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O “estado de perigo” como causa de nulidade absoluta do negócio jurídico

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Agenda 09/03/2015 às 14:28

3 - O ESTADO DE PERIGO E A INVALIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO

O estado de perigo é um instituto que atinge a livre manifestação de vontade de modo a provocar a sua invalidade. Surgiu no Código Civil de 2002 e tem ligação íntima com o estado de necessidade. Está disciplinado no artigo 156 do CC/02, in verbis:

Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte,   assume obrigação excessivamente onerosa.

Portanto, é um defeito invalidante do negócio jurídico que faz com que uma das partes assuma obrigação excessivamente onerosa para salvar a si ou outrem. Está relacionada diretamente à vida, a saúde, a integridade física daquele que adere a um negócio jurídico sem ter nenhum tipo de liberdade contratual: valor, condição, taxa de juros, prazos etc. Assim, o negócio jurídico é firmado de forma totalmente desequilibrada, pois uma parte se aproveita da situação de desespero da outra, impondo-lhe condições totalmente inaceitáveis, as quais em uma negociação normal, jamais seriam acatadas.  

A jurisprudência[1], para que reste configurado o estado de perigo, exige o chamado “dolo de aproveitamento”, ou seja, exige que a parte beneficiada saiba da situação de perigo do outro ao impor condições exorbitantes. Analisando o dispositivo legal, pode-se afirmar que o estado de perigo possui os seguintes requisitos: situação de necessidade, dano eminente atual e grave; nexo de causalidade entre o perigo de dano e a manifestação; ameaça de dano a própria pessoa ou de sua família; dolo de aproveitamento e assunção de obrigação excessivamente onerosa (VENOSA, 2013).

A doutrina cita algumas situações ilustrativas para definir a situação de estado de perigo. É o caso de uma vítima de naufrágio, onde um pescador oferece salvamento sob a condição de ser agraciado com toda a fortuna da vítima; ou ainda, quando o doente assume uma dívida excessivamente onerosa junto ao hospital. Neste sentido, Washington de Barros Monteiro e Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto esclarecem:

O estado de perigo leva a crer que se trata de situação que diga respeito mais a um dano físico, a risco à integridade física do agente, do que a um dano moral. Assim, para custear dispendioso e inadiável tratamento médico de que necessita seu filho, a vítima dá em pagamento ao médico o imóvel em que reside a família, de valor muitas vezes superior ao dos serviços médicos (MONTEIRO; PINTO, 2012, p. 268-269).

Importante lembrar que o estado de perigo não estava previsto no Código Civil de 1916, assim como a lesão, outro defeito invalidante do negócio jurídico, mas que são institutos que não se confundem. Na lesão, há uma situação de necessidade econômica ou inexperiência da outra parte que faz com que ela aceite um negócio jurídico extremamente desproporcional. No estado de perigo, o negócio jurídico não é feito por inexperiência ou necessidade econômica: há, em verdade, uma efetiva situação de perigo à vida, tanto do contratante quanto de outrem.

No estado de perigo¸ a situação constrangedora pode ser causada por evento da natureza, como terremoto, enchentes, maremotos, ou então por ação humana, como o caso de um sequestro, um assalto, ou até mesmo pela exigência de cheque caução ou assinatura de nota promissória em branco para atendimento emergencial em hospital (ULHOA, 2013). Não se pode confundir ainda estado de perigo com coação. No estado de perigo, há uma parte que não é responsável pelo estado em que se encontra a vítima, diferente do que ocorre na coação. O perigo é de conhecimento do beneficiário, mas não foi ele quem provocou a situação, não tendo empregado violência ou ameaça para que a vítima assumisse a obrigação desproporcional (VENOSA, 2013).

Com a conceituação de estado de perigo delineada e seus requisitos demonstrados, mister se faz entender como o código civil trata os negócios jurídicos firmados nestas condições. Conforme artigo 171, II do CC/02 já apresentado no capítulo II, o negócio jurídico firmado sob estado de perigo é considerado anulável, ou seja, invalidá-lo ou não vai depender de inúmeros fatores, como a provocação do interessado, juiz não poderá conhecer de ofício, é prescritível, pode inclusive ser convalidado e terá efeitos ex nunc. A partir desta constatação, é que surge o questionamento: como é possível um negócio jurídico firmado sob condições extremas de anseio de sobrevivência, completamente viciado em sua manifestação de vontade, firmado com dolo de aproveitamento da outra parte, ter a possibilidade de ser convalidado, prescrever e não pode ser reconhecido de ofício pelo juiz? A nulidade absoluta deste negócio jurídico é uma questão de aplicação da boa fé objetiva e da função social do contrato, conforme se defenderá a seguir.

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3.1 - A boa fé objetiva e a função social do contrato como causas de validade do negócio jurídico

A validade do negócio jurídico, em especial dos contratos, está associada diretamente com a aplicação dos princípios da boa fé objetiva e da função social dos contratos. A constitucionalização do direito civil brasileiro e os princípios norteadores do novo CC/02 trazidos por Miguel Reale, quais sejam, da “Eticidade”, “Socialidade” e “Operabilidade”, informam que qualquer contrato firmado fora destes padrões deve ser considerado inválido, pois a vítima deixa de ser apenas o contratante lesado, mas também, toda a sociedade.

O princípio da boa fé objetiva representa uma evolução do conceito de boa fé, enfatizando a lealdade e a exigência de comportamento probo e cooperativo entre os contratantes. Há, por certo, a mitigação da autonomia privada e da força obrigatória do contrato com vistas a proteger um bem muito maior, que é a dignidade da pessoa humana.

Acerca da função social do contrato, deve ser visto como uma relação intersubjetiva, baseada em um solidarismo constitucional e que traz efeitos existenciais e patrimoniais não somente em relação ás partes contratantes, mas também, em relação à terceiros. Superou-se o caráter exclusivamente patrimonial do direito civil, com enfoque especial para o caráter existencial. A ideia de que um contrato rege apenas uma relação jurídica entre as partes foi superada, pois este contrato pode atingir terceiros e a própria sociedade, o que expressa a função social do contrato. O conceito de Função Social do contrato pode ser definido como um princípio de ordem pública pelo qual o contrato deve, necessariamente, ser interpretado e visualizado de acordo com o contexto da sociedade.

A função social do contrato, conforme doutrina majoritária, possui dupla eficácia: Eficácia interna, ou seja, aplicável entre as partes contratantes; e Eficácia externa, que expande para além das partes. A eficácia interna traz os seguintes aspectos no contrato: deve proteger a dignidade humana no contrato; reconhece cláusulas anti-sociais; veda o desequilíbrio contratual e tenta preservar o contrato, quando possível. A eficácia externa traz a ideia de tutela externa do crédito, pois o contrato gera efeitos inclusive perante terceiros (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011).

Trazendo os dois institutos para análise do contrato firmado em situação de estado de perigo, temos um típico caso de ferimento a estes dois princípios. Não é aceitável dizer que um contrato em que uma das partes se aproveita da situação desesperadora da outra e mesmo assim, impõe uma condição, em alguns casos, até desumana, pode ser meramente anulável. A obediência a função social do contrato e a atuação conforme a boa fé é medida impositiva pelo ordenamento jurídico cível e constitucional, de ordem pública, e que é condição de validade do negócio jurídico. Ausentes estes dois institutos no processo de formação do contrato, este é nulo de pleno direito, cabendo ao magistrado anulá-lo de ofício. Perante o ordenamento jurídico e o direito civil constitucionalizado, não é mais razoável nem aceitável dizer que um contrato em que há dolo de aproveitamento e, ainda, locupletamento ilícito, seja convalidado pelo decurso do tempo.

3.2 - Nulidade absoluta ou Anulabilidade que possibilite Revisão contratual?

O negócio jurídico firmado sob o estado de perigo, quando da revisão de seu conceito, ficou claro a exigência de alguns requisitos que, quando ausentes, não autorizam seu reconhecimento. Portanto, caso não haja dolo de aproveitamento, não se pode falar em invalidade; quando ausente a imposição de onerosidade excessiva, também não se conclui pela invalidade decorrente do estado de perigo. Ou seja, existem requisitos que possibilitam a identificação da situação de invalidade. Por exemplo, quando um pescador exige como condição para o salvamento a quantia relativa ao seu custo de deslocamento, não temos aqui a onerosidade excessiva; portanto, o contrato é válido, pois presentes a boa fé e a solidariedade humanas que se exige atualmente em qualquer tipo de contratação.

Contudo, existem casos extremamente paradigmáticos. Se, no exemplo, citado, o pescador exigisse da vítima que esta lhe transferisse todos os seus bens como condição para o salvamento, temos dolo de aproveitamento e onerosidade excessiva. Neste caso, é que surge a discussão sobre a nulidade ou anulabilidade do contrato. Flávio Tartuce, ao tratar do assunto, assim se manifesta:

A sanção a ser aplicada ao ato eivado de estado de perigo é a sua anulação – arts. 171, II e 178, II do CC. O último dispositivo consagra prazo decadencial de quatro anos, a contar da data da celebração do ato, para o ingresso da ação anulatória. Para afastar a anulação do negócio e a correspondente extinção, poderá o juiz utilizar-se da revisão do negócio. Desse modo, filiamo-nos ao entendimento de aplicação analógica do art. 157, §2º do CC também para os casos de estado de perigo. (...) Com a revisão, busca-se a manutenção do negócio, o princípio da conservação contratual, que mantém íntima relação coma função social dos contratos. (TARTUCE, 2013, p. 381).

Este instituto é inclusive tratado no Código Civil italiano no seu artigo 1.447, legitimando o promitente a postular a rescisão do contrato, mas admite que o juiz assegura uma compensação a outra parte pelo serviço que prestou (PEREIRA, 2013).

Data vênia aos entendimentos contrários, não se deveria aplicar o princípio da conservação dos contratos neste caso, pois não há margem para considerar como expoente da função social a manutenção de um contrato completamente inquinado de má fé e tentativa de enriquecimento ilícito; e pior, por meio da exploração do desespero e do sofrimento psicológico alheio. Nelson Nery e Rosa Maria Nery defendem inclusive que a própria oferta feita pela vítima ao beneficiado já não é válida, pois já se encontra viciada pela ausência de liberdade, in verbis:

Ao conceito dado pela norma comentada, pode-se acrescentar a obrigação assumida por aquele que se encontra em estado de perigo é sempre de dar ou de fazer, e a contraprestação será sempre de fazer. Essa é a razão pela qual não se pode suplementar a contraprestação para validar o negócio. A oferta de quem se encontra em estado de perigo não vincula, pois a manifestação de vontade, nesse caso, é viciada. Em outras palavras, a simples oferta vicia o negócio (NERY JUNIOR e NERY, 2005, p. 248).

A preocupação no presente caso é o fato de que, se nenhuma das partes contribuiu para a situação de perigo em que a vítima se encontra e o beneficiário teve custo para ajudá-la, não pode este ficar no prejuízo, assim como a vítima não pode assumir obrigação excessivamente onerosa. Discute a equidade no negócio jurídico. Contudo, não se defende que o beneficiário saia prejudicado. Se há um equilíbrio no serviço prestado e no valor cobrado, não estamos diante de um negócio viciado: a vítima, em situação de normalidade, provavelmente firmaria o mesmo contrato, pois ele é lícito e equilibrado. O vício na manifestação de vontade se apresenta quando a vítima aceita um contrato, extremamente oneroso, que o chamado “homem médio” jamais aceitaria. Este sim, é o contrato defeituoso em que se fere a igualdade, a boa fé e a função social do mesmo.

Sílvio Rodrigues, refletindo sobre a mesma ideia e preocupado com a equidade, afirma que se não houve culpa por nenhuma das partes na produção do evento danoso que gerou o contrato e não houve extorsão na promessa de recompensa, aí sim o negócio deve prevalecer, embora o consentimento possa estar viciado. Portanto, não havendo onerosidade excessiva, não agiu o beneficiário com má fé, se aproveitando da situação. Neste caso, o contrato é válido e deve ser mantido (RODRIGUES, 2003). Em contrapartida e na sintonia do que se defende neste trabalho, o mesmo doutrinador afirma que:

Contudo, se o indivíduo que contratou com a vítima da pressão externa se valeu do terror que lhe inundou o espírito, para impor o negócio ou fixar-lhe cláusulas excessivamente onerosa, não pode mais ser considerado contratante de boa fé. E, nesse caso, como seu interesse não merece proteção da ordem jurídica, o vício que incide sobre a vontade do declarante opera e o negócio pode ser anulado. O elemento que impedia a atuação do mecanismo de anulabilidade – respeito à boa fé do outro contratante – cessou de existir; e, assim, entra ele a funcionar, invalidando o negócio jurídico. (RODRIGUES, 2003, p. 223).

Assim, configurado o dolo de aproveitamento e a onerosidade excessiva, não cabe mais análise de validade ou não do negócio jurídico, se caberia a sua conservação ou revisão. A nulidade absoluta do contrato se opera, pois cessa a boa fé e o contrato não cumpre sua função social, requisitos para sua validade. Caso se admita a revisão e continue se considerando este negócio jurídico firmado em estado de perigo meramente anulável, há um estimulo legislativo para a atuação de má fé, pois se a vítima não procurar o Judiciário no tempo previsto, o negócio jurídico será convalidado pelo decurso do tempo e haverá o locupletamento ilícito. Assim, no caso do pescador que exigiu toda a fortuna da vítima para salvá-la, ele realmente terá direito a retirar todo o patrimônio da mesma, inclusive o mínimo existencial que garantiria sua mantença, o que é juridicamente inaceitável.

A guisa conclusiva, deveria haver uma modificação legislativa para retirar o estado de perigo do artigo 171 e incluí-lo no artigo 166, tornando todo negócio jurídico firmado em legítimo estado de perigo nulo de pleno direito e não apenas anulável. Essa mudança viria consagrar os princípios da boa fé e da função social dos contratos de modo a não incentivar condutas abusivas e injustas, pois não há situação mais revoltante do que validar um contrato em que uma parte condiciona a vida de alguém à obtenção patrimonial. O direito não pode tutelar atitudes como estas.

Sobre a autora
Marta Luiza Leszczynski Salib

Advogada. Mestra em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento. Pós Graduada em Direito Civil com MBA em Gestão Empresarial pela FGV. Graduada em Direito e em Relações Internacionais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALIB, Marta Luiza Leszczynski. O “estado de perigo” como causa de nulidade absoluta do negócio jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4268, 9 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31313. Acesso em: 2 nov. 2024.

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