inequívoca a razão que levou o julgador a decidir daquela forma, de modo que a regra segundo a qual toda decisão judicial deve ser fundamentada, sob pena de nulidade (art. 93, inciso IX, da Constituição Federal), deve não só ser observada com mais rigor, mas também ser redimensionada. Isso sem embargo de a fundamentação da decisão não guardar paralelo com a ratio decidendi, já que é de todo modo imprescindível para que se identifique esta.

Deve-se reconhecer à fundamentação da decisão, ao lume da teoria dos precedentes, uma função que transcenda as fronteiras do processo em que foi lançada. A fundamentação deve ser elaborada tendo-se em conta que formará determinada ratio decidendi e, portanto, poderá operar efeitos em processos outros, e até mesmo orientar a conduta do indivíduo em sociedade.

Dessarte, é necessário que saiamos de uma concepção privatística da fundamentação como sendo requisito da decisão que justifica às partes o porquê do dispositivo para que a concebamos como elemento da ratio decidendi, pronta a vincular a solução de casos futuros.

Nesse sentido:

Mais do que nunca, é necessário valorizar a função extraprocessual da fundamentação, percebendo que ela não serve apenas à justificação, para as partes envolvidas naquele processo específico, da solução alcançada pelo órgão jurisdicional. Num sistema em que se valorizam os precedentes judiciais, a fundamentação serve também como modelo de conduta para aqueles indivíduos que não participam, nem nunca participaram, daquele processo específico, haja vista que poderá ser por eles invocado para justificar e legitimar sua conduta presente.[120]

4.1.2) O CONTRADITÓRIO

Na mesma medida em que se precisa repensar a regra da fundamentação das decisões, necessita-se fazê-lo em relação ao contraditório, visto que o modo com que este é exercido influirá diretamente na forma com que a decisão será prolatada e, por extensão, na ratio decidendi

A partir do momento em que percebemos isso – que, mesmo em processos específicos, é possível construir-se uma norma geral, aplicável a situações futuras –, o princípio do contraditório, visto como direito de participação na construção da norma jurídica, precisa ser repensado. Isso porque ele não mais pode ser visto apenas como sendo um direito de participação na construção da norma jurídica individualizada (aquela estabelecida no dispositivo da decisão); há de ser visto também como um direito de participação na construção da norma jurídica geral (a ratio decidendi, a tese jurídica estabelecida na fundamentação do julgado).[121]

Nesse tocante, é necessário distinguir as dimensões formal e substancial do contraditório. A primeira consiste na mera possibilidade de manifestação do interessado no processo, ao passo que a segunda, que ora nos interessa, reside na efetiva possibilidade de influência na decisão[122]. Para Cassio Scarpinella Bueno:

É que o contraditório, no contexto dos “direitos fundamentais” (...), deve ser entendido como o direito de influir, de influenciar, na formação da convicção do magistrado ao longo de todo o processo. Não se deve entendê-lo somente do ponto de vista negativo, passivo, defensivo. O Estado-Juiz, justamente por força dos princípios constitucionais do processo, não pode decidir, sem que garanta previamente amplas e reais possibilidades de participação daqueles que sentirão, de alguma forma, os efeitos de sua decisão.[123]

Nesse contexto, tendo-se como premissas que o contraditório é a possibilidade de aqueles que serão atingidos em alguma medida pela decisão nela influir, e que em um sistema de precedentes vinculantes a sociedade como um todo pode ser abarcada pela decisão, a única conclusão possível é que, para que se respeite de fato o princípio em questão, todos devem compor o contraditório.

Entretanto, por óbvio, é procedimentalmente inexequível que todos os jurisdicionados componham a lide, a fim de que exerçam de forma substancial o contraditório. Nada obstante, é possível imaginar mecanismos factíveis para efetiva e ampla participação social no processo.

4.1.2.1) AMPLIAÇÃO DA HIPÓTESE DE INTERVENÇÃO DO AMICUS CURIAE E DE TERCEIRO

O amicus curiae – amici curiae no plural – é, em linhas gerais, um assistente técnico do órgão julgador, e lhe provê de informações a que ordinariamente não teria acesso. Na generalidade dos casos, auxilia os magistrados em seu mister, subsidiando-lhes com conhecimentos que refogem daqueles usualmente possuídos por operadores do direito.

É o amicus curiae verdadeiro auxiliar do juízo. Trata-se de uma intervenção provocado pelo magistrado ou requerida pelo próprio amicus curiae, cujo objetivo é o de aprimorar ainda mais as decisões proferidas pelo Poder Judiciário. A sua participação consubstancia-se em apoio técnico ao magistrado.[124]

Sendo o amicus curiae sujeito processual[125] que amplifica a discussão em torno do objeto litigioso, é de clareza solar que sua atuação em processo que possa dar origem a precedente com efeito vinculante, além de ser imperiosa, tende apenas a tornar mais afinada ao direito, mais justa, a decisão.

Consoante clássico escólio de Grinover, Cintra e Dinamarco, a atividade judicial é eminentemente dialética[126]. O juiz vale-se da tese do autor e da antítese do réu para que, cotejando-as à luz das regras de julgamento, estabeleça a síntese. Nesse quadro, sendo possível ao magistrado socorrer-se, a par das manifestações de autor e réu, de elementos fornecidos pelo amicus curiae, terá substrato mais sólido à formação da síntese, é dizer, da razão de decidir, da ratio decidendi.

Não é outra a conclusão a que chegou Cassio Scarpinella Bueno em sua monumental obra sobre esse ente jurídico:

Por várias vezes ao longo deste trabalho ressaltamos que o ingresso do amicus curiae – e assim se dá desde suas origens mais remotas – poderia se justificar não só pela crescente “abertura” e “complexidade” das normas jurídicas, mas também porque cada vez mais as decisões judiciais proferidas em determinados casos acabam, de forma mais ou menos intensa, afetando o que se vai decidir ou como se vai decidir em casos futuros. Referimo-nos, aqui, ao que a doutrina vem chamando de “efeitos persuasivos” e “efeitos vinculantes” das decisões jurisdicionais.[127]

Segue a mesma linha Gustavo Santana Nogueira:

O amicus deve ser valorizado, sobretudo em julgamentos que terão aptidão de produzir um precedente para o futuro. Para que o ingresso do amicus comece a ser assimilado pela comunidade jurídica, até virar um hábito, é preciso que os Tribunais façam uma divulgação maior da intimação que estão fazendo para permitir o seu ingresso. Ainda que inicialmente a procura seja pequena, com o tempo, com a maior valorização do precedente, a tendência é que haja uma maior participação da sociedade.

Defendemos ainda a ampliação para pessoas físicas, não podendo ser descartada a colaboração que valoroso doutrinadores brasileiros podem fornecer para o enriquecimento do debate.[128]

Demais disso, poder-se-ia conceber forma de intervenção de terceiro fundada no interesse deste na formação de um precedente. Repisa-se: havendo a possibilidade de se estender a razão de decidir de uma decisão a outras, afinando-se o contraditório, é necessário que se oportunize ao jurisdicionado condições de nela influir.

(...) é necessário também repensar as hipóteses e os critérios de permissão da intervenção de terceiro. Parece-nos possível e útil pensar a intervenção de terceiro como forma de ajudar na formação do precedente (interesse jurídico reflexo na criação de um precedente que afetará um grupo de pessoas, por exemplo).[129]

4.1.2.2) INTERESSE RECURSAL NA FORMAÇÃO DE PRECEDENTE

É elementar para a doutrina clássica que “não se pode recorrer apenas para discutir o fundamento da decisão; é preciso discordar da conclusão a que chegou o órgão jurisdicional. Não há utilidade na discussão sobre os fundamentos, sem alterar a conclusão, pois a motivação não fica imutável pela coisa julgada material”[130].

Essa noção, porém, também precisa ser repensada.

É fato que a fundamentação da decisão não é abarcada pela coisa julgada (art. 469 do Código de Processo Civil/1973), nada obstante isso, ela é determinante para a delimitação da ratio decidendi. Dessa forma, para que haja harmonia no sistema de precedentes e real respeito ao contraditório, é imperioso que se permita a interposição de recurso com vistas à exclusiva discussão da fundamentação do decisum.

Noutros termos, deve-se conceber “a existência de interesse recursal limitado à discussão do precedente, que se encontra na fundamentação, independentemente da impugnação da norma jurídica individualizada, que se encontra no dispositivo”[131].

E há caso paradigmático em que se possibilitou o manejo de recurso para o fim de exclusivamente alterar-se a fundamentação de decisão:

Logo após a crise econômica mundial, a Embraer promoveu uma demissão coletiva. Esse procedimento foi levado ao judiciário trabalhista, em razão da magnitude de suas consequências. O TST, ao julgar o recurso da Embraer, entendeu, por maioria, que a dispensa não fora abusiva, muito menos teria havido ofensa à boa-fé objetiva, exatamente porque a jurisprudência não criava restrições para esse tipo de conduta empresarial. Sucede que o mesmo TST decidiu fixar “a premissa, para casos futuros, de que a negociação coletiva é imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores”. (TST-RODC-30900-12.2009.5.15.0000, rel. Min. Maurício Godinho Delgado. J. em 10.08.2009). Percebe-se claramente que o TST, para não proceder a um overruling com eficácia retrospectiva, e assim ferir o princípio da confiança, procedeu ao signaling, alertando sobre a sua futura orientação jurisprudencial. Fez, em suma, um overruling prospectivo (...).

Observe-se que a Embraer venceu a causa, no particular, tendo em vista que o TST entendeu que a sua conduta não fora abusiva. Será, porém, que ela teria interesse recursal, para discutir a “premissa”, que se encontra na fundamentação da decisão, evitando a caracterização do overruling? Parece que sim. E, de fato, foi o que aconteceu: houve recurso extraordinário para o STF.[132]

Eis a ementa do mencionado acórdão:

RECURSO ORDINÁRIO EM DISSÍDIO COLETIVO. DISPENSAS TRABALHISTAS COLETIVAS. MATÉRIA DE DIREITO COLETIVO. IMPERATIVA INTERVENIÊNCIA SINDICAL. RESTRIÇÕES JURÍDICAS ÀS DISPENSAS COLETIVAS. ORDEM CONSTITUCIONAL E INFRACONSTITUCIONAL DEMOCRÁTICA EXISTENTE DESDE 1988.

A sociedade produzida pelo sistema capitalista é, essencialmente, uma sociedade de massas. A lógica de funcionamento do sistema econômico-social induz a concentração e centralização não apenas de riquezas, mas também de comunidades, dinâmicas socioeconômicas e de problemas destas resultantes. A massificação das dinâmicas e dos problemas das pessoas e grupos sociais nas comunidades humanas, hoje, impacta de modo frontal a estrutura e o funcionamento operacional do próprio Direito. Parte significativa dos danos mais relevantes na presente sociedade e das correspondentes pretensões jurídicas têm natureza massiva. O caráter massivo de tais danos e pretensões obriga o Direito a se adequar, deslocando-se da matriz individualista de enfoque, compreensão e enfrentamento dos problemas a que tradicionalmente perfilou-se. A construção de uma matriz jurídica adequada à massividade dos danos e pretensões característicos de uma sociedade contemporânea - sem prejuízo da preservação da matriz individualista, apta a tratar os danos e pretensões de natureza estritamente atomizada - é, talvez, o desafio mais moderno proposto ao universo jurídico, e é sob esse aspecto que a questão aqui proposta será analisada. As dispensas coletivas realizadas de maneira maciça e avassaladora, somente seriam juridicamente possíveis em um campo normativo hiperindividualista, sem qualquer regulamentação social, instigador da existência de mercado hobbesiano na vida econômica, inclusive entre empresas e trabalhadores, tal como, por exemplo, respaldado por Carta Constitucional como a de 1891, já há mais um século superada no país. Na vigência da Constituição de 1988, das convenções internacionais da OIT ratificadas pelo Brasil relativas a direitos humanos e, por conseqüência, direitos trabalhistas, e em face da leitura atualizada da legislação infraconstitucional do país, é inevitável concluir-se pela presença de um Estado Democrático de Direito no Brasil, de um regime de império da norma jurídica (e não do poder incontrastável privado), de uma sociedade civilizada, de uma cultura de bem-estar social e respeito à dignidade dos seres humanos, tudo repelindo, imperativamente, dispensas massivas de pessoas, abalando empresa, cidade e toda uma importante região. Em conseqüência, fica fixada, por interpretação da ordem jurídica, a premissa de que a negociação coletiva é imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores-. DISPENSAS COLETIVAS TRABALHISTAS. EFEITOS JURÍDICOS. A ordem constitucional e infraconstitucional democrática brasileira, desde a Constituição de 1988 e diplomas internacionais ratificados (Convenções OIT n. 11, 87, 98, 135, 141 e 151, ilustrativamente), não permite o manejo meramente unilateral e potestativista das dispensas trabalhistas coletivas, por de tratar de ato/fato coletivo, inerente ao Direito Coletivo do Trabalho, e não Direito Individual, exigindo, por conseqüência, a participação do (s) respectivo (s) sindicato (s) profissional (is) obreiro (s). Regras e princípios constitucionais que determinam o respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1 o , III, CF), a valorização do trabalho e especialmente do emprego (arts. 1°, IV, 6° e 170, VIII, CF), a subordinação da propriedade à sua função socioambiental (arts. 5 o , XXIII e 170, III, CF) e a intervenção sindical nas questões coletivas trabalhistas (art. 8 o , III e VI, CF), tudo impõe que se reconheça distinção normativa entre as dispensas meramente tópicas e individuais e as dispensas massivas, coletivas, as quais são social, econômica, familiar e comunitariamente impactantes. Nesta linha, seria inválida a dispensa coletiva enquanto não negociada com o sindicato de trabalhadores, espontaneamente ou no plano do processo judicial coletivo. A d. Maioria, contudo, decidiu apenas fixar a premissa, para casos futuros, de que a negociação coletiva é imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores-, observados os fundamentos supra. Recurso ordinário a que se dá provimento parcial. (TST. RODC 30900-12.2009.5.15.0000. Relator: Mauricio Godinho Delgado. Julgamento: 10/08/2009. Órgão Julgador: Seção Especializada em Dissídios Coletivos. Publicação: 04/09/2009) – destacamos.

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O Recurso Extraordinário em questão (ARE 647651), que visa à alteração da fundamentação da decisão do Tribunal Superior do Trabalho, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, está em regular trâmite no Supremo Tribunal Federal, tendo sido reconhecida pela maioria a repercussão geral na espécie, e estando hoje no aguardo da manifestação do Procurador-Geral da República[133].                   

4.1.3) PREPARAÇÃO DO OPERADOR DO DIREITO

De nada adianta que se reconheça o embrião de um sistema de precedente no Processo Civil brasileiro atual e que se venha a estabelecer uma efetivo sistema de precedentes no país por meio do Novo Código de Processo Civil se o operador do direito não estiver preparado para levar a efeito novas técnicas e assimilar novos conceitos.

O sistema de precedentes exige que todos aqueles envolvidos no processo estejam atentos a ele e a suas especificidades.

Interpretar e aplicar corretamente precedentes judiciais num sistema judicial que cada vez mais confere prestígio e autoridade não se consegue apenas e tão somente com mudanças nos códigos e nas leis processuais. A adaptação normativa é necessária, mas não suficiente, para garantir a estabilidade, previsibilidade (segurança jurídica) e isonomia, tão almejadas com a adoção de uma política de precedentes judiciais.

A força e autoridade do Direito jurisprudencial vinculam-se estreitamente àqueles que serão responsáveis pela sua interpretação e aplicação. O incorreto emprego de precedentes fragiliza o sistema e faz o jurisdicionado desacreditar que o Judiciário seja seguro e igual.[134]

O advogado, público ou privado, deve zelar para que a sua petição inicial contenha todos os fatos e fundamentos pertinentes. Afinal, se o sistema de precedentes é baseado na decisão judicial, e se a peça vestibular é um esboço da decisão – tal qual largamente dito, haja vista que a primeira delimita a segunda por razões congruência –, é inegável o relevantíssimo papel do causídico nessa dinâmica. De igual forma, não fosse bastante o princípio da eventualidade, é indispensável a uma política de precedentes que o advogado levante todas as teses e fatos adversos possíveis ao contestar.

Os precedentes, como visto à exaustão, estão diretamente ligados aos fatos que dera origem ao caso concreto. A formulação da ratio decidendi de um caso concreto gera efeito vinculante para casos futuros se houver um mínima semelhança com os fatos da causa geradora do precedente, de modo que a comunidade jurídica precisa tomar conhecimento dos fatos da causa, tais como expostos pelas decisões anteriores.[135]

Isso para que, ao final do processo, o órgão jurisdicional, que sobretudo deve estar consciente de que sua atividade não se resume à solução daquele caso concreto em particular, mas também abrange a construção de uma ratio decidendi que poderá vincular outros julgadores, possa decidir a contento.

4.2) O PRECEDENTE JUDICIAL NO PROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Feitas as considerações teóricas necessárias, passemos um aspecto mais concreto acerca da adoção de um efetivo sistema de precedentes judiciais no Brasil. Veremos as disposições que o Projeto de Novo Código de Processo Civil[136] – PNCPC[137] veicula quanto ao assunto.

Com efeito, além de o PNCPC, hoje, dedicar exclusivamente o Capítulo XV do Título I do Livro I de sua Parte Especial ao regramento do precedente judicial, é possível notar a presença desse fenômeno jurídico em outros dispositivos esparsos (arts. 306, inciso II, 499, incisos V e VI, 1.000, 1.048, todos do PNCPC, v.g.). Analisemos, pois, os dispositivos que compõem o mencionado capítulo.

4.2.1) OS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO PRECEDENTE BRASILEIRO

Art. 520. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

Veicula o caput do artigo que inaugura o capítulo verdadeiros princípios[138] a orientar a atividade do operador do direito, notadamente o investido de jurisdição.

A jurisprudência brasileira – o conjunto de precedentes de ratio decidendi análoga – deverá, nessa linha, ser revestida de caracteres que autorizem sua adjetivação como uniforme, estável, íntegra e coerente. É de se ver, no particular, que o legislador brasileiro preocupou-se em dar aos precedentes pátrios o escopo que possuem no direito alienígena: respeito à igualdade, à segurança e à coerência da ordem jurídica.

E é justamente a unidade interpretativa da jurisprudência que garantirá a consecução da mencionada finalidade, como bem elucida Bruno Dantas, em obra que compila estudos acerca do PNCPC:

O que estamos afirmando é que essa função zela pela prevalência da uniformidade interpretativa, que impede ofensas à igualdade e à legalidade, de modo que a lei, que é vocacionada a ter uma única interpretação correta, deve receber sempre, dadas as mesmas condições fáticas relevantes ao julgamento, a mesma interpretação.

Sem essa função, estaríamos diante da produção de efeitos jurídicos os mais diversos a partir do mesmo suporte fático relevante e da incidência da mesma norma jurídica, o que, se é tolerado hoje pelo sistema, evidentemente não pode ser considerado como a saída mais adequada.[139]

4.2.2) SÚMULA E PRECEDENTE

§ 1º Na forma e segundo as condições fixadas no regimento interno, os tribunais devem editar enunciados correspondentes à súmula da jurisprudência dominante.

§ 2º Ao redigir enunciado de súmula, é defeso ao tribunal estabelecer diretivas que não se atenham às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua edição.

A possibilidade de edição de súmulas pelos tribunais não é novidade em nosso direito (§1°). A preocupação do legislador em determinar que as súmulas, conquanto desprendidas do precedente que as originou no mais das vezes, permaneçam minimanete arraigadas ao caso fático que lhes deu origem (§2°) é nova e feliz.

Tal qual abordado no item 3.1.1.5, retro, o fato que mais distancia o precedente judicial da súmula é o de o primeiro ser indissociável do caso fenomênico que lhe fez surgir, ao passo que a segunda não está adstrita a nenhum caso concreto, aproximando-se sobremaneira da lei em sentido material. O intento legislativo, a nosso ver, é diminuir esse hiato, tornando-se possível, assim, que às súmulas seja integralmente aplicado o regramento do precedente.

Logo, seguida a diretriz vazada no §2° do art. 520 no PNCPC, não se vê qualquer óbice prático ou teórico para que a súmula seja aplicada não só como uma manifestação do poder normativo dos tribunais[140] – ostentando, nessa condição, natureza diversa do precedente –, mas como, de fato, a evolução do precedente.

O que se repudiou noutro ponto, vale a ressalva, é que se empreste às súmulas, abstratas na  essência, a dinâmica própria dos precedentes, umbilicalmente ligados a um caso concreto. No entanto, estando ambos vinculados a um caso concreto, na forma proposta pelo PNCPC, torna-se claro, a nosso sentir, que possuirão a mesma natureza jurídica.

Sem embargo, convém mais uma vez ressalvar que, a despeito de nosso entendimento, alhures pormenorizadamente exposto, para alguns autores as súmulas sempre compartilharam a natureza jurídica dos precedentes, independentemente de serem abstratas ou estarem enlaçadas a um caso concreto.

4.2.3) O EFEITO VINCULANTE DO PRECEDENTE

Art. 521. Para dar efetividade ao disposto no art. 520 e aos princípios da legalidade, da segurança jurídica, da duração razoável do processo, da proteção da confiança e da isonomia, as disposições seguintes devem ser observadas:

I – os juízes e tribunais seguirão as decisões e os precedentes do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

II – os juízes e os tribunais seguirão os enunciados de súmula vinculante, os acórdãos e os precedentes em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

III – os juízes e tribunais seguirão os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;

IV – não havendo enunciado de súmula da jurisprudência dominante, os juízes e tribunais seguirão os precedentes:

a) do plenário do Supremo Tribunal Federal, em controle difuso de constitucionalidade;

b) da Corte Especial ou das Seções do Superior Tribunal de Justiça, nesta ordem, em matéria infraconstitucional;

V – não havendo precedente do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, os juízes e órgãos fracionários de tribunal de justiça ou de tribunal regional federal seguirão os enunciados de suas respectivas súmulas e, não havendo estes, os precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo, nesta ordem;

VI – os juízes e os órgãos fracionários de tribunal de justiça seguirão, em matéria de direito local, os precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo, nesta ordem. (...)

Art. 522. Para os fins deste Código, considera-se julgamento de casos repetitivos a decisão proferida em:

I – incidente de resolução de demandas repetitivas;

II – recursos especial e extraordinário repetitivos.

Parágrafo único. O julgamento de casos repetitivos tem por objeto questão de direito material ou processual.

O dispositivo supra, a toda evidência, representa a efetiva adoção da teoria do precedente judicial no Brasil. Por meio dele, estabelece-se no direito pátrio, mutatis mutandis, o instituto do stare decisis e, via de consequência, um escalonamento dos precedentes no país.

Nota-se, nesse pórtico, que se aumentará sobremaneira o rol dos precedentes que ostentarão o efeito vinculante em relação ao já exposto no item “3.1.1”. A esse propósito, é possível inclusive notar que o efeito vinculante terá gradações. Alguns precedentes possuirão o efeito de forma plena, sem qualquer condição, e outros terão tal caractere somente à falta de um precedente “superior” a ele.

Nesse tocante, terão efeito vinculante pleno os precedentes oriundos: a) do controle concentrado de constitucionalidade; b) do incidente de assunção de competência[141]; c) da resolução de demandas repetitivas; d) do Recurso Extraordinário e do Recurso Especial repetitivos; bem assim e) a súmula vinculante; f) a súmula do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional; e g) a súmula do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional.

Há, ainda, uma hipótese bastante específica do precedente com efeito vinculante pleno, a saber, os juízes e os órgãos fracionários de tribunal de justiça, em matéria de direito local, estarão vinculados aos precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo, precedendo-se aquele a este.

De outra parte, possuirão efeito vinculante condicionado à falta de súmula da jurisprudência dominante os precedentes provenientes: a) do pleno do Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso de constitucionalidade; b) da Corte Especial ou das Seções do Superior Tribunal de Justiça, nessa ordem, em matéria infraconstitucional.

Acaso, porém, não haja súmula da jurisprudência dominante, tampouco precedentes do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, os enunciados das súmulas dos tribunais de justiça e dos tribunais regionais federais terão efeito vinculante em relação aos juízes e órgãos fracionários respectivos. Nota-se, assim, que as súmulas dos tribunais de justiça e dos tribunais regionais federais têm efeito vinculante bicondicionado, isto é, seu efeito vinculante depende do implemento de duas condições.

É possível ainda, ao lume do inciso V, última parte, do art. 521 do PNCPC, que o efeito vinculante de um precedente esteja sujeito à ocorrência de três condições.

Deveras, terá efeito vinculante condicionado à falta de súmula da jurisprudência dominante, à falta de precedente do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça e à falta de enunciados das súmulas dos tribunais de justiça e dos tribunais regionais federais os precedentes do plenário ou do órgão especial dos dois últimos tribunais, nesta ordem. Noutros termos, o precedente do plenário ou do órgão especial do tribunal de justiça ou do tribunal regional federal só terá efeito vinculante quando não houver súmula da jurisprudência dominante, precedente do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, e à míngua de súmulas do próprio do tribunal de justiça ou do tribunal regional federal.

De fato, o escalonamento delineado pelo dispositivo em análise encerra sistema complexo. Tornemo-lo mais facilmente compreensível:

Efeito

Vinculante

Pleno

1. Controle concentrado de constitucionalidade;

2. Súmula vinculante;

3. Assunção de competência;

4. Demandas repetitivas;

5. RE e REsp repetitivos;

6. Pleno ou Órgão Especial TJs e TRFs sobre direito local;

7. Súmula do STF;

8. Súmula do STJ.

·         Não havendo súmula da jurisprudência dominante:

 

Efeito

Vinculante

Condicionado

(1° grau)

9. Pleno do Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso de constitucionalidade;

 

10. Corte Especial ou das Seções do Superior Tribunal de Justiça, nessa ordem, em matéria infraconstitucional.

 

·         Não havendo precedente do STF ou do STJ:

 

Efeito

Vinculante

Condicionado

(2° grau)

11. Súmulas dos TJs e dos TRFs terão efeito vinculante em relação aos juízes e órgãos fracionários respectivos.

 

·         Não havendo súmula do TJ ou do TRF:

 

Efeito

Vinculante

Condicionado

(3° grau)

12. Decisões do Plenário ou do Órgão Especial do TJ ou TRF respectivo.

           

À vista do já exposto, é inequívoca a importância que o legislador brasileiro outorgará ao precedente por intermédio do PNCPC, tornando assaz amplo o rol daqueles que possuirão efeitos vinculantes, hoje resumidos a minguadas hipóteses.

Demais disso, merece destaque o caput do dispositivo na medida em que torna claro que a garantia dos princípios da legalidade, da segurança jurídica, da duração razoável do processo, da proteção da confiança e da isonomia não prescinde da observância do efeito vinculante do precedente, de acordo com a estrutura traçada no artigo.

Entretanto, Nelson Nery Jr. e Georges Abboud apresentam ferrenha crítica ao fato de o PNCPC regrar o precedente no Brasil. Para os doutrinadores:

Esse ponto permite explicar o quão ingênuo ou desarrazoado seria imaginar a possibilidade de se instituir o sistema de stare decisis no Brasil, por meio das inovações legislativas tal qual prevê o NCPC. (...)

Ademais, ainda que fosse criada uma Emenda Constitucional que alterasse nosso texto constitucional a fim de determinar que, a partir de então, passaria a vigorar no Brasil o sistema do stare decisis, sequer assim ficaria possibilitada a funcionalização da doutrina do precedente porque tal sistema é fruto de tradição histórica, oriunda das particularidades históricas, sociais, filosóficas e jurídicas das comunidades do common law, cuja imposição e transposição não pode ser feito de um dia para o outro, em decorrência da vinculação determinada por via legislativa.[142]

José Miguel Garia Medida, Alexandre Freire a Alonso Rei Freire, por outro lado, contra argumentam:

Também não consideramos suficiente a alegação contrária a essa adoção baseada no argumento segundo o qual o respeito aos precedentes judiciais e o stare decisis teriam sido aquisições históricas. A ideia de que o stare decisis é peculiar ao sistema jurídico anglo-saxônico é questionável. Na verdade, o respeito a precedentes é inerente a todo e qualquer sistema, pelo menos em seus primórdios. Além disso, o fato de o sistema de respeito a precedentes judicias não ter sido adotado em um dos dois principais sistemas jurídicos ocidentais de forma explícita nos últimos séculos é algo que não impede sua adoção a qualquer tempo. Se o common law nos fornece, com seu próprio aprendizado histórico, alguma contribuição, não é razoável a recomendação para esperarmos a passagem do tempo até que, “naturalmente”, aprendamos sozinhos, com nosso “próprios” erros, nossas “próprias” regras.[143]

4.2.4) SUPERAÇÃO DO PRECEDENTE

Art. 521 (...)

§ 1º A modificação de entendimento sedimentado poderá realizar-se:

I – por meio do procedimento previsto na Lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006, quando tratar-se de enunciado de súmula vinculante;

II – por meio do procedimento previsto no regimento interno do tribunal respectivo, quando tratar-se de enunciado de súmula da jurisprudência dominante;

III – incidentalmente, no julgamento de recurso, na remessa necessária ou na causa de competência originária do tribunal, nas demais hipóteses dos incisos II a VI do caput deste artigo.

§ 2º A modificação de entendimento sedimentado poderá fundar-se, entre outras alegações, na revogação ou modificação de norma em que se fundou a tese ou em alteração econômica, política ou social referente à matéria decidida. (...)

§ 6º A modificação de entendimento sedimentado, sumulado ou não, observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia. (...)

Os parágrafos 1° e 2° do art. 521 do PNCPC preveem a causa que genericamente dará ensejo ao overruling no direito brasileiro: revogação ou modificação do fundamento da decisão que instituiu a ratio decidendi a ser seguida. Embora elementar a noção introduzida no dispositivo, ela não se afigura despicienda em uma comunidade jurídica ainda não afeita à dinâmica do precedente.

A par disso, são previstos os diplomas normativos que regularão o procedimento do overruling, a saber, a Lei nº 11.417/06, no caso da súmula vinculante, e o regimento interno dos respectivos tribunais, quando se tratar de súmula da jurisprudência dominante; além de se estabelecer diretamente que nos demais casos previstos nos incisos do caput do dispositivo a superação do precedente deverá ocorrer em sede de incidente[144] no julgamento de recurso, de remessa necessária ou de causa de competência originária do tribunal.

Ademais, fazendo eco ao já exposto neste estudo, é necessário que a decisão que promova a superação de precedente exponha de forma escorreita o porquê da alteração, esposando argumentos até então não suscitados e justificando a necessidade de superação do precedente, sempre atendo-se aos postulados da isonomia, da segurança jurídica, da proteção da confiança.

4.2.4.1) MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA SUPERAÇÃO DO PRECEDENTE

Art. 521 (...)

§ 5º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante, sumulada ou não, ou de precedente, o tribunal poderá modular os efeitos da decisão que supera o entendimento anterior, limitando sua retroatividade ou lhe atribuindo efeitos prospectivos.

Consoante já exposto anteriormente (item “3.2.2”), a superação do precedente suscita questão acerca de seus efeitos temporais.

Nesse aspecto, o PNCPC adota solução idêntica à empregada no direito alienígena, é dizer, em regra, ter-se-á a retroatividade do novo entendimento (efeito ex tunc), uma vez que, não sendo o anterior afinado ao direito, não haveria por que continuar a aplicá-lo. Entretanto, o órgão jurisdicional estará livre para modular os efeitos da superação do precedente, fazendo assim com que só opere efeitos para o futuro (efeito ex nunc).

Deixar livre ao julgador a possibilidade de empregar o efeito temporal que melhor se adeque ao caso concreto, ponderando-se a segurança jurídica, é, à evidência, a melhor solução para a questão.

Não se trata, contudo, de hipótese inédita no direito brasileiro. O art. 27 da Lei nº 9.868/99 já estabelece a possibilidade de modulação dos efeitos temporais da declaração de inconstitucionalidade em controle concentrado. No entanto, esse dispositivo apresenta requisitos para essa modulação – existência de razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social e voto da maioria de dois terços dos membros do Supremo Tribunal Federal –, restringindo, pois, sua aplicação, ao contrário do art. 521, §5º, do PNCPC, de amplo emprego.

4.2.5) A AMPLIAÇÃO DA DISCUSSÃO ACERCA DO OJBETO LITIGIOSO

Art. 521 (...)

§ 3º A decisão sobre a modificação de entendimento sedimentado poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.

§ 4º O órgão jurisdicional que tiver firmado a tese a ser rediscutida será preferencialmente competente para a revisão do precedente formado em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas, ou em julgamento de recursos extraordinários e especiais repetitivos.

Como já adiantado alhures, é necessário que ao se adotar um sistema de precedentes vinculantes no país se reflita acerca de dogmas e princípios, redimensionando-os. E não é outra a situação do contraditório, que, substancialmente considerando, leva à conclusão de que precisamos de maior participação da sociedade no processo (vide a respeito o item 4.1.2.1).

O stare decisis, pela importância que concede ao precedente, garante que a sua aplicação só pode ocorrer se o precedente foi fruto de um intenso contraditório e se estiver fundamentado.[145]

Nesse tocante, a nosso sentir, andou bem o legislador ao prever a possibilidade de realização de audiência pública prévia ao julgamento, a fim de se debater acerca de seu objeto, bem assim a participação de “pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese”, isto é, do amicus curiae.

É bem verdade, contudo, que o dispositivo de lei torna discricionária ao julgador a realização de audiência pública ou a participação do amicus curiae. Dessa forma, é necessário que o órgão jurisdicional não se descure de que:

O ingresso do amicus curiae só vai efetivamente surtir efeito a partir do momento em que os Tribunais começarem a debater as questões jurídicas envolvidas no litígio junto com os amici curiae, ou seja, dialogando com a sociedade. Se a sociedade pode, e deve, participar do julgamento dos casos que servirão para criar um precedente para o futuro, é primordial que seus argumentos sejam discutidos pelo órgão julgador.[146]

Nessa mesma linha:

O simples fato de estar legislada a possibilidade do amicus curiae não implica necessariamente na adoção pelo Poder Judiciário, dado ao subjetivismo implícito no comando legal, modelo que reflete a institucionalização de participação da sociedade civil e a ineficácia dos mecanismos em face das estruturas administrativas e legais (...). O remédio eficaz, ou possível antídoto, estaria na potencialização do princípio da publicidade (...).[147]

4.2.6) RATIO DECIDENDI E obiter DICTUM

Art. 521 (...)

§ 7º O efeito previsto nos incisos do caput deste artigo decorre dos fundamentos determinantes adotados pela maioria dos membros do colegiado, cujo entendimento tenha ou não sido sumulado.

§ 8º Não possuem o efeito previsto nos incisos do caput deste artigo os fundamentos:

I – prescindíveis para o alcance do resultado fixado em seu dispositivo, ainda que presentes no acórdão;

II – não adotados ou referendados pela maioria dos membros do órgão julgador, ainda que relevantes e contidos no acórdão.

É fundamental para a concretização de um sistema de precedentes no país que o operador do direito domine os conceitos de ratio decidendi e obiter dictum, haja vista ser a ratio decidendi o elemento nuclear desse sistema, estando o obiter dictum a secundá-la. E nesse mister o §7º do art. 521 do PNCPC traz um auxílio, ao veicular expressamente esses conceitos.

Possuirão efeito vinculante no país (caput do art. 521 do PNCPC) apenas os fundamentos determinantes adotados pelos julgadores, sumulados ou não. Eis a previsão legal de ratio decidendi. Ademais, não olvidando que o conceito de obiter dictum é negativo em relação ao de ratio decidendi – o que não compuser a ratio será necessariamente obiter dictum­ –, tem-se como obiter dictum, de acordo com o dispositivo, os fundamentos “prescindíveis para o alcance do resultado fixado em seu dispositivo, ainda que presentes no acórdão” e os “não adotados ou referendados pela maioria dos membros do órgão julgador, ainda que relevantes e contidos no acórdão”.

4.2.7) DISTINGUISHING

Art. 499. São elementos essenciais da sentença:

(...)

§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

(...)

V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. (...)

Art. 521 (...)

§ 9º O precedente ou jurisprudência dotado do efeito previsto nos incisos do caput deste artigo poderá não ser seguido, quando o órgão jurisdicional distinguir o caso sob julgamento, demonstrando fundamentadamente se tratar de situação particularizada por hipótese fática distinta ou questão jurídica não examinada, a impor solução jurídica diversa.

Como não poderia ser diferente, a adoção de uma política de precedentes exige que aquele que aplica a ratio decidendi de um precedente ao caso concreto consiga distinguir os elementos fáticos que distanciam ou aproximam a primeira do segundo. É necessário que se opere um cotejo analítico entre o quadro fático que originou o precedente e aquele do caso sob julgamento, é dizer, deve-se realizar o distinguishing. Havendo similitude fática, o precedente vinculante deverá, em regra, ser seguido; não havendo, nos termos do §9º do art. 521 do PNCPC, não deverá.

Demais disso, reza o art. 499, §1º, incisos V e VI, do PNCPC que a decisão que aplicar precedente está obrigada a demonstrar, de forma expressa, os elementos fáticos que autorizam tal aplicação. E, por outro lado, deve o julgador justificar fundamentadamente por que não se aplica ao caso concreto precedente invocado pela parte. Isso quer dizer que, aplicando ou não precedente, está o órgão jurisdicional jungido à realização do distinguishing.

4.2.8) PUBLICIDADE DOS PRECEDENTES

Art. 521 (...)

§ 10. Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.

É comezinha a ideia de que, se os precedentes terão efeito vinculante, não se pode prescindir que todos tenham conhecimento a seu respeito, além de amplo acesso a eles. Tanto é assim que a prática de se elaborar um repertório jurisprudencial para consulta surgiu quando ainda incipiente a tradição jurídica do common law.

Não se ignora que no Brasil de hoje, se não todos, a maioria dos tribunais divulga em sítio eletrônico próprio os julgados que realizaram, o que, aparentemente, satisfaria a norma programática do dispositivo em exame. Ocorre, todavia, que o atual modelo de disponibilização de julgados na internet pelas cortes precisa ser aprimorado, como bem expõe Tiago Asfor Rocha Lima:

(...) a computação e a rede mundial de computadores permitem que os interessados, ao acessarem os endereços eletrônicos dos tribunais, consultem um grande e quase infinito acerco de precedentes judiciais, com uma quantidade considerável de informações, dentre as quais, o resumo, a data e a íntegra do julgamento, os juízes que dele participaram e o respectivo órgão julgador, a data de publicação oficial do seu resultado etc.

Nada obstante esses inúmeros dados disponibilizados atualmente pelos tribunais àqueles que efetuam consultas jurisprudenciais no seu acervo, ainda existem informações tão ou mais importantes que os tribunais deveriam prestar e que são omitidas, mesmo que despropositadamente.

Veja-se que a consulta por palavra-chaves ao acerco jurisprudencial de uma corte não permite ao consulente saber, por exemplo: i) se o precedente consultado foi superado internamente ou por órgão superior, ii) se houve modificação legislativa capaz de afetá-lo; ou iii) o número de vezes que o precedente foi citado, pelos menos naquele mesmo tribunal.

Todas as necessárias informações são essenciais para a operação com precedentes.[148]

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Sobre o autor
Guilherme Mungo Brasil

Aluno regular do Mestrado em Fronteiras e Direitos Humanos (interdisciplinar) da Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD, pesquisando sobre a resolução consensual de conflitos coletivos. Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/Minas, graduado em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS. Atualmente é Analista do Ministério Público da União: Especialidade Direito, com lotação no Ministério Público Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRASIL, Guilherme Mungo. A concepção do precedente judicial pelo direito brasileiro:: aspectos históricos, atuais e prospectivos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4074, 27 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31291. Acesso em: 25 abr. 2024.

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