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Garantia e controle da Constituição.

Sistemas e antecedentes históricos

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Agenda 15/02/2015 às 10:17

Apresenta-se o desenvolvimento do controle de constitucionalidade, focando as experiências norte-americana e europeia para chegar ao sistema jurídico brasileiro.

Introdução

Neste artigo serão estudados aspectos referentes ao surgimento e desenvolvimento do controle de constitucionalidade. Buscar-se-á uma análise da discussão teórica que é realizada quando da formação deste instituto de controle e garantia da Constituição, diferenciando as particularidades dos modelos de controle utilizados nos Estados Unidos e na Europa continental. No caso brasileiro, o estudo centra-se nos aspectos históricos e nas características do controle de constitucionalidade, que se notabiliza por ser um modelo híbrido, composto por institutos dos modelos difuso e concentrado de controle.

Em um primeiro momento será apresentado o surgimento do controle de constitucionalidade, para a seguir serem focadas as experiências norte-americana e europeia, que contribuem com grande debate teórico. Por fim chega-se a análise do controle de constitucionalidade no sistema jurídico brasileiro.


1 Sistemas judiciais de controle

O Estado, em sua formatação Constitucional-Democrática, se obriga a criar mecanismos para a garantia e o controle da Constituição, que, de certo modo, acabam sendo mecanismos de defesa do próprio Estado. A Constituição é a lei fundamental, a norma legitimadora da atuação estatal e a carta política que irá definir as garantias de proteção do indivíduo frente ao Estado, em caráter negativo (direitos fundamentais de primeira geração), e de prestações devidas ao cidadão, em caráter positivo (direitos fundamentais de segunda geração)[1]. Como depreende-se da lição de CANOTILHO:

“O Estado constitucional democrático ficaria incompleto e enfraquecido se não assegurasse um mínimo de garantias e de sanções: garantias da observância, estabilidade e preservação das normas constitucionais; sanções contra actos dos órgão de soberania e dos outros poderes públicos não conformes com a constituição. A idéia de proteção, defesa, tutela ou garantia da ordem constitucional tem como antecedente a idéia de defesa do Estado, que, num sentido amplo e global, se pode definir como o complexo de institutos, garantias e medidas destinadas a defender e proteger, interna e externamente, a existência jurídica e fática do Estado (defesa do território, defesa da independência, defesa das instituições).A partir do Estado Constitucional (cfr.supra) passou a falar-se de defesa ou garantia da constituição e não defesa do Estado. Compreende-se a mudança de enunciado lingüístico. No Estado Constitucional o objecto de procteção ou defesa não é, pura e simplesmente, a defesa do Estado, mas da forma de tal Estado tal como ela é normativo-constitucionalmente conformada – o Estado constitucional democrático.”[2]

A legitimidade da Constituição como lei superior do Estado está diretamente relacionada com a sua formação pelo contrato social[3] (que é marco da existência do Estado Constitucional), através do poder constituinte originário. Este poder é aquele que constituirá os demais poderes[4]. Aqui encontramos o fundamento de todo o Direito Positivo, para aqueles que entendem que o direito só é direito quando direito positivo – assim o poder constituinte seria um poder de fato, uma força que se impõe como tal; para aqueles que admitem a existência de um direito anterior ao direito positivo, um direito natural, o poder constituinte seria um poder de direito, fundado num “poder natural de organizar a vida social de que disporia o homem de ser livre”[5]. A Constituição será, no escalonamento hierárquico de determinado ordenamento jurídico, a lei superior, aquela que tem seu fundamento baseado na pressuposta norma hipotética fundamental, extraímos, daí, os princípios da supremacia da Constituição e da hierarquia das leis. Recorrer-se-á as palavras de KELSEN sobre o tema:

“Dizer que uma norma que se refere a determinada conduta “vale” (é “vigente”), significa que ela é vinculativa, que o indivíduo se deve conduzir do modo prescrito pela norma. Já anteriormente num outro contexto, explicamos que a questão de por que é que a norma vale – quer dizer: por que é que o indivíduo se deve conduzir de determinada forma – não pode ser respondida com a simples verificação de um fato da ordem do ser, que o fundamento de validade de uma norma não pode ser um tal fato. Do fato de algo ser não pode seguir-se que algo deve ser. Assim como do fato de algo dever ser se não pode seguir que algo é. O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de outra norma. Uma norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é figuramente designada como norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior.

(...)

Mas a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais elevada ele tem que ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada.”[6]

A titulariedade do poder constituinte originário pertence ao povo, que, através de agentes representativos da vontade popular, a Assembleia Constituinte, constrói sua Constituição. Note-se que para ser legítimo este poder deve representar a vontade da grande maioria da população, sendo um instrumento a constituir nova realidade jurídica, no momento em que uma ordem jurídica anterior perdeu a sua legitimidade, como ensina FERREIRA FILHO:

“A Constituição rígida é a lei suprema. É ela a base da ordem jurídica e a fonte de sua validade. Por isso, todas as leis a ela se subordinam e nenhuma pode contra ela dispor.A supremacia da Constituição decorre de sua origem. Provém ela de um poder que institui a todos os outros e não é instituído por qualquer outro, de um poder que constitui os demais e é por isso chamado Poder Constituinte.”[7]

Nos Estados que adotam o modelo de Constituição rígida – onde se realiza a separação entre poder constituinte originário e os poderes constituintes derivados (como o poder de revisão das normas constitucionais); necessário se apresenta uma forma de garantia e controle dos atos jurídicos realizados após a promulgação da Constituição, a este procedimento dá-se o nome de controle de constitucionalidade[8]. O controle de constitucionalidade consiste na verificação da adequação de um ato jurídico à Constituição. O ato deve obedecer aos requisitos formais estabelecidos pelo texto constitucional, como a competência e rito determinado (superlegalidade formal); e se tal ato está em consonância com os direitos e garantias consagrados na Constituição (superlegalidade material)[9]. O ato que não fere a Constituição é um ato constitucional, o ato que não preenche algum dos seus requisitos é um ato eivado de inconstitucionalidade. Nas palavras de CANOTILHO:

“Ao falar-se do valor normativo da constituição aludiu-se à constituição como lex superior, quer porque ela é fonte da produção normativa (norma normarum) que porque lhe é reconhecido um valor normativo hierarquicamente superior (superlegalidade material) que faz dela um parâmetro obrigatório de todos os actos estaduais. A idéia de superlegalidade formal (a constituição como norma primária de produção jurídica) justifica a tendencial rigidez  das leis fundamentais, traduzida na consagração, para leis de revisão, de exigências processuais, formais e materiais, <<agravadas>> ou <<reforçadas>> relativamente as leis ordinárias.

(...)

Da conjunção destas duas dimensões – superlegalidade material e superlegalidade formal da constituição – deriva o princípio fundamental da constitucionalidade dos actos normativos: os actos normativos só estarão conformes com a constituição quando não violem o sistema formal, constitucionalmente estabelecido, da produção destes actos, e quando não contrariarem, positiva ou negativamente, os parâmetros materiais plasmados  nas regras ou princípios constitucionais.”[10]

Este controle de constitucionalidade poderá ser preventivo ou repressivo diferenciando-se quanto a forma e o momento a ser realizado, sendo o controle preventivo realizado durante o processo legislativo, antes da promulgação da lei, e o controle repressivo após a entrada em vigor da norma jurídica; também poderá  ser judiciário ou político, no se refere à natureza do órgão a realizar o controle, um órgão político ou um tribunal. O controle judiciário de constitucionalidade ainda poderá ser definido como controle difuso, controle concentrado ou ainda controle misto. O controle difuso é aquele em que a qualquer juiz é dado competência para apreciar a alegação de constitucionalidade; já no controle concentrado temos a reserva a um único órgão a tarefa de realizar o controle; e no modelo misto temos características pertencentes aos dois modelos anteriores. [11]

O controle de constitucionalidade realizado no Brasil é o controle judiciário misto, tendo como princípio um modelo de controle difuso, inspirado no controle norte-americano, notadamente na primeira Constituição Republicana de 1891, mas agregando características do modelo europeu de controle concentrado de constitucionalidade ao longo da história do Estado brasileiro[12].

Assim sendo, realizar-se-á apontamentos referentes aos controles judiciais de constitucionalidade que emprestam a base teórica para o modelo adotado na carta jurídico-política brasileira; assim, atentaremos para uma análise do sistema difuso, que tem como expoente o modelo norte-americano – judicial review – de controle de constitucionalidade, bem como para o modelo concentrado que se implantou na Europa continental após a Constituição austríaca de 1º de outubro de 1920 (a chamada Oktoberverfassung) baseada no projeto elaborado pelo mestre da escola jurídica de Viena, Hans Kelsen[13].

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Assim, uma vez que este estudo concentra-se na realidade brasileira, e esta apresenta o controle judicial de constitucionalidade, não serão aprofundas questões referentes aos controles exercidos na França e na Inglaterra[14]. Na França temos um modelo não-judicial que garante ao legislativo um controle de constitucionalidade prévio através do Conselho Constitucional. Assim, a análise da constitucionalidade integra o processo legislativo de criação das Leis[15].

Por sua vez, na Inglaterra encontra-se a particularidade de não existir uma Constituição formalizada (escrita), assim, não contendo os elementos da supremacia da Constituição e da hierarquia das leis – não podendo ser identificado um “controle de constitucionalidade próprio”[16]. Na Inglaterra o que existe, na verdade, é o confronto entre a statutory law, leis criadas pelo parlamento, e a commom law, fonte do direito cujo preceito é extraído dos costumes e consolidado com a doutrina dos precedentes obrigatórios, precedent, tal confronto entre normas pode ser resolvido tanto pelos juízes como pelo parlamento, embora, em respeito ao princípio da supremacia do Parlamento, calcado na teoria de John Locke, a palavra final seja do parlamento.[17]

Passar-se-á a tratar do modelo norte-americano de controle de constitucionalidade, uma vez que este é a inspiração imediata do controle de constitucionalidade adotado pela Constituição brasileira de 1891.

1.1 Sistema norte-americano de controle de constitucionalidade

O constitucionalismo tem seu nascimento no momento histórico em que o Absolutismo apresenta a necessidade de uma forma de controle sobre o poder concedido ao Estado. Assim, o movimento constitucionalizador[18] é uma nova teoria, na concepção do Estado Moderno, que tenciona limitar o poder político do Estado frente ao cidadão. Nos dizeres de AFONSO DA SILVA:

“A constituição do Estado, considerada sua lei fundamental, seria, então, a organização dos seus elementos essenciais: um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e exercício de poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias. Em síntese, a constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado.” [19].

Entretanto, em diferentes Estados, encontramos diversas experiências de constitucionalismo, cada qual com suas características. Assim, poderemos classificar as diferentes constituições quanto ao seu conteúdo, quanto a sua forma, quanto ao modo de elaboração, quanto à origem e quanto à estabilidade. Como este estudo se destina a análise do controle de constitucionalidade, convém especificar a classificação quanto à estabilidade, pois é neste quesito em que encontraremos a fundamentação para a existência de tal instituto de controle.

Quanto à estabilidade podemos definir as constituições de três maneiras: rígidas, flexíveis e semi-rígidas. A Constituição rígida somente é alterável mediante um processo especial, normalmente estabelecido na própria Constituição, isto é, há uma série de ritos, solenidades e exigências especiais para a elaboração de uma emenda à Constituição, em comparação com a criação de leis complementares e ordinárias. Nas constituições flexíveis, não temos uma diferenciação no processo de elaboração de emendas à Constituição e das demais leis, assim, a própria lei ordinária contrastante muda a Constituição. E por fim, a Constituição semi-rígida é aquela que contém uma parte flexível e outra rígida. [20]

A principal conseqüência da rigidez de uma Constituição, isto é, de diferenciar a Constituição das demais leis, é o princípio que deste postulado é emanado, o princípio da Supremacia da Constituição[21], isto é, a Constituição vai se colocar no topo da pirâmide do ordenamento jurídico, sendo a norma que legitima a existência do Estado, na forma e organização nela estabelecida, e na sua área de atuação e criação legislativa, delimitando, assim, a extensão do poder político.

O processo revolucionário que culminou com a Declaração de Independência das colônias inglesas, em 1776, e a formação dos Estados Unidos consolida-se com a adoção da primeira Constituição rígida, em 1787, e, assim sendo, da primeira manifestação de um controle jurisdicional de constitucionalidade, denominado judicial review. Nos dizeres de CAPPELLETTI:

“Verdadeiro é, de fato, que antes de ter sido posto em prática o sistema norte-americano de judicial review (of the constitutionality of legislation), nos outros Estados – e refiro-me, em particular, aos Estados da Europa – nada de semelhante tinha sido criado. A razão disto é, de resto, facilmente compreensível se se pensa que, precisamente, com a Constituição norte-americana, teve verdadeiramente início a época do “constitucionalismo”, com a concepção da supremacy of the Constitution em relação às leis ordinárias. A Constituição norte-americana representou, em síntese, o arquétipo das assim chamadas Constituições “rígidas”, contrapostas às Constituições “flexíveis”, ou seja, o arquétipo daquelas Constituições que não podem ser mudadas ou derrogadas, através de leis ordinárias, mas eventualmente, apenas através de procedimentos especiais de revisão constitucional.”[22]

Para entendermos como se deu este processo nos Estados Unidos, deveremos recordar a situação que originou este cenário para a adoção de um modelo judicial de controle de constitucionalidade das leis. Convém frisar que é o primeiro modelo judicial de controle, pois temos, simultaneamente, na França, o desenvolvimento de um modelo não-judicial – sendo que a diferença entre Estados Unidos e França, na entrega do controle de constitucionalidade no primeiro aos juízes, e no segundo ao legislativo, se explica pela tradição de cada país, sendo que na França havia um sentimento de desconfiança nos magistrados, uma vez que estes, no modelo absolutista anterior, eram oriundos da aristocracia, aplicando a lei conforme a vontade do soberano, sendo “la bouche de la loi”, representando, assim, o antigo regime[23], ao passo que na América não havia estas restrições aos juízes.

O precedente imediato a inspirar o modelo norte-americano do judicial review, que consiste na Supremacia do Judiciário, foi o sistema inglês da Supremacia do Parlamento. A explicação para tal fenômeno remonta anteriormente ao período colonial americano, ainda na Inglaterra absolutista, na disputa entre James I Stuart e Sir Edward Coke. [24] A teoria de Sir Edward Coke baseava-se na discussão acerca da preponderância entre a common law, que consiste em ter na jurisprudência a principal fonte criadora do Direito, força obtida através do instituto do precedent que vincula o magistrado a decisões proferidas anteriormente[25], e entre a statutory law, que vem a ser a lei escrita pelo parlamento. A questão central era a ocorrência de conflitos entre a common law e a statutory law, e mais precisamente entre qual autoridade (Rei, Parlamento ou juízes) deveria ser a titular do poder para dirimir estes conflitos – tratava-se na verdade, de uma crítica ao absolutismo – absolutismo quer por parte do Rei, quer por parte do Parlamento – uma vez que Coke defendia que ao Judiciário caberia ser o árbitro entre o Rei e a nação.[26]

A teoria de Sir Edward Coke caiu em desuso com a Revolução Gloriosa de 1688, entretanto, já havia sido incorporada nas colônias inglesas na América. A Revolução Gloriosa que acabou por declarar a supremacia do Parlamento,contudo, foi elemento essencial para a criação da supremacia do Judiciário nos Estados Unidos. Uma vez que, conforme a lei inglesa, as colônias na América eram regidas por “cartas ou estatutos de la Corona”, elaboradas pelo Parlamento inglês, estas seriam “Constituições” das colônias, uma vez que regulavam as estruturas jurídicas da colônia, bem como vinculavam a legislação elaborada pelas estas. Assim, a supremacia do Parlamento inglês produzia efeitos também em solo americano.[27] O órgão que realizava a verificação da conformidade das leis coloniais com as leis parlamentares era o Privy Council do Rei[28]; este órgão decidiu que as leis das colônias só poderiam ser aplicadas pelos juízes se em conformidade com as leis do Reino.

Ora, as leis do Reino, nas colônias inglesas na América, encontravam-se na forma positivada, e detinham valoração superior às leis elaboradas pelas próprias colônias, como decorrência do princípio da supremacia do Parlamento. A verificação de conformidade entre estes dois tipos legislativos era realizadas pelos juízes, e aqui refere-se a todos os juízes, não existe um órgão centralizador desta atividade – como veremos depois na análise do controle concentrado de constitucionalidade. Com a Declaração de Independência, e, depois, com a adoção das Constituições dos novos Estados Independentes, seguindo a tradição jurídica construída em solo norte-americano, a verificação da conformidade de determinada lei com a nova Constituição, ou melhor dizendo, a análise da constitucionalidade das leis, continua com os juízes, como era antes realizado. Assim, ao passo que surge a Constituição rígida dotada da força concedida pelo princípio da supremacia da Constituição, nasce o instituto do judicial review e, assim, a supremacia do Judiciário.[29]

A doutrina do judicial review, não estava expressamente reconhecida na carta de 1787, embora já sejam encontrados índicos desta doutrina. No período entre a Declaração de Independência em 1776 e a promulgação da Carta política de 1787, estava em prática a consolidação do princípio segundo o qual “issues of constitutionality might be raised in litigation”, isto é, questões referentes à constitucionalidade deveriam ser discutidas e solvidas dentro da processo.[30] A consolidação deste sistema de controle de constitucionalidade vem com a histórica decisão, em 1803, pela Suprema Corte Norte-Americana, do julgamento do caso Marbury versus Madison, quando o Chief Justice Jonh Marshall proclamou “principle, supposed to be essential to all written contitutions, the law repugnant to the Constitution is void; and that courts, as well as other departments, are bound by that instrument”[31], assim, o Juiz Jonh Marshall declarou a supremacia da Constituição, que não poderia ser afrontada por legislação ordinária. Nas palavra de CAPPELLETTI:

“a função de todos os juízes é a de interpretar as leis, a fim de aplicá-las aos casos concretos de vez em vez submetidos a seu julgamento; uma das regras mais óbvias da interpretação das leis é aquela segundo a qual, quando duas disposições legislativas estejam em contraste entre si, o juiz deve aplicar a prevalente; tratando-se de disposições de igual força normativa, a prevalente será indicada pelos usuais, tradicionais critérios ‘lex posterior derogat legi priori’, ‘lex specialis derrogat legi generali’, etc.; mas, evidentemente, estes critérios não valem mais – e vale, ao contrário, em seu lugar, o óbvio critério ‘lex superior derogat legi inferiori’ – quando o contraste seja entre disposições de força normativa: a norma constitucional, quando a Constituição seja ‘rígida’ e não ‘flexível’, prevalece sempre sobre a norma ordinária contrastante (...)”[32]

Por sua vez, a supremacia do Judiciário fica clara no momento em que se verifica que tal controle de constitucionalidade é executado por todos os órgãos do judiciário, de forma incidental, ou seja, quando do julgamento das causas de suas competências[33], inaugurando assim, o modelo difuso do controle judicial de constitucionalidade, nos dizeres de STRECK:

“De qualquer sorte independentemente dos fatos que geraram a decisão paradigmática, o certo é que as instituiu um princípio básico do constitucionalismo norte-americano, seguido depois pelo mundo (sob as mais variadas formas). O Poder Judiciário, em especial a Corte Suprema, se converteu assim em garantidor da Constituição, não somente no que tange à distribuição de poder entre a federação e os Estados-Membros, mas também frente à atuação dos poderes federais, e em especial o Poder Legislativo” [34]

O sistema norte-americano filia-se a família da common law, assim, a jurisprudência se posiciona como uma fonte básica da criação do Direito. A força que a decisão de um magistrado ganha para se configurar como fonte criadora do direito provém do instituto da stare decisis, que vem a ser a versão norte-americana do que é na Inglaterra o instituto do precedent, que consiste na imposição, aos magistrados, de utilizar-se de regras de direito de outras decisões. No sistema norte-americano a forma de governo federalista e suas características, delimitam a aplicação do precedente à matérias de competência federal, diferentemente ao que ocorre com o instituto do precedent inglês; além disto, o Supremo Tribunal e os Supremos Tribunais dos Estados não estão vinculados à suas próprias decisões, desde que o caso seja distinto do precedente em questão.[35]

Assim, a decisão acerca da constitucionalidade de determinada lei, embora possam surgir divergência entre os diversos órgãos integrantes do sistema jurídico norte-americano, por força do instituto da stare decisis, ao ser prolatada por órgãos judiciários superiores, principalmente pela Supreme Court, acaba por vincular a todos os magistrados, conferindo assim, mesmo que indiretamente, eficácia erga omnes à decisão.[36]

O modelo difuso Norte-Americano de controle de constitucionalidade será a base do modelo adotado no Brasil pela Constituição Republicana de 1891, mas ao longo da história constitucional brasileira serão inseridos institutos integrantes do modelo concentrado de controle de constitucionalidade, modelo este que será a seguir aprofundado.

1.2 Sistema europeu continental de controle de constitucionalidade

O modelo europeu de controle de constitucionalidade também pode ser denominado de modelo austríaco de controle, uma vez que foi elaborado por Hans Kelsen[37] e efetivado pela Constituição austríaca de 1º de outubro de 1920 (a chamada Oktoberverfassung). A principal característica deste modelo de justiça constitucional consiste em deferir a um Tribunal ad hoc, que pode ser um Tribunal de Cúpula do Poder Judiciário ou uma Corte Especial[38], o controle de constitucionalidade de leis e atos normativos, retirando esta competência do juiz ordinário.[39]

O controle concentrado, posto em prática na Áustria em 1929,  depois seria difundido à outros Estados europeus – todos com seus sistemas jurídicos integrantes da família da Civil law. Este movimento teve inicio com a consolidação territorial vivenciada na Europa no Pós-guerra, quando tivemos a adoção de Constituições rígidas como leis fundamentais em diversos Estados europeus, além do surgimento do conceito do Estado Democrático de Direito. Seguiram este modelo a Constituição Italiana de 1º de janeiro de 1948; a Constituição de Bonn (Alemanha), de 23 de maio de 1949; a Constituição da República do Chipre, de 16 de agosto 1960; pela Constituição da República Turca de 09 de julho de 1961; e ainda, pela Constituição da extinta República Socialista Federativa da Iugoslávia.[40]

O numeroso rol de países que seguiram a linha teórica iniciada na Áustria, nos interessa particularmente ao analisarmos as motivações que fundamentam a opção por um Tribunal ad hoc para ser o detentor do poder de controle[41]. Afinal, o objetivo último do trabalho é a análise da figura do Supremo Tribunal Federal no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade. Como o Brasil adota primordialmente apenas o modelo de controle difuso desenvolvido nos Estados Unidos, inserindo institutos pertencentes à escola constitucional da Europa continental, é necessário entender porque os Estados europeus, que assim como o sistema jurídico brasileiro, pertencem à família da civil law, seguiram caminho diverso ao já percorrido, com sucesso, nos Estados Unidos.

O sistema norte-americano apresenta a característica de encarregar todos os órgãos do poder judiciário do controle de constitucionlidade de leis e atos normativos, sendo declarada a inconstitucionalidade assim que verificada, nos casos de competência de cada órgão. O sistema jurídico dos Estados Unidos integra a família da common law, assim as decisões proferidas pelos juízes norte-americanos são dotadas da força peculiar contida no instituto da stare decisis, que acaba por obrigar os magistrados a utilizarem regras de outras decisões. Portanto as decisões em casos concretos futuros e idênticos estão vinculadas à jurisprudência – acaba-se, assim, tendo uma eficácia erga omnes da decisão, principalmente quando proferida por um órgão superior do judiciário. No caso dos Estados europeus integrantes da civil law – ou seja, sem o mecanismo criado pelo instituto da stare decisis – a aplicação da doutrina americana do judicial review, confiando a todos os magistrados o controle de constitucionalidade, poderia gerar, como de fato gerou na experiência italiana[42] (e gera, hoje, no Brasil), certa insegurança jurídica, ante a possibilidade de existir dissonância nas decisões proferidas por diferentes magistrados e órgãos do mesmo Poder Judiciário em relação à constitucionalidade de uma determinada lei; bem como a possibilidade de alteração no posicionamento, de um mesmo magistrado, ao longo do tempo, decidindo pela inconstitucionalidade de uma lei em uma data, e pela constitucionalidade em outra. [43]

Outra questão inconveniente da aplicação do judicial review nos países da civil law, está nos efeitos emanados da decisão proferida através do modelo difuso de controle, afinal, como se trata da verificação caso-a-caso da constitucionalidade de uma lei, a decisão vincula apenas as partes integrantes daquela lide em questão. Assim, o sujeito que deseja a mesma declaração de inconstitucionalidade, face a não vinculação da decisão erga omnes, terá que ingressar com nova ação, discutindo a mesma lei já declarada (por aquele juízo) inconstitucional.[44]

Face os problemas apresentados pela adoção do judicial review americano nos países da civil law e com a necessidade (uma vez que os Estados europeus estavam fundamentados em Constituições rígidas, dotadas portanto da força do princípio da supremacia da Constituição) de estabelecer-se um controle sobre as leis e atos normativos, na Áustria consolida-se a ideia de um Tribunal ad hoc, criado para o fim de ser o guardião da Constituição, concentrando as decisões acerca da justiça constitucional. Dessa forma, a Corte Constitucional caracteriza-se por ser um órgão do judiciário criado exclusivamente para este fim[45], fora do “caminho processual” da justiça ordinária, realizando atividade semelhante à Suprema Corte Norte-americana[46].

A opção de retirar o controle de constitucionalidade do juiz ordinário resolve a problemática antes constatada, afinal, a decisão proferida pela Corte Constitucional tem eficácia erga omnes e evita divergências acerca da constitucionalidade das leis. Porém, não foi a ideia de evitar estes transtornos que a aplicação do judicial review nos Estados da civil law que fundamentou todo este esforço; por trás da adoção de um Tribunal ad hoc, não integrante do poder Judiciário, temos fundamentos que remontam da tradição europeia proveniente do Absolutismo, carregada de desconfiança nos magistrados europeus (pelos mesmos motivos que levaram os franceses a criar um modelo não-judicial de controle de constitucionalidade)[47], além da existência de profundas diferenças nas premissas ideológicas dos Estados europeus em relação aos Estados Unidos no que se refere à teoria da separação de poderes.

Uma vez que na Europa a ideia da separação dos poderes elaborada por Montesquieu tem força relevante – além de existir restrições à entrega do poder de controle da Constituição aos magistrados ordinários (preconceito que perdura desde a Revolução Francesa) – a ideia de criação de um Tribunal que não pertencente ao Poder Judiciário ganha força. A Corte Constitucional vem a ser um tertio genus, pertencente ao Poder Judiciário, mas com elementos que a vinculam a outros poderes. Este “terceiro” na relação entre os Poderes do Estado, é criado com o objetivo de moderar todo o sistema, através de sua competência na Justiça Constitucional. Para não existir violação à separação dos poderes na formação do Tribunal recorre-se à participação do legislativo no processo de formação da Corte Constitucional, sendo que os membros do Tribunal serão magistrados, professores, advogados e membros do parlamento. A participação do Legislativo se materializa quando os postulantes a integrar o Tribunal Constitucional passam pelo crivo do Parlamento. A interferência do Poder Legislativo busca dar legitimidade ao Tribunal, recorrendo à volonté génerale, isto é, a soberania popular, mesmo que indireta, para tanto.[48]

Outra diferença teórica, que irá influenciar na adoção de um Tribunal ad hoc na Europa, está na forma como se resolve o problema da inconstitucionalidade nos Estados Unidos e que não poderia ser operado no sistema da civil law. Isto é, no judicial review norte-americano o problema da lei inconstitucional resolve-se na mera interpretação, que leva à aplicação ou não daquela lei. Contudo, tal procedimento fere a doutrina da supremacia da lei e o princípio da separação dos poderes. Na civil law, o juiz está vinculado à lei criada pelo Legislativo, assim, se deixar de aplicar a lei, conforme manda o modelo difuso, estará extrapolando as funções cabíveis ao Judiciário, violando a competência do Poder Legislativo. Assim, salvo as Corte Constitucionais, todos os magistrados ordinários devem, no modelo concentrado de controle de constitucionalidade, ter as leis como válidas as leis existentes.[49]

Além de todos os fundamentos já trazidos, a adoção de uma nova instituição encarregada de realizar a verificação da constitucionalidade das leis contribui para a mudança da ideia do papel das novas Constituições. A partir do advento do Estado Democrático[50] de Direito a Constituição deixa de ter papel meramente programático – “apenas” delimitando o poder estatal, organizando a instituições públicas e dando diretrizes a serem seguidas pelos governos - e passa a ser diretamente invocável e aplicável. Recorre-se as palavras de STRECK ao analisar a criação de um controle concentrado na Europa continental:

“É razoável afirmar, nesse contexto, que sempre estiveram em jogo, de um lado, os pressupostos liberais, de preservação da legislação, onde o controle difuso-jurisdicional sempre assumiu enorme relevância, e de outro,as perspectivas político-jurídicas relacionadas à transcendência do problema da função do Direito. Ou seja, mais do que o problema da legitimidade (ou da ausência de legitimidade) de os juízes poderem dizer se uma lei é ou não constitucional, ganhou força o papel dirigente do constitucionalismo, através do qual a própria Constituição, fruto de um pacto constituinte-fundante de uma nova ordem, já por si só estabelecia os caminhos político-econômico-sociais do Estado (normas auto-executáveis, p.ex.). Para dar efetividade a tais normas, tornava-se absolutamente ineficiente um mecanismo meramente difuso de controlar a compatibilidade dos textos ordinários com a Constituição. Observe-se que as perspectivas que assumiram os tribunais no pós-guerra, onde a justiça constitucional assumiu papel preponderante, não guardam simetria com a idéia original kelsenina.”[51].

Face o alto teor político que caracteriza a decisão acerca da constitucionalidade, é conveniente afastar os juízes ordinários da tarefa de verificação da constitucionalidade. Uma vez que a norma constitucional aponta ações sobre o futuro e prescreve direitos desde já garantidos, a decretação de constitucionalidade se aproxima à atividade legislativa – por isso a criação de uma Corte Constitucional, fora do poder judiciário ordinário, que recebe a interferência da vontade geral através da participação do Legislativo na formação do Tribunal. CAPPELLETTI assim ensina sobre a matéria:

“As Constituições modernas não se limitam, na verdade, a dizer estaticamente o que é o direito, a ‘dar uma ordem’ para uma situação social consolidada; mas, diversamente das leis usuais, estabelecem e impõem, sobretudo, diretrizes e programas dinâmicos de ação futura. Elas contêm a indicação daqueles que são os supremos valores, as rationes, os Gründe da atividade futura do Estado e da sociedade: consistem, em síntese, em muitos casos, como, incisivamente, costumava dizer Piero Calamandrei, sobretudo em uma polêmica contra o passado e um programa de reformas em direção ao futuro.(...)A atividade de interpretação e de atuação da norma constitucional, pela natureza mesma desta norma, é, não raro, uma atividade necessária e acentuadamente discricionária e, lato sensu, eqüitativa. Ela é, em suma, uma atividade mais próxima, às vezes – pela vastidão de suas repercussões e pela coragem e a responsabilidade das escolhas que ela  necessariamente implica – da atividade do legislador e do homem de governo do que de juízes comuns:de maneira que pode-se bem compreender como Kelsen na Áustria, Calamandrei na Itália e outros não poucos estudiosos tenham considerado, ainda que, erradamente,em  minha opinião, dever falar aqui de uma atividade de natureza legislativa (‘Gesetzgebung’ ou, pelo menos, ‘negative Gesetzgebung’) antes de uma atividade propriamente jurisdicional.”[52]

Já no caso brasileiro temos um sistema jurídico filiado a família da civil law que adota, primordialmente, o sistema difuso de controle de constitucionalidade e que vai, ao longo de sua história constitucional, inserir institutos do modelo concentrado. Passar-se-á a uma análise de como se deu o desenvolvimento dos institutos de controle de constitucionalidade no Brasil.[53]

Sobre o autor
João Gabriel Figueiró Salzano

Advogado, formado pelo Centro Universitário Metodista do Sul

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALZANO, João Gabriel Figueiró. Garantia e controle da Constituição.: Sistemas e antecedentes históricos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4246, 15 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31498. Acesso em: 5 nov. 2024.

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