2 O PROGRESSO NORMATIVO DO TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL
Diferentemente das demais relações de trabalho, que são regulamentadas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o trabalho doméstico é disciplinado, na legislação brasileira, pela Lei nº 5.859/1972.
A referida lei foi a primeira norma no ordenamento jurídico brasileiro que, sem dúvidas e discussões acerca de sua vigência, disciplinou a matéria trabalhista doméstica em âmbito nacional.
Após seu advento, surgiram a nova CRFB/1988, e a PEC 66/2012, como resposta à Convenção 189 da OIT e aos anseios da população, e, por fim, a tão esperada e polêmica EC 72/2013.
Para que se compreenda mais claramente o assunto faz-se necessária uma breve explanação acerca de da história dos direitos trabalhistas domésticos no cenário brasileiro.
2.1 Breves comentários históricos acerca dos direitos trabalhistas domésticos no cenário brasileiro anteriores à PEC 66/2012 e EC 72/2013
O labor doméstico surgiu no Brasil com a chegada dos escravos trazidos da África, os quais foram submetidos a diversos afazeres, inclusive o trabalho doméstico. Porém, não se fala, neste momento histórico, sobre nenhuma forma de proteção ao trabalho.
De origem etimológica latina (domus – casa), o trabalho doméstico realizado no âmbito residencial de outrem era disciplinado, inicialmente, no Brasil, pelas Ordenações do Reino. Posteriormente, o Código Civil de 1916 tratou do assunto, no capítulo referente à locação se serviços (art. 1.216 e ss.), que se aplicava às relações de trabalho em geral (BARROS, 2011, p. 267).
O empregado doméstico, durante muito tempo, ficou sem o amparo de uma legislação própria. Dessa maneira, o Código Civil de 1916 (CC/1916), no que se referia à locação de serviços, era aplicado subsidiariamente para regulamentar as relações trabalhistas domésticas.
Nessa época, não se falava em direito do trabalho como ramo autônomo da legislação brasileira. Apesar da denominação “locação de serviço”, foi o CC/1916 que regulamentou muitos contratos trabalhistas, inclusive os domésticos, até que surgissem legislações trabalhistas específicas.
Em 1923, no âmbito do Distrito Federal, fora instituído o Decreto nº 16.107, que veio regulamentar os serviços dos domésticos e definia como trabalhador doméstico aqueles que exerciam as funções de cozinheiros e ajudantes, arrumadores, copeiros, jardineiros, lavadeiras, porteiros, damas de companhia, amas-secas ou de leite, entre outros.
Em 1941, foi editado o Decreto-Lei nº 3.078, que disciplinava a locação dos empregados em serviços domésticos. Seu artigo 1º definia: “São considerados empregados domésticos todos aquele que, de qualquer profissão ou mister, mediante remuneração, prestem serviços em residências particulares ou a benefício destas”. Esta foi a primeira norma de âmbito nacional a regulamentar o trabalho doméstico no Brasil.
Fora muito discutido acerca da vigência desse Decreto, visto que seu artigo 15 previa a necessidade de regulamentação no prazo de 90 dias para a execução do Decreto-Lei, o que não foi feito. Entretanto, muitos dos seus dispositivos eram claros e a regulamentação não era necessária e, com o tempo, sua aplicação foi confirmada.
Em maio de 1943, fora instituído o Decreto-Lei nº 5.452 que aprovava a CLT, vigente até hoje na legislação brasileira. Entrou em vigor no dia 10 de novembro do mesmo ano. Tal norma uniformizava as regras trabalhistas do país, tornando, desse modo, o Direito do Trabalho uma lei independente do Direito Civil.
Esta, entretanto, afastou o empregado doméstico do seu campo de proteção ao prever em eu artigo 7º:
Art. 7º Os preceitos constantes da presente Consolidação salvo quando fôr em cada caso, expressamente determinado em contrário, não se aplicam: a) aos empregados domésticos, assim considerados, de um modo geral, os que prestam serviços de natureza não-econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas;
Havia discussão questionando se a CLT teria revogado ou não o referido Decreto-Lei nº 5.452/43. Segundo o entendimento de Alice Monteiro de Barros, apesar de que o entendimento jurisprudencial dominante fosse em sentido contrário, o referido Decreto não fora revogado pela CLT, uma vez que esta, ao excluir os empregados domésticos de sua esfera normativa não o revogou, mas somente deixou de estender a esta classe trabalhadora as normas consolidadas (BARROS, 2011, p.268).
Ao afastar o trabalhador doméstico de seu rol protetivo, a CLT foi o primeiro dispositivo legal a desvalorizar formalmente o trabalho doméstico em relação às demais categorias profissionais.
As relações domésticas continuaram a ser regidas pelo Decreto-Lei nº 3.078/41 ou pelo CC/1916, até que legislação específica entrasse em vigor. Somente em 1972 que tal impasse foi resolvido, com a entrada da Lei nº 5.859, que dispunha sobre a profissão do empregado doméstico, trazendo seu conceito e previsões expressas e importantes acerca das suas relações trabalhistas. A citada lei foi regulamentada através do Decreto nº 71.885, de março de 1973.
Em 1988, com a promulgação da nova Constituição Federal, fora instituído um extenso rol de direitos trabalhistas domésticos, se comparados com os até então garantidos. Era uma vitória para a classe, sem dúvidas. Porém, assim como a CLT, a CFRB/88 mais uma vez reafirmou a exclusão feita em 1943 ao confirmar, no parágrafo único do artigo 7º, que essa categoria não deveria gozar da mesma proteção destinada aos demais trabalhadores urbanos e rurais.
Oportuno relembrar que, se atualmente aparenta ser discriminatório, à época da promulgação da Constituição Federal, o referido dispositivo constitucional foi festejado por todos aqueles que buscavam maior proteção ao trabalho doméstico. Primeiramente, porque não era unânime entre as comissões criadas para a elaboração da Constituição Federal, a criação de proteção especial à categoria profissional das trabalhadoras domésticas. Além disso, muitos foram os críticos da inserção da doméstica no texto constitucional, afirmando que a lei maior não poderia privilegiar uma categoria em particular, tarefa esta de incumbência da lei ordinária. Entretanto, diante do compromisso das lideranças com a categoria das empregadas domésticas de assegurar-lhes direitos no âmbito constitucional, resta evidente que a intenção do legislador constituinte foi assegurar direitos trabalhistas às empregadas domésticas, e não discriminá-las (MAZIERO, 2010, p. 26).
A atualizações mais recentes acerca do tema, antes da atual EC 72/2013 entrada em vigor em 2013, aconteceram no ano de 2001, com a Lei nº 10.208, e em 2006, com a Lei nº 11.324, que acrescentaram e alteraram dispositivos da Lei nº 5.859/72. As referidas Leis dispuseram acerca de novos elementos, como a inclusão facultativa do empregado doméstico no FGTS; sobre o jus ao seguro-desemprego pelo período de três meses, caso tenha sido dispensado arbitrariamente; acerca da vedação de descontos no salário do empregado decorrentes de fornecimento de alimentação, vestuário, higiene ou moradia, uma vez que essas despesas não tem natureza salarial nem se incorporam à remuneração; sobre o direito de férias anuais remuneradas de 30 dias com acréscimo de um terço do salário normal, pelo menos; estabilidade da empregada gestante, entre outros assuntos.
2.2 A convenção 189 da OIT e a Recomendação 201
A OIT é a agência das Nações Unidas que tem por missão promover oportunidades para que homens e mulheres possam ter acesso a um trabalho decente e produtivo, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade.
Durante a 100ª Conferência Internacional do Trabalho (CIT), ocorrida em Genebra no período de 1º a 17 de julho de 2011, foram aprovadas a Convenção n° 189, intitulada “Convenção sobre o trabalho decente para as trabalhadoras e os trabalhadores domésticos”, e a Recomendação n° 201 sobre o mesmo tema, como instrumentos de proteção internacional ao trabalho doméstico. Esse foi um avanço essencial para resgatar a dignidade e direitos dessa categoria historicamente vítima de diversos tipos de discriminação, conferindo a estes um extenso rol de direitos.
As normas internacionais do trabalho são instrumentos jurídicos que estabelecem padrões mínimos no trabalho.
1. Convenções: são tratados internacionais juridicamente vinculantes que normalmente estabelecem os princípios básicos que os países devem aplicar ao ratifica-las. 2. Recomendações: servem como diretrizes não vinculantes e complementam a Convenção, fornecendo orientações mais detalhadas sobre como se poderia proceder para avançar na implementação dos direitos e princípios enunciados na Convenção. [4]
A Convenção nº 189 é composta de 27 artigos, sendo que os dezenove primeiros cuidam exclusivamente da materialidade dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras domésticos, e os seguintes tratam das regras para sua implantação.
O conteúdo da Convenção aborda sobre direitos humanos e direitos fundamentais trabalhistas, trabalho infantil doméstico, assédio e violência no local de trabalho, condições de emprego não menos favoráveis do que aquelas já garantidas, proteção aos trabalhadores domésticos imigrantes, proteção contra abusos trabalhistas, jornada de trabalho, estabelecimento de remuneração mínima, proteção social, medidas de saúde e segurança no trabalho, dentre outros.
O artigo 19 da Constituição da OIT, impõe aos Estados Membros da OIT que se submetam às Convenções adotadas pelas CITs, tendo o prazo de 12 meses, a partir do encerramento da sessão da Conferência, para promulgar a legislação ou adotar medidas de outra natureza, incluída a possibilidade de ratificação.
A Convenção nº 189, até então, não foi aprovada pelo Congresso Nacional Brasileiro. Todavia, parte de seu conteúdo adentrou o ordenamento jurídico com a aprovação da EC 72/2013, que entrou em vigor na data de sua publicação, dia 03 de abril de 2013. Ela estendeu aos empregados domésticos os direitos que, até na época, eram direcionados somente aos demais trabalhadores.
2.3 A PEC 66/2012 e a EC 72/2013
Diante de tamanha disparidade e restrição aos direitos dos trabalhadores domésticos, principalmente pela CFRB/1988, chamada “Constituição Cidadã”, e ainda em respostas à Convenção 189 da OIT, surge a PEC nº 66/2012 (nº 478/2010 na Câmara dos Deputados), popularmente conhecida como “PEC das domésticas”, com o intuito de revogar o parágrafo único do artigo 7º da CRFB/1988, estabelecendo a igualdade de direitos trabalhistas entre os empregados domésticos e demais trabalhadores urbanos e rurais.
A PEC das domésticas fora aprovada pelo Senado Federal em 2013 e no dia 03 de abril do mesmo ano entrou em vigor o novo texto constitucional.
A fundamentação jurídico-política da PEC das domésticas e, consequentemente, da EC 72/2013 se encontra na nos direitos humanos trabalhistas e sociais. Segundo Patrick Maia Merísio, tais direitos descendem da forma da execução do trabalho e não da natureza do empregador ou da própria função do empregado. O elemento determinador é a prestação pessoal, onerosa, contínua e subordinada juridicamente a outrem. “A partir disso, o direito do trabalho passa a ser parte essencial dos direitos sociais, cabendo ao Estado promovê-los e assegurá-los. Eis a razão da medida legislativa suprema” (MERÍSIO, 2013, p. 2).
A EC 72/2013 traz o seguinte texto, in verbis:
Artigo único. O parágrafo único do art. 7° da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 7° (...) Parágrafo único. São assegurados à categoria dos trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos IV, VI, VII, VIII, X, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XXI, XXII, XXIV, XXVI, XXX, XXXI e XXXIII e, atendidas as condições estabelecidas em lei e observada a simplificação do cumprimento das obrigações tributárias, principais e acessórias, decorrentes da relação de trabalho e suas peculiaridades, os previstos nos incisos I, II, III, IX, XII, XXV e XXVIII, bem como a sua integração à previdência social.”
Passaram a fazer parte dos direitos dos domésticos os previstos em dezesseis incisos do artigo 7º da CFRB/88, que antes não eram incluídos. In verbis:
I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos; II - seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário; III - fundo de garantia do tempo de serviço; IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo; VII - garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável; VIII - décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria; IX - remuneração do trabalho noturno superior à do diurno; X - proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa; XII - salário-família pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda nos termos da lei; XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; XV - repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; XVI - remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinqüenta por cento à do normal; XVII - gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal; XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; XIX - licença-paternidade, nos termos fixados em lei; XXI - aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, sendo no mínimo de trinta dias, nos termos da lei; XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; XXIV – aposentadoria. XXV - assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e pré-escolas; XXVI - reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho; XXVIII - seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa; XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; XXXI - proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência; XXXIII - proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos.
Apenas poucos direitos previstos em alguns incisos não passaram para o acervo dos direitos do trabalhador doméstico, por impossibilidade de aplicação, ou outra razão. São eles: piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho; salário-família pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda nos termos da lei; jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva; proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei; adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei; proteção em face da automação, na forma da lei; ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho; proibição de distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos; igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso.
2.4 A diferença de tratamento jurídico após o advento da EC 72/2013 e a aplicabilidade dos direitos reconhecidos
Diante da modificação legislativa, é necessário ressaltar acerca da diferença de tratamento jurídico empregado à classe trabalhadora doméstica após do advento da EC 72/2013.
É preciso deixar claro que dentre o rol dos novos direitos reconhecidos existem direitos de eficácia plena, que independem de normas reguladoras posteriores, bem como, direitos de eficácia contida, ou seja, que dependem de regulamentação (Leis, Decretos, Portarias, etc), estabelecendo regras a fim de que a lei maior possa ser satisfeita.
De imediato, os empregadores domésticos passaram a observar os direitos de eficácia plena dos incisos VII, X, XIII, XVI, XXII, XXVI, XXX, XXXI e XXXIII. Tais incisos têm aplicação imediata, independendo de qualquer regulamentação infraconstitucional.
[...] a previsão na Constituição Federal é bastante, por si só, para fazer valer, de forma imediata, os direitos ao salário mínimo, à irredutibilidade e proteção salarial, ao décimo terceiro salário, à limitação da jornada de trabalho, às horas extras, às férias, à licença-maternidade, à licença-paternidade, ao aviso prévio proporcional, à redução dos riscos inerentes ao trabalho, à aposentadoria, ao reconhecimento das convenções e acordos coletivos, à proteção contra discriminação, e à proteção do trabalho do menor (ROCHA, 2013).
Os incisos constantes na segunda parte do § 1º do artigo 7º, quais sejam I, II, III, IX, XII, XXV e XXVIII, entretanto, dependem de regulamentação infraconstitucional. Os direitos ali elencados dependem não só da existência da relação de emprego, mas também de políticas públicas do Estado para sua implementação. Tais direitos são: indenização compensatória, dentre outros direitos, no caso de despedida arbitrária ou sem justa causa; seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário; obrigatoriedade do recolhimento do fundo de garantia do tempo de serviço; adicional noturno; salário-família pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda; assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e pré-escolas (auxílio creche); e, seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.