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A concepção do precedente judicial pelo direito brasileiro:

aspectos históricos, atuais e prospectivos

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27/08/2014 às 12:22
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CAPÍTULO 02 – A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRECEDENTE: DO SURGIMENTO DO COMMON LAW AO STARE DECISIS

A análise de qualquer fenômeno jurídico feita a contento não prescinde do exame de sua evolução histórica. E aqui não se poderia proceder de maneira diferente.

Com efeito, a tradição[33] jurídica do common law é marcada pela forte prevalência da jurisprudência e de direito comuns, anteriores às leis e às próprias decisões que os reconhecem.

A Common Law corresponde a um sistema de princípios e de costumes observados desde tempos imemoriais e aceitos, tacitamente, ou expressamente pelo poder legislativo, revestindo ora caráter geral, quando vigoram em todas as jurisdições, ora caráter especial, quando imperam em certas regiões, tão somente. Sua prova resulta da jurisprudência, pois ao julgarem os casos concretos, os juízes declaram o direito comum, que lhes é aplicável. Os julgados assim proferidos, registrados nos arquivos das cortes e publicados em coletâneas (reports), adquirem a força obrigatória de regras de precedentes (rules of precedents), para regerem os casos futuros; ademais juízes e juristas deles extraem princípios e regras, que subsequentemente, ampliam os limites da Common Law e, assim generalizados, propiciam a sua evolução.[34]

A tradição jurídica perfilhada em especial pela Inglaterra e pelos Estados Unidos segue a diretriz do judge make law (o juiz faz a lei). A nomenclatura do postulado, contudo, pode conduzir a equívoco. Com o brocardo judge make law ou law-making authority (autoridade de fazer a lei) não se quer dizer que as normas são veiculadas pelas decisões judiciais, mas que os atos estatais e as próprias leis são controlados pelo Judiciário. A bem da verdade, o papel do juiz no common law se assemelha muito ao do juiz submetido à Constituição e aos direitos fundamentais[35].

Com efeito, se alguém perguntar a qualquer teórico do common law a respeito da natureza da função do juiz que não aplica a lei por reputá-la inconstitucional, que se vale da técnica da interpretação conforme a Constituição ou que supre a omissão de uma regra processual que deveria ter sido estabelecida em virtude de um direito fundamental de natureza processual, certamente se surpreenderá. Tal atividade obviamente não significa declaração de direito, e assim, na perspectiva das doutrinas produzidas no common law, certamente revela uma atividade produtora, verdadeira criação judicial do direito.[36]

O uso da jurisprudência como fonte primeira do Direito surgiu de forma espontânea nessa tradição jurídica, sendo que “pouco se pode precisar sobre o seu nascimento, pois ‘cresceu, de forma assistemática, e é tão natural na cena inglesa como o carvalho, o freixo e o sabugueiro’”[37].

E enquanto a porção continental da Europa incorporava, no decorrer do século XI, a dinâmica jurídica advinda do Império Romano, cultivando o embrião do civil law, “a Inglaterra passou praticamente ilesa à influência do direito romano”[38].

Quando o direito romano atingiu o horizonte da Inglaterra, esta já tinha em formação uma classe de técnicos do direito capazes de desenvolver, à base autônoma dos usos anglo-normandos, uma jurisprudência criativa que, curiosamente, era metodicamente similar, sob o aspecto casuístico, àquela romana clássica e, portanto, tecnicamente auto-suficiente.[39]

O Estado inglês, assim, permaneceu regrado por um Direito germânico-feudal comum, sobretudo em razão da invasão do país pelos normandos, em 1066, o que significou o estabelecimento, na Inglaterra, de um poder forte, centralizado, carregado de uma grande experiência administrativa[40]. Guilherme I (1066-1087), Duque na Normandia, considerava-se herdeiro dos reis saxões e, portanto, acolheu os seus costumes e seu modo de conceber o direito[41].

Durante o reinado de um de seus sucessores, Henrique II (1154-1189), em que vigia um direito composto por normas consuetudinárias, anglo-saxônicas e normandas, houve a expansão dos limites da jurisdição inglesa, robustecendo-se, assim, essa tradição jurídica[42].

A esse propósito, os primeiro juízes da common law aplicavam regras de origem germânica, já que “princípios provenientes do direito germânico serviram de alicerce do sistema jurídico anglo-americano”[43]. A esses mesmos magistrados cabia, a fim de cumprir seu mister, a tarefa de identificar a ratio decidendi para adaptá-la ao caso concreto.   

Nesse passo, em 1187, foi publicada a obra intitulada “Glanvill”, considerada o marco do início científico do common law. No livro houve a elaboração de comentários acerca dos procedimentos a serem seguidos pela Corte Real.

Mais tarde, em 1220, Henry Bracton publicou pela primeira vez a obra “Treatise”, em linhas muito gerais, criticando os juízes de seu tempo, e elogiando seus antecessores, o que teria influenciado os juristas da época a pleitearam perante as cortes fazendo o uso de casos já decididos. Trata-se de outro significativo marco científico do common law.

Não é preciso salientar que essa concepção de organização judiciária centralizada, possibilitando a todos os homens livres o acesso à justiça, contribuiu sobremaneira para infundir nos súditos o conhecimento do direito em vigor.

O desenvolvimento e a aceitação dessa práxis foram tão amplos e inusitados, que Henrique de Bracton, escrevendo em meados do século XIII, foi capaz de desenhar um grande sistema de direito e de processo, arquitetado pelos próprios ingleses.[44]

Nesse andar, as decisões judiciais que continham o comando a seguir em um caso determinado iam sendo catalogadas, ao longo dos anos, nos statue books.

A guarda e seleção das atas de julgamento (court anrollments ou, simplesmente, plea rolls), a partir de um writ real, de 1292, passam a ser observadas com o escopo de auxiliar no aprendizado do ensino jurídico. Esse costume já estava consagrado sob a coroa de Henrique VI (1422-1461), tomando-se inclusive o cuidado de traçar, com maior clareza e precisão, a questão de direito debatida no caso concreto.

(...)

Em meados do século XVI, seguindo uma natural evolução, o estilo dessas compilações foi substituído pelos Law Reports, em formato muito próximo aos repertórios da época moderna, com a transcrição textual do caso e do respectivo julgamento. É evidente que esse novo método possibilitava maior precisão no estudo e manuseio das anteriores decisões à guisa de precedentes.[45]

Dessa forma, em pouco tempo havia se instituído o hábito das partes de realizar citações de casos análogos já solucionados, a fim de exemplificar seus direitos. Foram criadas, assim, publicações periódicas visando à divulgação das petições de advogados e decisões das cortes. Eis o surgimento de uma prática característica do Direito inglês: o case law.

Ademais, enquanto na França o ideário iluminista acarretou o engessamento da atividade judiciária, fazendo prevalecer o Legislativo, na Inglaterra, as revoluções do século XVII – Puritana e Gloriosa –, também incentivadas pelo novo modo de pensar o mundo, reforçaram os poderes e a liberdade interpretativa dos magistrados, garantindo maior legitimidade à tradição do common law. Isso porque, no Estado inglês, os juízes sempre estiveram a favor dos indivíduos e contra o absolutismo, comungando, portanto, com os ideais revolucionários. Confira-se, nesse sentido:

A Revolução inglesa, conduzida pelos nobres proprietários do Parlamento contra o absolutismo do rei, diversamente da Revolução Francesa, não considerava os juízes como uma ameaça, mas antes como um poder amigo do Parlamento na luta contra as arbitrariedades do soberano. Por essa razão que, no direito inglês, não houve a necessidade de se criar o dogma da prevalência da lei e da aplicação estrita da lei pelo magistrado (juiz boca da lei), garantindo-lhe espaço e poder para interpretar a lei.[46]

Tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos, diferentemente do contexto francês, os juízes desempenhavam frequentemente um papel progressista em favor dos indivíduos contra os abusos de poder, assim como também desempenharam um importante papel no processo de centralização do poder e de desmantelamento do feudalismo, de modo que o medo quanto à possibilidade de o juiz criar o direito ou quanto à possibilidade de interferência deste na administração não existiu nesses países.[47]

A permanência do common law propiciou a manutenção do caráter jurisprudencial do direito inglês, razão pela qual se pode reconhecer, naquele país, a existência de um verdadeiro Poder Judiciário. Esse é um dos elementos diferenciadores do direito inglês em relação ao Francês, onde [sic] existe uma função jurisdicional, autoridades judiciárias, mas não, verdadeiramente, um Poder Judiciário. A Constituição Francesa de 1958, ao tratar simplesmente de “autoridade judiciária”, traduziu com essa terminologia o que era, desde há muito, realidade na vida política francesa.[48]

Em que pese a difusão e a importância dos precedentes judiciais na tradição jurídica do common law, estes, por muito tempo, não tiveram o condão de vincular decisões ulteriores de casos semelhantes[49]. A diretriz que garante a eficácia vinculante dos precedentes – stare decisis –, ao contrário do que se pode imaginar, só veio a se estabelecer no século XIX, como natural evolução da dinâmica jurídica praticada desde tempo imemoriáveis no espaço geográfico que hoje denominamos Inglaterra.

No particular, a nomenclatura “stare decisis” é a abreviação do brocardo latino stare decisis et non quieta movere (mantenha aquilo que já foi decidido e não altere aquilo que já foi estabelecido)[50]. Trata-se, noutros termos, do efeito vinculante dos precedentes (aspecto detidamente abordado no item “3.1.1”).

O fenômeno jurídico é assim definido em obra de coordenação de Luiz Guilherme Marinoni, a partir do magistério de Schauer:

O stare decisis, portanto, mostra-se como “uma forma distinta de restrição por precedente. Sob a doutrina do stare decisis, uma corte deve decidir as questões da mesma forma que ela decidiu no passado, mesmo que os membros da corte tenham mudado, ou ainda que os mesmos membros tenham mudado de ideia. Tanto quando o precedente vertical, o stare decisis – precedente horizontal – trata de seguir as decisões de outros”.[51]

Demais disso, explicita José Rogério Cruz e Tucci a base teórica que alicerçou a doutrina do stare decisis:

A moderna teoria do stare decisis (...) informada pelo princípio do precedente (vertical) com força obrigatória externa para todas as cortes inferiores, veio inicialmente cogitada em prestigiada doutrina de um dos maiores juristas ingleses de todos os tempos, Sir Baron Parke J., que (...) escreveu: “O nosso sistema de Common Law consiste na aplicação, a novos episódios, de regras legais derivadas de princípios jurídicos e de precedentes judiciais; e, com o escopo de conservar uniformidade, consistência e certeza, devemos aplicar tais regras, desde que não se afigurem ilógicas e inconvenientes, a todos os casos que surgirem; e não dispomos da liberdade de rejeitá-las e de desprezar a analogia nos casos em que ainda não foram judicialmente aplicadas, ainda que entendamos que as referidas regras não sejam tão razoáveis e oportunas quanto desejaríamos que fossem. Parece-me de grande importância ter presente esse princípio de julgamento, não meramente para a solução de um caso particular, mas para o interesse do direito como ciência”.[52]

A noção do stare decisis, ademais, está desde a sua concepção vinculada aos postulados da segurança jurídica e da isonomia, tal qual abordado no item “1.3”, retro, do presente estudo.

É interessante notar que na obra dos primeiros comentadores da common law já se manifesta preocupação com o problema de julgamentos contraditórios. Sobretudo “na obra de Bracton começa a delinear-se a importância de ater-se, na decisão de casos similares, àqueles que já tinham sido antes decididos”. Chega-se mesmo a suscitar a questão da certeza do direito, quando colocada em perigo pelos juízes que decidiam desprezando o direito elaborado nos vetera iudicia.[53]

A vinculação ao precedente por força do stare decisis, insta mencionar, ocorre em relação ao próprio órgão prolator da decisão paradigma e àqueles inferiores a ele.

Com o fito bem elucidar, convém demonstrar a estrutura hierárquica de vinculação das decisões no Judiciário inglês, que pode ser resumida nos seguintes pontos: 1) As decisões tomadas pelo Comitê de Apelação da Câmara dos Lordes (mais alta corte do Reino Unido, de competência apenas recursal) constituem precedentes obrigatórios para todos aqueles investidos de jurisdição, salvo, excepcionalmente, para ele próprio; 2) As decisões da Court of Appeal (corte de segundo grau dentro da Suprema Corte) afiguram-se obrigatórias para todos os julgadores inferiores e, à exceção de matéria criminal, para a própria corte; 3) Os julgamentos proferidos pela High Court of Justice (corte civil-administrativa também da Suprema Corte) vinculam os julgadores abaixo dela, mas não a própria High Court of Justice, tampouco a Crown Court (órgão da Suprema Corte que aprecia apenas matéria criminal), não obstante tenham um grande valor persuasivo[54].


CAPÍTULO 03 – O PRECEDENTE JUDICIAL NO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Embora de forma ainda inconsciente para alguns, nosso direito tem incorporado cada vez mais características e elementos próprios de um sistema de precedentes, de modo que, hoje, é possível analisá-lo partindo-se desse ótica. Não há qualquer empecilho na identificação de institutos e efeitos próprios da tradição jurídica do common law no direito pátrio.

Examinemos, pois, os efeitos que o precedente judicial possui atualmente no país e, por consequência necessária, as técnica de superação e aplicação dos precedentes.

3.1) EFEITOS DO PRECEDENTE

3.1.1) DO EFEITO VINCULANTE

A ordem jurídica brasileira empresta a alguns pronunciamentos jurisdicionais a capacidade de ser vinculantes (binding authority). Os precedentes que ostentam essa aptidão devem ser seguidos quando os órgãos vinculados se deparam com quadros fáticos análogos aos da decisão paradigma, obrigando-os a utilizar a tese nela fixada.

No ordenamento pátrio, e de acordo o posicionamento adotado no presente estudo, os únicos órgãos jurisdicionais aptos a prolatar decisão com efeitos vinculantes são os tribunais superiores, notadamente o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal. É dizer, pois, que apenas acórdãos têm o condão de veicular um precedente de efeito vinculante.

Os órgãos vinculados à decisão paradigma, de outra parte, são na generalidade dos casos os jurisdicionais de hierarquia inferior à do prolator.

O que vincula, sob a ótica dos precedentes, sobreleva esclarecer, é a ratio decidendi, os fundamentos jurídicos da decisão.

3.1.1.1) A COISA JULGADA E O EFEITO VINCULANTE

Não se pode confundir o efeito vinculante do precedente – que tem por objeto a ratio decidendi – com o efeito vinculante decorrente da coisa julgada – cujo núcleo é o dispositivo da decisão.

A vinculação da ratio decidendi ocorre hoje em hipóteses restritas, que serão a seguir abordadas, exercendo influência sobre órgãos investidos de jurisdição.

A vinculação consectária da coisa julgada, por outro lado, é comum a todas as decisões judicias, a teor do art. 472 do Código de Processo Civil/1973, abrangendo, pelo menos, as partes, sem embargo de existirem casos em que abarcará pessoas não envolvidas de forma imediata da lide, como os dos arts. 16 da Lei nº 7.347/85, 103 da Lei nº 8.078/90 e 102, §2º, da Constituição Federal, em que a coisa julgada opera efeitos erga omnes. A vinculação da coisa julgada, ademais, pode ser oponível à administração pública, em todas as suas esferas, tal qual ocorre com a decisão do Supremo Tribunal Federal em sede de controle abstrato de constitucionalidade (art. 102, §2º, da Lei Maior, art. 28, parágrafo único, da Lei nº 9.868/99 e art. 10, §3º, da Lei nº 9.882/99), diferentemente da vinculação do precedente.

Quando o Tribunal Superior julga um recurso ou uma ação, estabelecendo um precedente, a regra de direito extraída deste precedente, conforme viemos defendendo, deveria ser vinculante para casos futuros. Tal vinculação aproxima o stare decisis da coisa julgada, mas são institutos que não se confundem. O stare decisis é uma teoria que afeta não apenas as partes mas qualquer pessoa, já que diz respeito ao impacto da decisão para o futuro na comunidade e em outros Tribunais. No que tange ao limite objetivo, o stare decisis não torna o dispositivo da decisão que forneça o precedente vinculante, posto [sic] que o dispositivo é algo que só interessa e só vale para as partes da causa, mas de certa forma imutabiliza – não de forma absoluta – a ratio decidendi.[55]

É possível que ambas as espécies de vinculação coexistam na mesma decisão, como bem elucida Fredie Didier Jr.:

Observa-se este exemplo: no julgamento de um ADI, o STF entende que uma lei estadual (n. 1000/2007, p. ex.) é inconstitucional por invadir matéria de competência da lei federal. A coisa julgada vincula todos à seguinte decisão: a lei estadual n. 1000/2007 é inconstitucional; a eficácia do precedente recai sobre a seguinte ratio decidendi: ‘lei estadual não pode versar sobre determinada matéria, que é da competência de lei federal’. Se for editada outra lei estadual, em outro Estado, haverá necessidade de propor nova ADI, sobre a nova lei, que certamente será baseada no precedente anterior.[56]                                   

Ainda nesse tocante, Luiz Guilherme Marinoni estabelece a distinção entre a vinculação da coisa julgada e da força do precedente a partir do princípio da segurança jurídica. Segundo o autor, a primeira possui caráter privatístico e tem como traço marcante a imutabilidade em relação ao que foi decidido no caso concreto; a segunda opera efeitos que transbordam os limites do processo de que se origina, assegurando a previsibilidade das decisões judiciais posteriores.

As funções da coisa julgada e do precedente vinculante à luz da segurança jurídica e da tutela da confiança são distintas. O respeito aos precedentes garante a previsibilidade em relação às decisões judiciais, assim como a continuidade da afirmação da ordem jurídica. A coisa julgada, por sua vez, garante que nenhuma decisão estatal interferirá de modo a inutilizar o resultado obtido pela parte com a decisão acobertada pela coisa julgada, assim como a estabilidade das decisões judiciais.[57]

A fim de tornar mais palatável as distinções traçadas pela doutrina, tomamos a liberdade de esquematizá-las da seguinte forma:

Coisa julgada

Efeito vinculante

 

Dispositivo

Ratio decidendi

Objeto

Imutável

(salvo as hipóteses de querela nulitatis e ação rescisória)

Superável

(Overruling, Overriding, v.g.)

Perenidade

Inter ou extra partes

(comum a todos os processos e quando previsto em lei, respectivamente)

Judiciário

         

Abrangência

Qualquer sentença/acórdão

Restritas

Hipóteses

Vejamos, nesse passo, os casos de precedentes obrigatórios no Direito brasileiro.

3.1.1.2) DECISÃO PROFERIDA NO CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE

No Direito contemporâneo brasileiro, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle abstrato de constitucionalidade é a que apresentar mais robusto espectro de vinculação: sua autoridade vinculante é prevista não só na Constituição da República (art. 102, §2º), mas também como em lei ordinária (art. 28, parágrafo único, da Lei nº 9.868/99).

Trata-se da única hipótese de precedente cujo efeito vinculante possui assento constitucional. E tal não poderia ser diferente.

A vinculação conferida à decisão oriunda do controle concentrado de constitucionalidade é imanente à efetividade do sistema de aferição de compatibilidade vertical das normas adotado no país, e, pois, em última análise, ao próprio Estado constitucional.

A efetiva tutela da Constituição pelo Supremo Tribunal Federal (art. 102, caput, da Lei Maior) não prescinde desse instrumento vinculativo. É que, não fosse assim, dos pronunciamentos do Pretório Excelso seria ceifado o efeito prático de tolher uma norma do sistema.

A adequada tutela jurisdicional da Constituição e a autoridade do Supremo Tribunal Federal dependem da eficácia vinculante dos motivos determinantes da decisão proferida no controle abstrato de normas. E é na medida em que se admite esta eficácia vinculante que a decisão, até então vista apenas como produtora de coisa julgada erga omnes – e, assim, como definidora de se a norma expressamente invocada na ação direta é ou não inconstitucional –, passa a também ter qualidade de precedente constitucional.[58]

3.1.1.3) DECISÃO PROFERIDA NO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Desde a promulgação da primeira Constituição da República, em 1891, o Brasil adota o sistema de controle difuso de constitucionalidade e, desde então, é largamente difundido pela doutrina pátria que, “declarada a inconstitucionalidade incidenter tantum a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo pelo Supremo Tribunal Federal, desfaz-se, desde sua origem, o ato declarado inconstitucional (...). Porém, tais efeitos (...) somente tem aplicação para as partes e no processo em que houve a citada declaração”.[59]

Ocorre, todavia, que a ideia de que a decisão proferida no controle difuso de constitucionalidade vincula tão somente as partes tem sido temperada pela doutrina mais moderna, que inclusive é encabeçada, entre outros, pelo hoje ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, para quem:

O recurso extraordinário deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesses das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistemas de Corte Constitucional vêm conferindo ao recurso amparo e ao recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde). (...)

A função do Supremo nos recursos extraordinários – ao menos de modo imediato – não é a de resolver litígios de fulano ou beltrano, nem a de revisar todos os pronunciamentos das Cortes inferiores. O processo entre as partes, trazido à Corte via recurso extraordinário, deve ser visto apenas como pressuposto para uma atividade jurisdicional que transcende os interesses subjetivos.[60]

Eis o fenômeno jurídico denominado “objetivação do recurso extraordinário”[61].

Nesse diapasão, tem-se entendido, por razões científicas e de política judiciária, que a decisão proferida pelo Pretório Excelso no controle difuso de constitucionalidade tem o condão de vincular os demais órgãos jurisdicionais, ostentando, destarte, o status de precedente vinculante. Assim, afora o fato de a coisa julgada no controle difuso ser inter partes, tal qual ocorre com a generalidade dos processos, sua ratio decidendi tem aptidão de externar efeitos extra partes quando realizada em sede de recurso extraordinário.

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A propósito das mencionadas razões de política judiciária, torna-se necessária a outorga de efeito vinculante às decisões proferidas em recurso extraordinário pelo Supremo na medida em que é imperiosa a “racionalização do modo de prestação jurisdiciona pela Corte”[62].

Isso porque “dados estatísticos disponibilizados no sítio do Supremo Tribunal Federal revelam que, entre 1991 e o ano de 2007, o total da soma de recursos extraordinários e agravos de instrumentos distribuídos anualmente na Suprema Corte sempre superou 90% do total de processos distribuídos”[63].  Evidente, destarte, o atual desvirtuamento das atribuições da Corte Constitucional brasileira, o que, porém, pode ser efetivamente mitigado ao se atribuir efeitos vinculantes ao recurso extraordinário.

Quanto ao aspecto científico da objetivação do recurso extraordinário, Luiz Guilherme Marinoni sustenta ferrenhamente que não há razão lógica para atribuir efeito vinculante às decisões decorrentes do controle concentrado e não o fazer em relação ao controle difuso. Segundo o autor, em ambos os casos o efeito vinculante decorre de idêntica razão: a “necessidade de se dar força aos fundamentos das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal”[64].

Trata-se, assim, de alcançar um objetivo que é imprescindível à racionalidade de qualquer sistema que dá aos seus juízes o poder de realizar o controle da constitucionalidade diante dos casos concretos. Não há como atribuir este poder aos juízes sem vinculá-los às decisões da Suprema Corte. O controle difuso exige que os precedentes da Corte que dá a última palavra acerca da questão constitucional sejam obrigatórios. Não se trata de mera opção técnica, ainda que ótima à eficiência da distribuição da justiça, mas de algo que, quando ausente, impede o próprio funcionamento do controle difuso. De modo que admitir, no atual estágio do direito brasileiro, controle difuso sem vinculação dos órgãos judiciários aos precedentes constitucionais constitui equívoco imperdoável.[65]

Destaca-se, nessa senda, o fato de ser requisito do recurso extraordinário a repercussão geral. O requisito é hospedado no art. 102, §3º, da Constituição, conforme a redação dada pela Emenda à Constituição nº 45/04, e encontra regulamentação legal nos arts. 543-A e 543-B do Código de Processo Civil/1973.

Condicionar o conhecimento do recurso extraordinário à existência, no caso concreto, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa, é tornar evidente que sua solução não pode ficar adstrita ao círculo inter partes. A instituição do requisito da repercussão geral é inequívoco mecanismo de seleção de casos e, “onde há técnica de seleção de casos, deve haver necessariamente eficácia vinculante dos precedentes, sob pena de evidente impropriedade lógica"[66].

Não há como conciliar a técnica de seleção de casos com a ausência de feito vinculante, já que isso seria o mesmo que supor que a Suprema Corte se prestaria a selecionar questões constitucionais caracterizadas pela relevância e pela transcendência e, ainda assim, permitir que estas pudessem ser tratadas de formas diferentes pelos diversos tribunais e juízo inferiores. A ausência de efeito vinculante constituiria mais uma afronta à Constituição Federal, desta vez à norma do art. 102, §3º, que deu ao Supremo Tribunal Federal a incumbência de atribuir – à luz do instituto da repercussão geral – unidade ao direito mediante a afirmação da Constituição[67].

Fredie Didier Jr., valendo-se da técnica que lhe é peculiar, afirmar que se pode atribuir efeitos vinculantes à decisão de recurso extraordinário porque a forma difusa de controle de constitucionalidade não implica, necessariamente, apenas na análise em concreto da conformidade da norma com a Constituição; ao revés, o incidente de controle de constitucionalidade encerra, outrossim, o exame da norma em abstrato, o que leva ao recurso extraordinário as especificidades próprias do controle abstrato, o que inclui, à evidência, o efeito vinculante do precedente.

Nada impede, porém, que o controle de constitucionalidade seja difuso, mas abstrato: a análise da constitucionalidade é feita em tese, embora por qualquer órgão judicial[68].

Nesse contexto, sobreleva apontar que o que se busca conferir ao recurso extraordinário não é a coisa julgada erga omnes própria do controle abstrato (art. 102, §2º, da Constituição Federal, art. 28, parágrafo único, da Lei nº 9.868/99 e art. 10, §3º, da Lei nº 9.882/99), que, na hipótese, permanecerá restrita ao âmbito inter partes. Pretende-se, em verdade, atribuir-lhe a vinculação da ratio decidendi.

Demais disso, insta ressalvar que a objetivação do recurso extraordinário não encontra óbice no art. 52, inciso X, da Constituição Federal, segundo o qual compete ao Senado Federal “suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”. Entendia-se, diante dessa disposição, que se o constituinte elegeu ente para dar efeitos gerais às decisões definitivas em Recurso Extraordinário, fê-lo por que, obviamente, elas não teriam por si só essa aptidão.

Entretanto, à vista do novo fenômeno ora exposto, foi alterada a interpretação anteriormente dada esse dispositivo, em autêntica mutação constitucional decorrente da reformulação do sistema jurídico. A nova maneira de entender o mencionado dispositivo é no sentido de que caberá ao Senado somente dar publicidade à decisão proferida pelo Pretório Excelso, não tendo o ente legislativo competência bastante para deliberar sobre os efeitos do decisum. Em abono:

Alega-se que o papel do Senado Federal, em face do era. 52, X, da CF, não é mais o de suspender os efeitos da lei declarada constitucional, mas o de dar publicidade à decisão do Supremo Tribunal Federal proferida em controle difuso. (...)

Se as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de recurso extraordinário, têm eficácia vinculante, torna-se completamente impróprio e desnecessário reservar ao Senado Federal o poder para atribuir efeitos gerais às decisões de inconstitucionalidade[69].

Ainda nesse sentido, sobreleva colacionar o seguinte excerto de aresto do Superior Tribunal de Justiça deveras emblemático quanto à matéria ora examinada, de relatoria do então ministro da corte Teori Zavascki:

Embora tomada em controle difuso, a decisão do STF tem natural vocação expansiva, com eficácia imediatamente vinculante para os demais tribunais, inclusive para o STJ (CPC, art. 481, único), e com a força de inibir a execução de sentenças judiciais contrárias (CPC, art. 741, p. único; art. 475-L, 1º, redação da Lei 11.232/05) (REsp 911897/SP. STJ, Relator: Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, Data de Julgamento: 02/05/2006, T1 - PRIMEIRA TURMA).

Impende alertar, por derradeiro, que, não obstante sobejem razões para que se garanta efeito vinculante à decisões proferida em Recurso Extraordinário, tal qual aqui exposto, a temática é bastante intrincada, prevalecendo hoje – por enquanto – o entendimento clássico de que não se pode conferir o efeito vinculante em questão.

3.1.1.4) DECISÃO QUE FIXA A TESE PARA SOLUÇÃO DOS RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS OU ESPECIAIS REPETITIVOS

A lei nº 11.418/06 introduziu no ordenamento jurídico brasileiro, especificamente no Código de Processo Civil/1973, mecanismos de contenção do vulto de processos que sobe às instâncias superiores. Trata-se dos arts. 543-B e 543-C do mencionado diploma.

Esses dispositivos hospedam as normas relativas aos denominados recursos repetitivos, que abrangem a decisão quanto à repercussão geral quando da análise da admissibilidade do recurso extraordinário, bem assim quanto à questão de direito veiculada em recursos especiais, respectivamente.

Consoante o regramento legal, a fim de se levar a efeito a apreciação dos recursos repetitivos, caberá ao tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça, conforme o caso, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da respectiva Corte.

Nesse passo, ao julgar os casos selecionados o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça fixarão a tese a ser reproduzida no tribunal de origem para pôr termo aos feitos análogos. Tem-se, portanto, inequívoca hipótese em que a ratio decidendi, transpondo os limites do processo em que foi originada, ganha contornos vinculantes.

Assim, (...), há que se admitir que a técnica dos recursos repetitivos pretende – embora não da forma mais adequada – impor a obrigatoriedade dos precedentes fixados para as causas idênticas de caráter múltiplo[70].

3.1.1.5) SÚMULA VINCULANTE (?)

Para alguns autores, a súmula vinculante editada pelo Supremo Tribunal Federal na forma do art. 103-A da Constituição Federal e da Lei nº 11.417/06 é exemplo acabado de precedente judicial com efeito vinculante no Direito brasileiro.

No Brasil, há algumas hipóteses em que os precedentes têm força vinculante – é dizer, em que a ratio decidendi contida na fundamentação de um julgado tem força vinculante: (i) a ‘súmula vinculante’ em matéria constitucional editada pelo Supremo Tribunal Federal (...) tem eficácia vinculante em relação ao próprio STF, a todos os demais órgãos jurisdicionais do país e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (...).[71]

Impossível ignorar as súmulas vinculantes, instituídas pela Emenda Constitucional 45, de 31 de dezembro de 2004, e regulamentada pela Lei 11.417/06, e que objetivam impor o entendimento consagrado pelo STF a todos os juízes e Tribunais do Brasil.[72]

Sucede, porém, que súmula não possui a natureza jurídica de precedente judicial.

O processo de formação das súmulas pressupõe, em seu início, a prolação de uma decisão, surgindo, assim, um precedente. Esse precedente, se seguido reiteradamente pelo tribunal, forma sua jurisprudência. Em um terceiro momento apenas é que essa jurisprudência, então consolidada, passará a compor o enunciado da súmula da corte. Essa dinâmica é assim esquematizada por Fredie Didier Jr:

Precedente                   Jurisprudência                    Súmula[73]

Quando a reiteração de precedentes ganha robustez tal a dar azo à criação de súmula, terá esta natureza normativa geral e abstrata. Eis o maior ponto de distinção entre súmula e precedente.

O precedente oriundo de decisão interlocutória, sentença ou acórdão, como decisão judicial que é, veiculará norma individual e concreta que, dando solução à questão incidente ou ao litígio em si, obrigará as partes[74]. A súmula, de outra parte, veicula norma geral e abstrata, possuindo características mais semelhantes às de lei em sentido material do que às de decisão judicial.

E não se diga que o precedente possuidor de efeito vinculante veiculará norma geral e abstrata, na medida em que sua ratio decidendi será replicada noutros casos. Nas hipóteses em que ao precedente é conferida essa eficácia, está-se em certa medida a transplantar a norma individual e concreta nele criada para caso semelhante, não havendo, portanto, a propagação de norma geral e abstrata pelo precedente.

Ainda a propósito da natureza jurídica da súmula vinculante, são lapidares os dizeres de Mônica Sifuentes:

Trata-se [a súmula vinculante] de ato típico e exclusivo da função jurisdicional, que se situa em uma zona cinzenta da distribuição funcional entre os poderes do Estado, dado o seu caráter de obrigatoriedade e generalidade, que o aproxima do conteúdo material da lei.[75]

Perfilhando essa minha linha de intelecção está Tiago Asfor Rocha Lima:

O enunciado sumular, vinculante ou não, não importa de qual tribunal, não é verdadeiramente um precedente judicial. Como afirmado anteriormente, o precedente judicial relaciona-se a uma decisão judicial que contém elementos suficientes e similares a de outras situações futuras e que, por isso, é capaz de exercer algum espécie de persuasão sobre o julgador.[76]

Não destoam desse entendimento Nelson Nery Jr. e Georges Abboud:

(...) súmula vinculante não pode ser confundida com o precedente do common law.[77]

De outra parte, súmula e precedente se assentam em fundamentos teóricos distintos. A teoria dos precedentes foi concebida com vistas à coerência da ordem jurídica e à garantia da segurança e da isonomia, ao passo em que as súmulas, notadamente as vinculantes, surgiram a partir do pragmático intuito de “desafogar” o Judiciário, impedindo que a atividade jurisdicional seja desperdiçada com a resolução de casos repetitivos em que é possível a aplicação de norma editada pelo próprio tribunal.

As súmulas, no direito brasileiro – se não foram idealizadas – foram compreendidas como mecanismos voltados a facilitar a resolução de casos fáceis que se repetem. Certamente não tiveram preocupação em garantir a coerência da ordem jurídica ou a igualdade e a previsibilidade.

(...) afora o grave e principal problema de o instituto da súmula não ter sido atrelado à afirmação da coerência da ordem jurídica e à garantia da segurança jurídica e da igualdade, as súmulas foram vistas como normas gerais e abstratas, tentando-se compreendê-las como se fossem autônomas em relação aos fatos e aos valores relacionados com os precedentes que as inspiraram.[78]                  

É bem verdade que os precedentes que deram origem ao enunciado da súmula permanecerão revestidos dessa natureza, de sorte que se lhes aplica o plexo jurídico aqui abordado. As súmulas, entretanto, refogem de nosso objeto de estudo em princípio.

Descendo-se ao campo prático, não é possível, v.g., aplicar a técnica do distinguishing (item 3.2.1) ao se ter súmula como paradigma. É que tal técnica pressupõe o cotejo de dois quadros fáticos – um do precedente paradigma e outro do caso em julgamento.

De todo modo, cumpre alertar que, para os que consideram súmula espécie do gênero precedente judicial, são dotados de efeito vinculante, v.g., além das súmulas vinculantes, o entendimento consolidado na súmula de cada um dos tribunais, em relação ao próprio tribunal e as súmulas de tribunal superior, na medida em que podem obstar a revisão de decisões (arts. 475, §3º, 518, §1º, 544, §4º e 557, todos do Código de Processo Civil/1973).

À parte da celeuma acerca da natureza jurídica da súmula, adiante se abordará a forma com que o Projeto do Novo Código de Processo Civil conceberá o tema, que, já se adianta, aproximará a súmula do precedente, dando tratamento uniforme a ambos.

3.1.1.6) PRECEDENTE QUE INFLUI NA DINÂMICA RECURSAL

Tal qual acima mencionado, para os que adotam o entendimento segundo a qual súmula e precedente possuem a mesma natureza jurídica, há casos em que a súmula, por impedir a subida ou o provimento de recurso, ou, ainda, impor seu provimento, terá efeito vinculante.

Essa hipótese, porém, não está adstrita às súmulas; pode ocorrer também em relação à reunião de precedentes – a jurisprudência.

No particular, impende apontar que se trata de hipótese de vinculação própria da jurisprudência e das súmulas, e não, a rigor, do precedente judicial, razão pela qual os mecanismos a seguir abordados não compartilham a mesma base teórica da sistemática do precedente, mas comungam com o propósito das súmulas de “desafogar” a atividade judiciária. Considerando, de toda sorte, que a jurisprudência nada mais é que um conjunto de precedentes cujas rationes decidendi são idênticas ou ao menos assemelhadas, impende que se examine, ainda que de forma breve, esse caso de vinculação do precedente – ou melhor, da jurisprudência.

Com efeito, nos moldes do art. 475, §3º[79], 544, §4º, inciso II, alíneas “b” e “c”[80] e 557[81], todos do Código de Processo Civil/1973, e na forma do enunciado nº 83 da súmula do Superior Tribunal de Justiça[82], a jurisprudência tem o condão de influir na sistemática recursal, impedido a remessa necessária e o seguimento de recurso, bem assim sendo causa determinante para o seu provimento.

Tem-se, dessarte, evidentes hipóteses em que a ratio decidendi de um precedente transcende o âmbito intraprocessual de que se originou, vinculando processos outros.

Para Fredie Didier Jr., nas hipóteses previstas:

Há (...) uma espécie de vinculação do órgão competente para apreciar a admissibilidade recursal às diretrizes já lançadas em precedentes anteriores, de modo que este órgão fica autorizado a negar seguimento a tais recursos ou dispensar a remessa necessária.[83]

3.1.2) DO EFEITO PERSUASIVO DOS PRECEDENTES

A par do efeito vinculante garantido a alguns precedentes judicias, há o efeito persuasivo, que se faz presente em qualquer precedente[84]. Como a própria nomenclatura denuncia, o efeito persuasivo do precedente garante-lhe o condão de persuadir, de convencer. E tão somente isso.

Não é por outra razão senão o efeito persuasivo dos precedentes que, ao peticionar, um advogado colaciona em sua peça um sem-número de acórdãos de tribunais superiores, assim como o magistrado, ao decidir, também o faz.

Isso ocorre porque o precedente, conquanto não dotado de efeito vinculante, constituirá, sempre, ao menos um “indício de uma solução racional e socialmente adequada”[85]. Dessa forma, nenhum órgão investido de jurisdição está obrigado a seguir um precedente cujo efeito é meramente persuasivo, “se o segue, é por estar convencido de sua correção”[86].

Assim, o efeito persuasivo do precedente está intimamente ligado à ciência da Psicologia do Direito, visto que afeto ao comportamento humano. Não cabe ao Direito positivo regrar a obediência a um precedente persuasivo. Fosse assim, teria o precedente regrado efeito além da mera persuasão.

De todo modo, é possível traçar algumas variáveis que repercutem na aceitação pelo órgão jurisdicional do precedente de efeito exclusivamente persuasivo.

Sabe-se que a autoridade dos precedentes judiciais é variável. Há, pois, uma força gravitacional ligada a uma série de fatores internos e externos ao Judiciário que afetam diretamente o poder e a eficácia do Direito jurisprudencial.[87]

Nesse pórtico, tendem a ser mais seguidos os precedentes prolatados por tribunais de hierarquia superior. No Brasil, um precedente do Superior Tribunal de Justiça, v.g., tende a ter mais aceitação do que um de Tribunal da Justiça, mas menos do que a de um do Supremo Tribunal Federal.

Outrossim, julgamentos realizados à unanimidade tendem a ser mais persuasivos em relação àqueles em que predominou o entendimento da maioria dos julgadores. Da mesma forma, o precedente decorrente de um julgamento colegiado tenderá a ser mais seguido do que um oriundo de julgamento monocrático. Em abono:

Em um Tribunal que conta com 11 membros, há diferenças substanciais entre um julgamento com votação unânime e um julgamento que conta com um placar mais apertado, como 6 a 5, 7 a 4, etc. O placar apertado pode demonstrar que ainda não há clareza no que diz respeito à regra de direito emanada no precedente, pode demonstrar, ainda, que os juízes não têm ainda uma visão muito clara acerca da ratio decidendi, e obviamente, sinaliza que uma mudança de composição pode reverter o precedente. Em países mais acostumados com a vinculação dos precedentes, é corrente a afirmação de que a mudança de composição não pode, por si só, significar no abandono do precedente somente porque os novos membros não concordam com ele, mas em uma votação muito apertada o precedente fica “pronto para cair”.[88]

Também têm o condão de majorar o nível de persuasão do precedente os magistrados que participaram da votação ou fizeram as vezes de relator, na medida em que “um precedente goza de um prestígio maior ou menor dependendo do juiz que participou da decisão do precedente”[89], bem assim a idade do precedente pode influenciar em sua aceitação pela comunidade jurídica.

A propósito da idade do precedente, convém fazer uma observação: conquanto no Brasil costumemos dar mais importância a precedentes mais recentes, entendo que representam o entendimento mais atualizado dos tribunais, nos países que seguem a common law, os precedentes de mais idade ostentam maior poder de persuasão[90].

3.2) TÉCNICAS DE APLICAÇÃO DO PRECEDENTE

O precedente, como já dito, tem como fim precípuo a regulação do futuro, é dizer, a solução dos casos que dia a dia eclodem, de modo que uma das principais questões acerca do tema é aplicação da ratio decidendi a casos ulteriores.

Esse desdobramento da ratio decidendi na dimensão pro futuro encerra um plexo de posturas a serem tomadas pelo órgão julgador. Pode ele, por exemplo, limitar-se a aplicar determinado precedente ao caso concreto, sem quaisquer alterações; ou, pode ocorrer que, em determinado julgamento, decida-se por revogar de plano, total ou parcialmente, o precedente até então seguido; é possível, de outro lado, a não revogação imediata do precedente, mas a sinalização do julgador no sentido de que daquele dia em diante ele não mais se aplicará.

Enfim, é evidente que a praxe dos tribunais contém um sem-número de possíveis situações quando da aplicação do precedente ao caso concreto. Veremos nas seguintes linhas aquelas arroladas pela doutrina especializada.

Consigna-se, antes, que, embora as situações doravante expostas possam parecer alheias ao direito brasileiro, sobretudo em razão das nomenclaturas de difícil absorção pelo nacional, a temática é deveras relevante para o nosso Processo Civil, encontrando efetivo eco no direito brasileiro contemporâneo. Pode o operador do direito não se dar contas, mas, em maior ou menor medida, tem levado a efeito ao menos algumas das técnicas que serão expostas.

3.2.1) DISTINGUISHING

É comum na prática forense que, ao se deparar com a solução do caso concreto a partir da aplicação do precedente, um ardoroso defensor, no afã de demonstrar ser a pretensão de seu cliente a melhor, vá de encontro à sua ratio decidendi, buscando desconstituí-la, isto é, visando a demonstrar ser o raciocínio empregado no precedente errôneo. Mas haveria, a depender do caso, a possibilidade de que, em vez de se chocar frontalmente com o entendimento, o causídico demonstrasse que este não se aplica àquele determinado caso concreto, à falta de similitude fática entre o caso analisado e aquele que deu origem ao precedente.

E nisso consiste a técnica do distinguishing. Por meio dela busca-se demonstrar que o caso em julgamento não possui base fática similar à do caso que fez surgir o precedente, elidindo, pois, a aplicação da respectiva ratio decidendi; ou, conquanto o caso concreto possua elementos fenomênicos análogos ao do paradigma, tem alguma peculiaridade que afasta a aplicação da ratio do julgamento. Nesse sentido:

O distinguishing expressa a distinção entre casos para o efeito de se subordinar, ou não, o caso sob julgamento a um precedente. A necessidade de distinguishing exige, como antecedente lógico, a identificação da ratio decidendi do precedente. Como a ratio espelha o precedente que deriva do caso, trata-se de opor o caso sob julgamento à ratio do precedente decorrente do primeiro caso.[91]

Não é essa, contudo, a única acepção do distinguishing. A não aplicação de determinado precedente na solução de caso concreto que lhe é posterior, aqui já exposta, afigura-se tão somente o que Fredie Didier Jr. denomina distinguishing-resultado. Há, de outra parte, o distinguishing-método, que seria a natural técnica de comparação entre caso concreto e precedente(s) paradigma(s), já que, evidentemente, “nas hipóteses em que o magistrado está vinculado a precedente judicias, a sua primeira atitude é verificar se o caso em julgamento guarda alguma semelhança com os precedentes”[92].

(...) pode-se utilizar o termo “distinguish” em duas acepções: (i) para designar o método de comparação entre o caso concreto e o paradigma (distinguish-método); (ii) e para designar o resultado desse confronto, nos casos em que se conclui haver entre eles alguma diferença (distinguish-resultado).[93]

O denominado distinguishing-método comporta relevante observação. Deveras, embora o direito brasileiro atual não conceba de forma própria um sistema jurídico baseado no case-law, o operador do direito – nacional ou estrangeiro – vale-se invariavelmente da técnica do distinguishing. Todo e qualquer cotejo entre casos demanda a utilização da técnica.

No Brasil, Tiago Asfor Rocha Lima enumera exemplificativamente hipóteses em que se positivou, ainda que de forma despropositada, o emprego do distinguishing: o Recurso Especial fundado no art. 105, inciso III, alínea “c”, da Constituição Federal, que exige o confronto entre casos julgados; os recursos repetitivos previstos nos arts. 543-B e 543-C, ambos do Código de Processo Civil/1973, na medida em que se deve identificar a similitude fática entre os casos para se levar a efeito o julgamento concentrado; as previsões dos arts. 518, §1º, e 557, §1º-A, também do Código de Processo Civil/1973.

E arremata o mencionado autor:

Ainda que de forma inconsciente, a técnica de confrontação jurisprudencial é realizada pela comunidade jurídica no Brasil. É, destarte, mais corriqueira do que se poderia imaginar.

A crescente valorização da autoridade do Direito judicado, indubitavelmente, contribuiu para que o estudo de casos e o confronto entre ele se tornassem, ainda que de maneira impensada, um hábito dos magistrados, dos advogados públicos e privados, dos membros ministeriais e até mesmo das partes.[94]

É consectária do distinguishing uma situação bastante relevante: aquela em que, após o emprego do método, nota-se que o caso sob julgamento não encontra paralelo em nenhum precedente. Esse seria, consoante escólio de José Rogério Cruz e Tucci, um caso de first impression (“primeira impressão”), aquele sobre o qual não tenha “existido a respeito prévia discussão pelos tribunais”[95]:

(...) quando o juiz inglês se depara com uma questão pela primeira vez (...), considera-se um hard case (em contraposição aos clears cases, ou seja, amparados por precedentes). Os juízes terão então de buscar o mérito de controvérsia, deixando, nessa situação, de buscar subsídios imediatos nos Law Reports.[96]

Não é demais destacar, por outro lado, que a “não adoção do precedente, em virtude do distinguishing, não quer dizer que o precedente está equivocado ou deve ser revogado. Não significa que o precedente constitui bad law, mas somente inapplicable law”[97].

De remate, a fim de demonstrar factualmente o emprego do ditinguishing, em sua modalidade “resultado”, convém analisar trecho de recente sentença prolatada pelo juízo da 4° Vara de Fazenda Pública e de Registros Públicos da Comarca de Campo Grande/MS. No caso decidido, a autora, servidora pública estadual aposentada, buscava a conversão em pecúnia de licenças-prêmios não gozadas quando da atividade. Nesse tocante, segundo precedentes do Superior Tribunal de Justiça, o cômputo do lustro prescricional tem início com a aposentadoria do servidor. Na espécie, porém, malgrado a servidora tenha levado a efeito sua pretensão antes de decorridos cinco anos do início da aposentadoria, ela havia se desligado do cargo que lhe conferia o direito à licença-prêmio onze anos antes do ajuizamento da ação, particularidade que distinguia o caso sob julgamento daqueles que fizeram nascer os precedentes mencionados, de forma que sobre ele incidiu a prescrição. Vejamos excerto da decisão singela:

(... ) o E. Superior Tribunal de Justiça sedimentou o entendimento de que o termo inicial da contagem do prazo para requerer o pagamento de licença-prêmio não gozada é a data da aposentadoria do servidor, pois é neste momento que o servidor deixar de ter o direito de gozar da licença para, então, poder postular pela sua conversão em pecúnia.

No caso em análise, entretanto, a autora não se aposentou no cargo público de Técnico Parlamentar sobre o qual adquiriu o direito de gozo das licenças-prêmio, já que em agosto de 2000 houve a sua dispensa, a pedido, deste cargo.

Vê-se, então, que a situação da autora é diversa, já que o seu direito de postular pela conversão em pecúnia das licenças não gozadas nasceu com a sua dispensa do cargo público, na medida em que neste momento já era possível a propositura de uma demanda judicial ou pedido administrativo para tanto.

Assim, o presente caso concreto apresenta particularidades que fazem com que se torne inaplicável a jurisprudência da Corte Superior sobre o assunto, cuja aplicabilidade deve se ater às situações fáticas idênticas ou semelhantes ao caso concreto que lhe deu origem, já que se trata de um precedente judicial e, como tal, derivou de um processo cognitivo indutivo.

Trata-se da aplicação da técnica do commom law denominada de distinguishing, ou seja, da distinção entre o caso em análise e o caso paradigma que dera origem ao precedente em tese aplicável (...). (Processo de autos n° 0053260-96.2011.8.12.0001, da 4° Vara de Fazenda Pública e de Registros Públicos da Comarca de Campo Grande/MS, julgado pelo MM. Juiz Alexandre Tsuyoshi Ito, em 20.09.2013) – (destacamos).

3.2.2) OVERRULING

 Ao contrário do que ocorre no distinguishing, podem ocorrer situações em que o precedente se torna inaplicável em razão de determinada eiva. O precedente precisa ser superado quando: a) está obsoleto e desfigurado; b) é absolutamente injusto e/ou incorreto; c) revelar-se inexequível na prática[98]. Ou, noutros termos, quando se afigura genericamente bad law.

A incoerência da aplicação de precedentes socialmente ultrapassados, juridicamente equivocados ou que estejam fadados ao esquecimento pela evolução doutrinária em determinado ramo da ciência do direito fez com que a doutrina e os próprios tribunais criassem técnicas jurídicas que os escusasse da aplicação de precedentes os quais, embora se enquadrassem perfeitamente no desenho fático do caso em julgamento, não apresentariam a melhor solução para este.[99]

E a superação do precedente ocorre na generalidade das vezes por meio da técnica do overruling[100]. Para Fredie Didier Jr., “Overruling é a técnica através da qual um precedente perde a sua força vinculante e é substituído (overruled) por um outro precedente”[101]. Trata-se, nada mais, da revogação do precedente por outro mais afinado ao direito.

Revogar um precedente significa dizer, na maioria das vezes, que a decisão proferida por determinado juiz ou determinada corte estava errada, e precisa ser corrigida. Não se trata do reexame da causa provocado pelas partes interessadas, mas sim no reexame da regra de direito elaborada pela corte quando do julgamento de determinada questão, cujo erro reside, geralmente, no excesso à discricionariedade praticado pela corte prolatora.[102]

Essa revogação pode ocorrer de forma explícita – quando há expressa menção sobre a revogação de entendimento anterior – ou implícita – quando o novo precedente se limita a instaurar novo posicionamento, em desacordo com o anterior, sem lhe mencionar. Ou, nas palavras de José Rogério Cruz e Tucci:

A decisão que acolhe nova orientação incumbe-se de revogar expressamente a ratio decidendi anterior (express overruling). Nesse caso, o antigo paradigma hermenêutico perde todo o seu valor vinculante.

É possível também que, sem qualquer alusão ao posicionamento jurisprudencial assentado, a nova decisão siga diferente vetor. Tem-se aí, embora mais raramente, uma revogação implícita do precedente (implied overruling), similar à ab-rogação indireta de uma lei.[103]

Não é estranha ao direito brasileiro a ocorrência do overruling; ao contrário, ele se afigura deveras comum. À guisa de exemplo, convém mencionar o entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca de recursos “prematuros”, é dizer, interpostos antes da intimação do recorrente acerca da decisão recorrida.

Em emblemática manifestação do que a doutrina denomina “jurisprudência defensiva”, num primeiro momento, o Pretório Excelso não conhecia do recurso interposo na mencionada condição, ao argumento de que, em linhas gerais, ocorria na hipótese espécie de preclusão. Veja-se:

AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXTEMPORANEIDADE. INTERPOSIÇÃO DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO ANTERIOR À PUBLICAÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO. AGRAVO DESPROVIDO. O Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que é extemporâneo o recurso interposto antes da publicação do acórdão recorrido. Precedentes (AI-AgR nº 482.796/MG, Primeira Turma, Relatora Ministra Carmem Lúcia, julgado em 14 de dezembro de 2006) – (destacamos).

Entretanto, após, reconheceu a corte o desacerto das decisões que daquela forma procediam, e o Supremo Tribunal Federal, em autêntico overrguling implícito, passou a julgar da forma exposta no seguinte aresto:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECURSO INTERPOSTO ANTES DA PUBLICAÇÃO DO ACÓRDÃO. CONHECIMENTO. INSTRUMENTALISMO PROCESSUAL. PRECLUSÃO QUE NÃO PODE PREJUDICAR A PARTE QUE CONTRIBUI PARA A CELERIDADE DO PROCESSO. BOA-FÉ EXIGIDA DO ESTADO-JUIZ. DOUTRINA. RECENTE JURISPRUDÊNCIA DO PLENÁRIO. MÉRITO. ALEGAÇÃO DE OMISSÃO E CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA. RECURSO CONHECIDO E REJEITADO.

1. A doutrina moderna ressalta o advento da fase instrumentalista do Direito Processual, ante a necessidade de interpretar os seus institutos sempre do modo mais favorável ao acesso à justiça (artigo 5º, inciso XXXV, CRFB) e à efetividade dos direitos materiais (OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, 137, páginas 7-31, 2006; DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do Processo e Técnica Processual. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010).

2. “A forma, se imposta rigidamente, sem dúvidas conduz ao perigo do arbítrio das leis, nos moldes do velho brocardo dura lex, sed lex” (BODART, Bruno Vinícius Da Rós. Simplificação e adaptabilidade no anteprojeto do novo CPC brasileiro. In: O Novo Processo Civil Brasileiro —Direito em Expectativa. Org. Luiz Fux. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 76).

3. As preclusões se destinam a permitir o regular e célere desenvolvimento do feito, por isso que não é possível penalizar a parte que age de boa-fé e contribui para o progresso da marcha processual com o não conhecimento do recurso, arriscando conferir o direito à parte que não faz jus em razão de um purismo formal injustificado.

4. O formalismo desmesurado ignora a boa-fé processual que se exige de todos os sujeitos do processo, inclusive, e com maior razão, do Estado-Juiz, bem como se afasta da visão neoconstitucionalista do direito, cuja teoria proscreve o legicentrismo e o formalismo interpretativo na análise do sistema jurídico, desenvolvendo mecanismos para a efetividade dos princípios constitucionais que abarcam os valores mais caros à nossa sociedade (COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: un análisis metateórico. Trad. Miguel Carbonell. In: “Isonomía. Revista de Teoría y Filosofía del Derecho”, 16, 2002). (...)

7. O recurso merece conhecimento, na medida em que a parte, diligente, opôs os embargos de declaração mesmo antes da publicação do acórdão, contribuindo para a celeridade processual (...). (HC 101132/MA. Relator Min. Luiz Fux. Julgamento em 24/04/2012. Primeira Turma) – (destacamos).

Evidente, nessa linha, que a decisão que acarretar o overruling “exige como pressuposto uma carga de motivação maior, que traga argumentos até então não suscitados e a justificação complementar da necessidade de superação do precedente” [104].

Nesse diapasão, exsurge uma questão: operará a revogação do precedente efeitos ex tunc ou ex nunc?

Em nosso sistema processual, em respeito à segurança jurídica, é unívoco que entendimento ulterior não poderá operar efeitos ex tunc, atingindo casos anteriores a ele. Ao nosso direito, trata-se de ideia elementar e comezinha.

O direito inglês e o estadunidense, entretanto, não só admitem a eficácia ex tunc quando da revogação do precedente, como a tem como regra:

É possível que à substituição se dê eficácia ex tunc (retrospective overruling), caso em que o precedente substituído não poderá ser invocado nem mesmo quanto a fatos anteriores à substituição, que ainda estejam pendentes de análise e julgamento pelos tribunais.[105]

Em regra, quando uma corte revoga um precedente, esta decisão tem efeitos retroativos, ou seja: a regra de direito estabelecida com a revogação de um precedente é aplicável a todas as relações jurídicas ocorridas antes da decisão revogadora, assim como aos acordos entabulados antes desta decisão, mas que ainda estão sujeitos ao crivo judicial.[106]

Porém, para Fredie Didier Jr., é necessário que se tenha aberta a possibilidade de se realizar ambos os efeitos temporais, a fim de que, a cada caso, a depender do interesse social e sempre em consonância com a segurança jurídica, possa-se levar a efeito o novo entendimento em dimensão ex nunc ou ex tunc.

Desse modo, se a alteração jurisprudencial – sobretudo se ocorrer no âmbito dos tribunais superiores, como é o caso do STF ou do STJ – puder afetar a estabilidade das relações jurídicas formadas e construídas sob a égide de um velho posicionamento (princípio da segurança jurídica), é perfeitamente possível que o tribunal adote para o caso concreto, bem assim para aqueles pendentes de julgamento que se relacionem a fatos pretéritos, o entendimento já consolidado, anunciado, porém, para as situações vindouras a mudança paradigmática. Tudo no intuito de respeitar as legítimas expectativas que o posicionamento reiterado do tribunal haja incutido no espírito dos jurisdicionados.[107]

De outra parte, sobreleva consignar que o só fato de a corte prolatora do precedente ter alterada sua composição não dá ensejo à revisão ou revogação deste. É que “os precedentes não são das pessoas que estão eventualmente ocupando aquele cargo, e sim da Instituição”[108]. Ao revés, induz necessariamente à revisão do precedente a modificação da lei em que este se alicerçava, haja vista que o precedente dá contorno à lei, interpretando-a, não sendo a ela superior[109].

Convém ressalvar, de saída, que para os que entendem que súmula é precedente, seria o procedimento de revisão de súmula vinculante, na forma do art. 103-A da Constituição Federal e da Lei nº 11.417/06, instrumento propiciador do overruling no direito brasileiro[110].

3.2.3) OVERRIDING

Se o overruling é a ab-rogação do precedente, será o overriding sua derrogação.

Ocorre o overriding quando o órgão jurisdicional apenas limita o âmbito de incidência de um precedente, em função da superveniência de uma regra ou princípio legal. Para Luiz Guilherme Marinoni:

O overriding apenas limita ou restringe a incidência do precedente aproximando-se, neste sentido, de uma revogação parcial. (...) Mediante este expediente, a Corte deixa de adotar precedente em princípio aplicável, liberando-se da sua incidência. (...). O overriding se baseia na necessidade de compatibilização do precedente com um entendimento posteriormente formado.

Bem entendida a dinâmica do overruling, dispensa o overriding maiores elucubrações, haja vista que esta se afigura técnica deveras semelhante àquela.

3.2.4) SIGNALING

Tal qual já delineado no presente estudo, sobretudo no item “1.3)”, há vultosa preocupação dos teóricos do precedente judicial quanto à segurança jurídica, um dos pilares centrais de um Estado Democrático de Direito. E nessa diretriz se funda a técnica do signaling.

Nela, ocorre caso em que haveria razão bastante ao uso do overruling, é dizer, está-se prestes a aplicar precedente que não está de acordo com o direito (bad law), e que, portanto, deveria ser revogado. Mas, em prestígio à segurança jurídica, não o é. Reconhece-se a pecha do precedente, porém, em vez de se proceder à sua revogação, sinaliza-se que, doravante, adotar-se-á entendimento diverso nos casos vindouros.

Isso sucede porque o indivíduo que procedeu de determinada forma o fez porquanto tinha convicção das consequências jurídicas de seu agir, ao lume do reiteradamente aplicado pelos órgãos jurisdicionais. Dessa forma, alterar o entendimento do Estado-juiz justamente quando da apreciação de sua conduta é ferir a previsibilidade e a estabilidade que deve reger a relação jurisdicionado-Judiciário.

Luiz Guilherme Marinoni assim aborda o tema:

Objetiva-se comunicar que o precedente, que até então orientava a atividade dos jurisdicionados e a estratégia dos advogados, será revogado, evitando-se, com isso, que alguém atue em conformidade com a ordem estatal e, ainda assim ou por isso mesmo, seja prejudicado em seus negócios ou afazeres ou, em suma, em sua esfera jurídica. Frise-se que os litigantes, no caso concreto em que se faz a sinalização, não são pegos de surpresa, já que a decisão é orientada pela ratio decidendi em vias de revogação, tudo em respeito à confiança na autoridade dos precedentes judiciais.[111]

O signaling é, em suma, um aviso, um sinal da iminência do overruling.

Embora se trate de técnica própria de um sistema de precedentes, em arrojado posicionamento, o Tribunal Superior do Trabalho a levou a efeito em julgado (detidamente analisado no capítulo 4 – item 4.1.2.2) cuja parte da ementa é a seguinte:

(...) Nesta linha, seria inválida a dispensa coletiva enquanto não negociada com o sindicato de trabalhadores, espontaneamente ou no plano do processo judicial coletivo. A d. Maioria, contudo, decidiu apenas fixar a premissa, para casos futuros, de que a negociação coletiva é imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores-, observados os fundamentos supra. (...) (TST. RODC 30900-12.2009.5.15.0000. Relator: Mauricio Godinho Delgado. Julgamento: 10/08/2009. Órgão Julgador: Seção Especializada em Dissídios Coletivos. Publicação: 04/09/2009) – destacamos.

3.2.5) TRANSFORMATION

A técnica do transformation consiste, ao lado da do overruling, na revogação de um precedente por não ser considerado a melhor solução para o caso concreto, e ocorre quando “a corte, sem anunciar, revoga uma doutrina pré-estabelecida em decorrência de uma doutrina anterior a ela, formulada em julgamento anterior”[112].

Nesse diapasão, a doutrina debruça-se (sem muita efetividade) sobre as eventuais diferenças que distanciariam a transformation do overruling, não se descurando que tais são mais formais do que materiais. Vejamos:

(...) se a distinção entre overruling e transformation é mais formal do que substancial, surge ao menos a curiosidade de indagar o motivo pelo qual a Corte pode preferir a transformation em relação ao overruling. Eisenberg alude à doutrina de Peter Western para demonstrar que tanto a transformation quanto o overruling admitem equívoco no raciocínio ou na fundamentação das decisões anteriores, mas apenas o overruling aceita ter havido erro de julgamento. A transformation admite equívoco na tese então sustentada, mas não aceita que a Corte tenha cometido impropriedade ao julgar o caso anterior. O overruling constitui confissão de que não apenas a tese está equivocada, mas também de que Corte errou ao decidir em favor de uma das partes e não da outra. A transformation, por sua vez, não aceita a ideia de que a decisão deveria ter sido favorável ao autor e não ao réu ou vice-versa.[113]

3.3) UMA CONCLUSÃO INARREDÁVEL: O “BRAZILIAN LAW” [114]

A evolução do Direito tem demonstrado que Estados historicamente adeptos da experiência jurídica romano-germânica têm se valido de técnicas próprias da anglo-saxônica. Essa miscigenação de culturas jurídicas encontra no Brasil um emblemático exemplo: o país que sempre fora considerado herdeiro da tradição do civil law[115] tem cada vez mais incorporado noções inerentes ao common law.

A nação tupiniquim, dessarte, guarda grandes semelhanças com ambas as tradições jurídicas em comento, de sorte que não pode ser classificada como adepta de uma ou outra. É, em verdade, e por essa razão, singular. 

O Brasil, por razões histórico-culturais, herdou do reino português a tradição do civil law, de modo que predominou no país a rígida submissão do magistrado à lei.

Hoje, porém, essa afirmação deve ser mitigada.

Uma análise mais cuidadosa do Direito brasileiro revela que incorporamos, a par da tradição jurídica de nossos colonizadores, uma série de diretrizes e institutos próprios do Direito anglo-saxão.

O sistema brasileiro tem uma característica muito peculiar, que não deixa de ser curiosa: temos um direito constitucional de inspiração estadunidense (daí a consagração de uma série de garantias processuais, inclusive, expressamente, do devido processo legal) e um direito infraconstitucional (principalmente o direito privado) inspirado na família romano-germânica (França, Alemanha e Itália, basicamente). Há controle de constitucionalidade difuso (inspirado no judicial review estadunidense) e concentrado (modelo austríaco). Há inúmeras codificações legislativas (civil law) e, ao mesmo tempo, constrói-se um sistema de valorização dos precedentes judiciais extremamente complexo (...), de óbvia inspiração no common law[116].

Nessa linha, no âmbito extra partes, temos desde precedentes que nada ostentam além do condão de persuadir outro julgador – efeito persuasivo do precedente –, à semelhança dos países da tradição do civil law, a precedentes rigorosamente vinculantes, o que nos aproxima da tradição do common law. Tudo conforme exposto neste estudo.

Conclui-se, diante disso, que o Brasil vem adotando em grande medida a teoria do stare decisis, a despeito de ainda estar arraigado à tradição jurídica do civil law. E nessa mesma medida são válidas no país as técnicas de exceção à aplicação do precedente, bem assim as de superação destes, também abordadas.

É ainda inafastável a conclusão de que o Brasil, tradicionalmente seguidor do direito romano-germânico, caminha ao encontro da sistemática de precedentes própria da tradição jurídica anglo-saxã, estando hoje, assim, entre os dois extremos. O país, dessa forma, enriquece sua experiência jurídica, tornando possível que aproveite o melhor das duas tradições jurídicas.

O Direito brasileiro, como seu povo, é miscigenado. E isso não é necessariamente ruim. Não há preconceitos jurídicos no Brasil: busca-se inspiração nos mais variados modelos estrangeiros, indistintamente. (...) A experiência jurídica brasileira parece ser única; é um paradigma que precisa ser observado e mais bem estudado[117].

Por tudo isso, o Brasil tem uma enorme vantagem decorrente de sua formação híbrida, a vantagem dos mestiços, uma tônica maior na justiça como valor, e maior resistência, em razão dessa tônica, a imperativos a priori, ao direito posto em abstrato pelo legislador, em descompasso com a vida. Pode-se utilizar essa vantagem para a institucionalização de uma prática jurídica mais democrática e conforme os objetivos da Constituição Federal de 1988[118].

Enfim, para bem compreender a aplicar o Direito processual civil brasileiro da atualidade não se prescinde do abandono do “dogma da ascendência genética”[119], não comprovado empiricamente, segundo o qual o Brasil segue estaticamente essa ou aquela tradição jurídica. Com vistas ao seu aperfeiçoamento, deve-se conceber o Direito brasileiro, notadamente o processual civil, de acordo com as matizes e especificidades aqui expostas.

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Sobre o autor
Guilherme Mungo Brasil

Aluno regular do Mestrado em Fronteiras e Direitos Humanos (interdisciplinar) da Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD, pesquisando sobre a resolução consensual de conflitos coletivos. Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/Minas, graduado em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS. Atualmente é Analista do Ministério Público da União: Especialidade Direito, com lotação no Ministério Público Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRASIL, Guilherme Mungo. A concepção do precedente judicial pelo direito brasileiro:: aspectos históricos, atuais e prospectivos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4074, 27 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31291. Acesso em: 24 abr. 2024.

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