1 Introdução: Direitos fundamentais e os princípios constitucionais tributários
1.1Direitos Fundamentais e o estatuto do contribuinte
Sendo um estado de direito, a República Federativa do Brasil necessariamente deve dispor sobre direitos fundamentais em sua Constituição. Os direitos fundamentais do ser humano constituem o mínimo de dignidade assegurado à sociedade civil, podendo ser oponíveis legitimamente aos desígnios estatais. Na acepção de Canotilho, constituem a base antropológica do Estado.
"Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente a ingerência destes na esfera jurídica individual;(2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)". [1]
Os direitos fundamentais configuram o denominado estatuto do contribuinte quando dizem respeito à tributação, consubstanciando a idéia de Estado de Direito. Apenas através de sua observância atingiremos a tão almejada segurança jurídica tributária.
"As pessoas políticas, enquanto tributam, não podem agir de maneira arbitrária e sem obstáculo algum, diante dos contribuintes. Muito pelo contrário: em suas relações com eles, submetem-se a um rígido regime jurídico. Assim, regem suas condutas de acordo com as regras que veiculam os direitos fundamentais e que colimam, também, limitar o exercício da competência tributária, subordinando-o à ordem jurídica". [2]
"A Constituição diz mal quando intitula de principios gerais a seção I do Capítulo I do título VI, referindo-se ao sistema tributario nacional. Não há nela senão os princípios da personalização e o da capacidade contributiva, constante do art. 145, § 1º. Os princípios constitucionais gerais, especiais e específicos da tributação aparecem mesmo é na seção II, como expressão das limitações ao poder de tributar." [3]
"Sendo, como é, a relação de tributação uma relação juridica, e não simplesmente de poder, tem-se como induvidosa a existência de princípios pelos quais se rege. Dentre esses princípios destacamos aqueles que, em virtude de sua universalidade, podem ser considerados comuns a todos os sistemas jurídicos, ou pelo menos os mais importantes. São eles os princípios da legalidade, da anterioridade, da igualdade, da competencia, da capacidade contributiva, da vedacao de confisco e o da liberdade de trafego.
Tais princípios existem para proteger o cidadão contra os abusos do Poder. Em face do elemento teleológico, portanto, o intérprete, que tem consciência desta finalidade, busca nesses princípios a efetiva proteção do contribuinte" [4]
Os direitos fundamentais são disciplinados na Carta Política em vigor por vários artigos, estando imiscuídos pelo texto constitucional. Devemos destacar o artigo 5º da Lei Maior, onde está o principal rol, além de seu parágrafo segundo, que inclui no ordenamento constitucional: os direitos fundamentais decorrentes de tratados internacionais em que o Brasil seja parte; os decorrentes da forma e regime de governo adotados; e os princípios vetores da ordem jurídica pátria.
Desta forma, os princípios constitucionais tributários, ou, na terminologia do legislador constituinte, as limitações ao poder de tributar, são direitos fundamentais do ser humano sob a tutela do Estado brasileiro, podendo a ele serem oponíveis pleno iure. Ressalte-se que estão garantidos por cláusula pétrea, no art. 60, § 4º, IV, da CF/88, e por cláusula sensível, em seu art. 34, VII, alíneas b e e, não podendo o projeto de lei tendente a abolir um princípio constitucional tributário ser objeto de deliberação pelo Poder Legislativo.
1.2 Funções dos princípios constitucionais tributários
Através do princípio da legalidade estrita subordina-se a instituição de tributo, ou majoração de alíquota, à edição de lei (CF/88 art. 150, I). A. Smith, como aduz Deodato, nomeou-o "certeza. Esse princípio conduz à clareza da obrigação tributária; aos meios fáceis de ser conhecida essa legislação; à quantia certa que se deve pagar ao Fisco." [5]
"Concordamos, pois, com Pietro Virga, quando leciona que a tributação encontra três limites, a saber:
I- a reserva de lei: O tributo só pode ser cobrado por meio de lei. É o princípio fundamental que nenhuma exação pode ser exigida sem a autorização do Poder Legislativo (no taxation without representation);
II- a disciplina da lei: não basta que uma lei preveja a existência de um tributo, mas, pelo contrário, deve determinar seus elementos fundamentais, vinculando a atuação da Fazenda Pública e circunscrevendo, ao máximo, o âmbito de discricionariedade do agente administrativo;
III- os direitos que a Constituição garante: a tributação, ainda que se perfaça com supedâneo na lei, não pode contrastar com os direitos constitucionalmente assegurados." [6]
"Criar um tributo é estabelecer todos os elementos de que se necessita para saber se este existe, qual é o seu valor, quem deve pagar, quando e a quem deve ser pago. Assim, a lei instituidora do tributo há de conter: (a) a descrição do fato tributável; (b) a definição da base de cálculo e da alíquota, ou outro critério para o estabelecimento do valor do tributo; (c) o critério para a identificação do sujeito passivo da obrigação tributária; (d) o sujeito ativo da relação tributária, se for diverso da pessoa jurídica da qual a lei seja expressão da vontade." [7]
O princípio da anterioridade veda a cobrança de tributo no mesmo exercício financeiro no qual foi editada a lei que o criou, ou majorou a alíquota estipulada (art. 150, III, b da CF/88).
A igualdade tributária decorre da isonomia de todos perante a lei, sendo garantia de tratamento uniforme pelo Fisco, desde que os contribuintes se encontrem em situações iguais (art. 150, II, CF/88).
O princípio da capacidade contributiva está previsto no art. 145, § 1º, CF/88, devendo ser observado sempre.
A vedação de utilização do tributo como confisco gera ao Judiciário o poder de controlar os ímpetos fiscais exacerbados do Estado.
Muitas são as peculiaridades das limitações ao poder de tributar, mas analisá-las foge ao escopo do presente trabalho, motivo pelo qual ressaltamos o aspecto comum a todas elas, qual seja, a imposição de regras claras e certas para legitimar a tributação.
Sendo propriedade privada direito fundamental, a exação que não observar os princípios e ditames constitucionais se caracterizará em exercício irregular do poder de tributar, passível de correição pelo Judiciário.
O contribuinte deve poder arcar com o ônus tributário. A obrigação tributária é compulsória, atinge seu patrimônio independente de sua vontade, mas não pode levá-lo à uma perda patrimonial indevidamente.
" Os princípios subordinam a lei, e o Poder Legislativo não escapa ao controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário, guarda da Constituição, desde que acionado pelos justiçáveis, isto é, os cidadãos." [8]
Esta é a razão do rigor formal e material na criação de tributos: o Estado de Direito respeita a propriedade privada através de uma atividade fiscal adstrita aos contornos da legalidade estrita.
"A Declaração Universal dos Direitos do Homem reconhece a todas as pessoas, individual ou colectivamente, o direito à propriedade (art. 17º, n.º 1); mas a expressão oferece-se tão vaga que aí podem caber divergentes opões político-constitucionais; mais precisa é a garantia contra privações arbitrárias da propriedade (art. 17º, n.º 2)." [9]
A previsão de tributo deve estar na Constituição, que especificará o ente estatal com competência tributária. Suas regras gerais serão disciplinadas por lei complementar, se assim exigir a Carta Política, e deverá ser editada lei ordinária para dispor sobre base de cálculo e alíquota, além de outros detalhes. O tributo que não observar a legalidade estrita estará eivado de vício insanável, passível de ser declarado inconstitucional pelo Poder Judiciário por afronta à propriedade privada.
Os direitos fundamentais formam um sistema harmônico, onde não há espaço para incompatibilidades. O Fisco deve velar pela segurança jurídica tributária ao interpretar e aplicar as disposições legais, sob o regime jurídico administrativo.
Deve-se interpretar as leis através do "método sistemático, momento em que o intérprete se volta para o sistema jurídico para observar, detidamente, a regra em cotejo com a multiplicidade dos comandos normativos que dão sentido de existência ao direito positivo. É nesse intervalo que o exegeta sopesa os grandes princípios, indaga dos postulados que orientam a produção das normas jurídicas nos seus vários escalões, pergunta das relações de subordinação e coordenação que governam a coexistência das regras. O método sistemático parte, desde logo, de uma visão grandiosa do direito e intenta compreender a lei como algo impregnado de toda pujança que a ordem jurídica ostenta." [10]
A fim de editar normas tributárias, o Estado deve observar o processo legislativo específico para cada instituto, conforme o texto constitucional. Não é o ADCT meio hábil para estipulação de normas tributárias, pois no direito tributário vige a certeza jurídica e não a efemeridade, principal característica deste ordenamento constitucional acessório.
"A técnica de redação das Disposições transitórias é diversa da técnica redacional da parte permanente. Não há divisão da matéria em Títulos, Capítulos ou Seções, de modo a agrupar em cada um os assuntos diferenciados. Os temas são tratados indistintamente, sem a preocupação de ordenação, unidade e sistematização. É o terreno do depósito residual, da miscelânia e da mistura normativa. O traço que aproxima as normas heterogêneas é a temporariedade e a transitoriedade. São normas que vão desaparecer. Esse desaparecimento que as torna mais efêmeras ou de menor duração no tempo advirá do prazo afixado para cumprimento de atos ou de determinações do constituinte ou, ainda, pela sucumbência do tempo do direito, da garantia ou da situação assegurada aos respectivos titulares e que findarão com eles. Norma permanente nas Disposições Transitórias é norma anômala. Foi dessa categoria o conhecido art. 180 da Carta de 1937, que prevendo competência transitória do Presidente da República – "enquanto não se reunir o Parlamento Nacional"-, como a condição não se verificou na vigência da Carta de 1937, o art. 180 tornou-se regra permanente, para fundamentar a pletórica atividade legislativa do Presidente da República na via dos Decretos-leis." [11]
"A Constituição é a lei básica da organização politica. Nos governos presidenciaes, essa preeminencia da Constituição tem um caracter mais imperioso. Por isso, o poder judiciario é chamado a velar por sua inviolabilidade, decretando a inefficacia dos actos do legislativo ou do executivo, que infringirem seus preceitos" [12]
Assim, a função precípua dos princípios constitucionais tributários é afastar a incerteza jurídica, impossibilitando exações inesperadas e fora da técnica tributária. Sua não observância é inconstitucionalidade a ser apurada e combatida pelo Poder Judiciário.
2 A instituição da CPMF
Através da Emenda Constitucional n.º 12/96 foi acrescentado o art. 74 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que autorizava a União instituir, por dois anos, a CPMF, cuja alíquota seria de 0,25 %. Passou o ADCT, então a regrar o sistema tributário nacional, trazendo inclusive hipótese de exceção à necessidade de lei complementar para o exercício da competência residual da União para instituir impostos, veiculada em norma instituidora de uma contribuição provisória para financiar ações e serviços de saúde.
Estava regrada infra-constitucionalmente pelas Leis 9.311/96 e 9.539/97, cuja vigência terminou em 23.01.1999.
Em 18.03.1999 foi editada a EC 21/99, "prorrogando" a cobrança instituída por meio das leis mencionadas, que são temporárias, alterando-as. Modificou-se novamente o ADCT, desta vez para nele o art. 75, que regula a exação por CPMF. Este dispositivo prorroga a cobrança da referida contribuição por trinta e seis meses, majorando sua alíquota para 0,38 % nos primeiros doze meses de vigência, alterando-a partir de então para 0,30 % até implemento do termo. O produto da arrecadação destina-se ao custeio da Previdência Social, e não mais somente à saúde, como previa o art. 74 do ADCT.
Entretanto, há evidente desvio na destinação da receita apurada. "O que era desconfiança tornou-se certeza quando o Ministro da Saúde José Serra veio a público dizer "só um louco ululante acreditaria que a CPMF foi usada para aumentar as verbas da saúde", comenos em que asseverou que a equipe econômica, com uma mão repassou aos cofres da saúde os 8 bilhões anuais da CPMF e com a outra tirou quase a mesma quantia do orçamento do ministério. Destarte, veio à baila que realmente o governo não deu, não dá e não dará a destinação correta prevista em lei ao volume de dinheiro arrecadado a título de CPMF, mostrando a total falta de metas, prioridades, controle, fiscalização, transparência e gestão dos recursos pelas áreas previstas nas diretrizes orçamentárias, tudo em flagrante violação do artigo 195, § 2º, da CF." [13]
3 Irregularidades no tributo denominado CPMF
3.1 Natureza jurídica duvidosa
Inobstante ter o nomen iuris "contribuição" para prover o Fundo Nacional da saúde e a previdência social (art. 74, § 3º, c/c art. 75, § 2º, do ADCT), trata-se de imposto inominado decorrente do exercício de competência residual da União (154, I, CF/88). Isto porque a renda decorrente de contribuição deve ser necessariamente vinculada. Somente os impostos são não vinculados a uma contraprestação estatal, visando custear o serviço público em geral. Em assim não sendo, patenteada está a bitributação, pois a CPMF não se encontra prevista no art. 195, CF/88, que estipula quais serão as contribuições para custeio da saúde e previdência social.
Mas, configurada a natureza de imposto, a CPMF configura flagrante anomalia tributária, pois não há edição de lei complementar para sua criação, como exige o art. 154, I, CF/88. Tal discussão gera perplexidade ao cidadão comum e às instituições privadas, pois não se consegue situar tecnicamente a legitimidade da exação, gerando desconfiança e inquietação quanto à edição de normas tributárias, contaminando a obediência de todo o sistema tributário.
"Desobediência a leis e a ordens "iníquas", "imorais", "desarrazoadas", ou "antinaturais" tem sido um problema perene da humanidade. O gênio da humanidade tentou, agora, traduzir este problema em termos de "constitucionalidade", afirmando o direito de não seguir os preceitos das leis e ordens inconstitucionais" [14].
3.2 Ofensa aos princípios constitucionais tributários
A CPMF foi instituída sem o menor apego à técnica fiscal. A atividade tributária é vinculada à lei, cujos preceitos não foram obedecidos, senão vejamos:
3.2.1 O princípio republicano.
Ao instituir um tributo por ADCT e por leis temporárias, houve afronta ao princípio republicano, pois tal cobrança foi fruto de Emenda Constitucional tendente a suprimir os direitos fundamentais, caracterizados pelos princípios constitucionais tributários, o que não se coaduna com a vontade popular. Os tributos devem obedecer rigoroso sistema normativo, e não ser instituído mediante lex ad tempum ou por ADCT, mas sim após exaurida deliberação parlamentar sobre projeto de lei, complementar ou ordinária, que, somente após a sanção do Presidente da República, terá validade como lei em vigor apta a legitimar a cobrança do novo tributo no exercício financeiro posterior ao em que foi editada.
Republica est res populi. "Assim, em rigor, os legisladores e os membros eleitos do Poder Executivo só são detentores do poder político em nome do povo, no exercício de um mandato. É oportuno desde já esclarecermos que este poder político há de ser exercido em perfeita sintonia com a Constituição e as leis, sob pena de os infratores serem submetidos a sanções penais, civis, políticas e legislativas". [15]
3.2.2 Capacidade contributiva
Como a alíquota da CPMF é proporcional, atinge pessoas economicamente desiguais de forma idêntica. Destarte, ao contrário da progressividade, que deveria ter sido observada caso fosse criada por um tributo bem estruturado, a alíquota proporcional da CPMF constitui afronta ao princípio da capacidade contributiva. " Todos aqueles que realizarem movimentações financeiras serão tributados em iguais proporções, tendo que pagar a mesma alíquota, independentemente de suas condições financeiras". [16]
"O princípio da capacidade contributiva informa a tributação por meio de impostos. Intimamente ligado ao princípio da igualdade, é um dos mecanismos mais eficazes para que se alcance a tão almejada Justiça Fiscal.
É por isso que, em nosso sistema jurídico, todos os impostos, em princípio, devem ser progressivos. Por quê? Porque é graças à progressividade é que eles conseguem atender ao princípio da capacidade contributiva.
Melhor esclarecendo, as leis que criam in abstracto os impostos devem estruturá-los de tal modo que suas alíquotas variem para mais à medida em que forem aumentando suas bases de cálculo. Assim, quanto maior a base de cálculo do imposto, tanto maior deverá ser a sua alíquota". [17]
3.2.3 Estrita legalidade
Os tributos só podem ser criados, majorados ou extintos mediante lei ordinária, e somente esta lei pode definir o fato gerador da obrigação tributária principal, fixar a alíquota e sua base de cálculo, conforme art. 97 do CTN. Exige-se, entretanto, lei complementar para a criação de impostos residuais da União, empréstimos compulsórios e contribuições sociais do art., 195, § 4º, CF/88.
"No direito positivo pátrio o assunto foi levado às últimas conseqüências, já que uma interpretação sistemática do Texto Magno revela que só a lei ordinária (lei em sentido orgânico-formal) pode criar ou aumentar tributos. Dito de outro modo, só a lei – tomada na acepção técnico-específica de ato do Poder Legislativo, decretado com obediência aos trâmites e formalidades exigidos pela Constituição – é dado criar ou aumentar tributos.
Lembramos que, entre nós, existe um princípio de submetimento do legislador à constituição; é ele que determina a própria validade da lei.
As leis só são válidas quando produzidas dentro da Constituição, e além disso, de acordo com seus grandes princípios." [18]
Destarte, a exação via CPMF constitui ilegalidade, pois, em afronta aos princípios constitucionais tributários, está regulada por ADCT via EC 21/99. "Não existe, assim, previsão para instituição de tributo através de Emenda Constitucional". [19]
Por esta EC procura o legislador prorrogar as leis 9.311/96 e 9539/97, que possuem tempo certo de vigência, já expirado. Isto se dá apesar da vedação inserida na LICC, art. 2º, caput, principio, que determina a impossibilidade de lei temporária ter sua vigência estendida além do prazo por ela estipulado(art. 101 do CTN).
"Por outro lado, de acordo com o disposto no art. 48, I, da Carta da República, cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, dispor sobre os tributos de competência da União, disposição essa que aponta no sentido de que a emenda à Constituição não é meio apropriado para disciplinar os tributos que se encaixem na competência da União (como por exemplo a CPMF), uma vez que, à diferença das leis, a emenda não se submete á sanção do chefe do Poder Executivo – ou seja, é promulgada pelo Congresso." [20]
Vejamos o seguinte trecho de acórdão em que foi indeferida a pretensão dos agravantes de cancelar a cobrança de CPMF:
"Em atenção aos princípios da tipicidade e legalidade tributária, a norma tributária deve ser instituída e modificada por lei stricto sensu. Verifica-se, no entanto, ao examinar-se a Constituição Federal de 1988, que em várias oportunidades o legislador constituinte não apenas indicou a regra-matriz do tributo, mas estabeleceu elementos integrantes do próprio tipo tributário, v.g. o disposto no artigo 153, § 5º da Carta Constitucional.
A emenda constitucional, expressão do poder constituinte derivado, encontra seus lindes na própria Constituição, em especial no art. 60, §§ 4º e 5º, não existindo, todavia, impedimento para veicular matéria tributária, desde que observados os princípios constitucionais da ordem tributária. Destarte, nada obsta que disponha sobre base de cálculo e alíquota de tributo, apesar de não ser de melhor técnica, já que a lei, ordinária ou complementar, quando assim o exigir a Constituição, seria o instrumento normativo natural para este fim." [21]
Note-se que, mesmo indeferindo o pedido principal, aqui o egrégio TRF 3ª Região evidenciou os princípios constitucionais tributários, especialmente a legalidade tributária. No meu entendimento, ao afirmar que é necessário a observância dos princípios constitucionais tributários, o colendo TRF realiza argumentação contraditória, pois não há legalidade mitigada: as Emendas Constitucionais não podem versar sobre limitações ao poder de tributar. Neste sentido, vejamos o posicionamento do preclaro Raul Machado Horta:
"As limitações do § 4º do art. 60 da Constituição são limitações materiais explícitas, assim configuradas na sede da norma constitucional. Essas limitações não exaurem as linhas da demarcação intransponível pelo poder de emenda. Há outras limitações difundidas nas regras constitucionais e de cuja pesquisa se recolherá o conjunto das limitações constitucionais implícitas. Integram essa categoria os fundamentos do Estado democrático de Direito (art. 1º, I, II, III, IV, V); o povo como fonte de poder (art. 1º, parágrafo único); os objetivos fundamentais da República Federativa (art. 3º, I, II, III, IV); os princípios das relações internacionais (art. 4º, I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, parágrafo único); os direitos sociais (art. 6º); a autonomia dos Estados Federados (art. 25); a autonomia dos Municípios (art. 29, 30,I,II,III); a organização bicameral do Poder Legislativo (art. 44); a inviolabilidade dos Deputados e Senadores (art. 53); as garantias dos Juízes (art. 95, I, II, III); a permanência institucional do Ministério Público (art. 127) e de suas garantias (art. 128, I, a, b, c); as limitações do Poder de Tributar (art. 150, I, II, III, a, b, IV, V, VI, a, b, c, d, art. 151); e os princípios da Ordem Econômica (art. 170, I a IX, parágrafo único)." [22]
3.2.4 Anterioridade
Por não se encontrar expressamente no rol do art. 195 da CF/88, à CPMF não se pode aplicar a não incidência do princípio da anterioridade. A vedação de cobrança de tributo no mesmo exercício financeiro em que foi criado ou majorado caracteriza direito fundamental dos contribuintes, sendo sua única exceção o parágrafo sexto do citado dispositivo.
"Ora, tendo a CPMF sede constitucional diversa, qual seja, os artigos 74 e 75 do ADCT, não lhe pode ser aplicada a anterioridade mitigada prevista no artigo 195, que, ao prever exceção ao princípio da anterioridade geral constante no art. 150, III, b, deve ser interpretada, como convém às normas excepcionais, de forma restrita e não de forma ampla, de modo que nenhuma exação prevista em outro dispositivo constitucional que não o artigo 195 submeta-se à anterioridade especial aplicável a este artigo." [23]
Assim, a cobrança de CPMF só poderia ser efetivada no exercício financeiro subsequente ao que foi criada, e não noventa dias depois de sua instituição como ocorreu. Tal irregularidade torna ilegítima a exação, e por si só leva à conclusão que a CPMF deve ser extirpada de nosso ordenamento jurídico pelo Poder competente, por ofensa à CF/88, art. 150, III, b, e ao CTN, art. 104.
3.2.5 Vedação de confisco
A prorrogação da CPMF caracteriza uma tentativa desesperada de aumentar as receitas públicas, ao invés de o Estado combater a sonegação fiscal e as improbidades administrativas.
"As ilegalidades são tantas que podem ser vistas de acordo com a tese adotada, pois, para os juristas que entendem ser a contribuição social um tributo vinculado a uma atuação do Poder Público, o que lhe retira a natureza de imposto, não estando abrangido, consequentemente, pelo princípio da capacidade contributiva, por Ter o contribuinte, doravante, após a entrada em vigor da EC 21, que pagá-la todas as vezes que movimentar suas contas bancárias, destinando os valores à Previdência Social, ferido de morte está, no caso versando, o princípio da retributividade ou remuneração do benefício (taxa de serviço). Sim, porque o dinheiro arrecadado, em tese, custeará uma previdência que jamais irá socorrer o contribuinte na doença e/ou velhice"
"Em continuidade, a CPMF possui a mesma base de cálculo do IOF, o que é vedado pelo artigo 154, I da Constituição". [24]
Se considerada imposto, a CPMF incide em bitributação em face do IOF. Considerando-a contribuição, como não está prevista no art. 195, § 6º, CF/88, com a sua criação a União invade a competência dos demais entes federativos, preservada pelo § 1º do art. 195 da CF/88. Sua ilegalidade é patente, salta aos olhos dos intérpretes e operadores do direito.
" De evidência que qualquer excesso impositivo acarretará em cada um de nós a sensação de confisco. Porém, o difícil é detectarmos os limites. Haverá sempre uma zona nebulosa, dentro da qual as soluções resvalarão para o subjetivismo" [25]
Está implícito em nosso ordenamento jurídico o princípio da certeza do direito. Conforme o ínclito Barros Carvalho, "o sistema empírico do direito elege a certeza como postulado indispensável para a convivência social organizada".
A criação da CPMF e sua atual normatização via ADCT não observa os pressupostos exigidos pela Constituição ao regular a exação válida. Assim, tal tributo tem natureza confiscatória, pois não se adequa ao sistema tributário pátrio, pelos motivos neste trabalho sintetizados.
3.2.6 Outros vícios
Podemos ressaltar, ainda, que a CPMF deveria estar extinta desde 23.01.1993, data em que expirou a vigência da lei 9.311/96, alterada pela lei 9.539/97. Assim, o art. 75 do ADCT não poderia "prorrogar" uma lei que já perdera vigência, em razão de ser temporária por natureza.
Por fim, não foi observado o trâmite legislativo pertinente para elaboração de tributos (decorrente da legalidade estrita), principalmente a edição de lei complementar. Vislumbra-se, ainda, que a EC 21/99 "não foi objeto de reapreciação pelo Senado," [26] o que caracteriza afronta aos arts. 60, § 2º e 65, § único, da lex legum
Tais motivos caracterizam a irregularidade da cobrança da CPMF, e, por conseguinte, imposição de excessiva e ilegal onerosidade nas operações financeiras privadas, com reflexos nos contratos e movimentações bancárias.
Vejamos o seguinte trecho de posicionamento jurisprudencial, decisão exarada pela MM Juíza Federal titular da 1ª Vara de São Paulo no MS n.º 1999.61.00.113442-6, transcrito no Repertório IOB de Jurisprudência n.º 9/99, caderno 1, p. 270:
"1...
Aponta como eivas de inconstitucionalidade da CPMF: bitributação, pela incidência sobre a mesma base de cálculo das contribuições sociais existentes, infringência ao art. 195 § 1º da C.F. pois a fonte de financiamento da CPMF ali não se insere, violação ao art. 154, inc. I da C.F. pois é cumulativa, inobservância do princípio da isonomia ao isentar pelo critério de renda.
Discriminando os argumentos de convicção finaliza pelo pedido para que se suspenda a exigibilidade da exação, sobre cada cheque emitido, ou operações financeiras, junto aos Bancos com os quais opera, assegurando-se a eficácia do processar e obstando a imposição de sanções fiscais.
2. Quando o impetrante alega inconstitucionalidade de lei, com argumentos substanciais e razoáveis, e, ainda discrimina violação a vários princípios constitucionais, é de ser ter por presente plausibilidade do direito invocado, a justificar deferimento de cautela para que fique assegurada a eficácia do pleito.
A possibilidade de dano irreparável é latente porquanto se recolhe exação que se considera inconstitucional somente a recupera pela via do solve et repete, em outra ação judicial que finaliza pelo exaustivo precatório.
3.Sob o crivo do expendido DEFIRO a liminar, com efeitos até a decisão final, para suspender a exigibilidade da CPMF nas movimentações financeiras da impetrante".
"Tanto no âmbito interno, quanto externo, a incidência desse tributo se revela inadequada para a persecução de seus fins e desastrosa para a economia; e, de outro lado, consubstancia desvio de poder por parte do Executivo, na utilização do tributo para a captação de recursos e disciplinamento da economia interna.
Ao Judiciário incumbe proteger os direitos dos cidadãos, no interesse de toda a coletividade, contra a ação estatal que se revele incompatível com o interesse público."(Agravo de Instrumento n.º 97.03.030522-9, trecho do despacho da Juíza relatora Ana Scartezzini, TRF 3ª Região, in Revista Dialética de Direito Tributário n.º 24, p. 177.).
Ante às considerações ora suscitadas, continuam sem respostas as questões levantadas por Alexandre Barros Castro e Alexandre Valli Pluhar [27]:
"A situação agora existente, por força da EC 21/99, é absurda e absolutamente inconsistente do ponto de vista da lógica jurídica. Em verdade, o que almejou o legislador constitucional foi conceder uma sobrevida à CPMF. È de se questionar: como pretender tal intento, se de há muito tal exação já houvera sido afastada do arcabouço constitucional? Em outras palavras, como querer prorrogar a vida de algo que já morrera?"