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O dever de transparência e a publicação de dados referentes à remuneração dos servidores públicos

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Agenda 01/01/2015 às 14:39

Aborda-se a constitucionalidade da publicação de dados referentes à remuneração dos funcionários públicos em sites na internet. O princípio da publicidade e o direito à privacidade precisam ser conciliados.

INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende abordar uma relevante questão no que tange ao direito administrativo e constitucional. Trata-se da constitucionalidade da publicação de dados referentes à remuneração dos funcionários públicos em sites na internet.

Note-se que o tema em estudo não é a publicação de dados gerais sobre o orçamento (valor total das despesas de custeio, valor do subsídio por categoria, gasto global com pessoal, etc.).

O que se pretende analisar é a constitucionalidade da publicação de dados individualizados da remuneração de cada servidor público.

É evidente que, diante da Constituição Federal de 1988, especialmente artigo 37, a publicidade, além de um dever, é um direito de cada cidadão. A transparência de todos os atos administrativos ganhou importância com a promulgação da Constituição de 1988.

A transparência de todos os atos administrativos garante a ciência de como é feita a condução da coisa pública e, acima de tudo, a possibilidade da sociedade fiscalizar os atos praticados pela administração.

Contudo, como todo texto Constitucional, os dispositivos que veiculam o dever de publicidade precisam ser compatibilizados com os demais deveres e direitos elencados no texto magno.

O artigo 5º da Constituição Federal garante, como direito individual, a proteção da intimidade e da vida privada. A questão que se coloca é: como conciliar o dever de transparência com o direito à intimidade e vida privada?

A publicação de dados individualizados da remuneração dos funcionários públicos implica violação do direito à intimidade e vida privada, ou está fundamentada no dever de transparência?

Para melhor estudar o tema em questão, houve concentração nas normas legais que tratam da publicação de dados relativos a funcionários públicos federais, embora as premissas aqui fixadas sejam aplicáveis em qualquer esfera de governo.


1  DO DEVER DE TRANSPARÊNCIA

A Constituição Federal de 1988, inaugurou um novo marco jurídico no Brasil, bem como iniciou uma nova fase na sociedade. Encerrou-se o período no qual a publicidade (transparência) era vista como algo desnecessário e teve início o período em que a transparência, além de um direito, é um dever.

Inspirado pelo Princípio Republicano, o princípio da publicidade (artigo 37 da Constituição Federal) pretende garantir que o titular e destinatário do poder (o povo) fiscalize cada passo da administração.

A solução adotada pela Constituição Federal não poderia ter sido outra. Se a administração pública foi criada para garantir o bem comum, impossível manter os atos administrativos sob sigilo. Aliás, sigilo de quem, se, como dito, o povo é titular e destinatário do poder?

Sobre o dever de publicidade criado pela Constituição Federal, José Afonso da Silva assim se manifesta:

A publicidade sempre foi tida como um princípio administrativo, porque se entende que o Poder Público, por ser público, deve agir com a maior transparência possível, a fim de que os administrados tenham, a toda hora, conhecimento do que os administradores estão fazendo. Especialmente exige-se que se publiquem atos que devam surtir efeitos externos, fora dos órgãos da Administração.

[...]

Agora é a Constituição que a exige. Em princípio, por conseguinte, não se admitem ações Sigilosas da Administração Pública, por isso mesmo é pública, maneja coisa pública, do povo (publicum = populicum = pupulum; público = do povo)[1].

A lição do mestre José Afonso da Silva fundamenta o exposto até o momento. Vale dizer, a publicidade dos atos da administração é uma decorrência lógica da própria estrutura de poder vigente. Se o poder emana e é destinado ao povo, a publicidade dos atos da administração é a regra, sob pena do titular e destinatário do poder não ter ciência da condução da coisa pública.

É evidente que, como toda norma constitucional, a publicidade não é um direito absoluto. Há restrições à publicidade no próprio texto constitucional. Um exemplo são as normas relativas à segurança nacional.

Note-se que esse tipo de restrição à publicidade não implica inconstitucionalidade. A finalidade da restrição é evitar o uso indevido da própria publicidade e, em última análise, garantir a estabilidade da sociedade, o que justifica a restrição.

Portanto, a restrição da publicidade só tem lugar quando existir fundamentação idônea, sendo certo que, nesses casos, a publicação dos atos poderia gerar danos a outros bens juridicamente relevantes como, por exemplo, a segurança nacional. Fora dessas hipóteses, não há que se falar em restrição da publicidade.

No que tange ao presente artigo, é preciso determinar se o direito constitucional à intimidade e vida privada constitui fundamento suficiente para restrição da publicidade de dados da administração pública (remuneração individualizada dos servidores).


2  DO DIREITO À INTIMIDADE E VIDA PRIVADA

A Constituição Federal de 1988 estabelece, no artigo 5º, a proteção à intimidade e vida privada:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

José Afonso da Silva, ao estudar o dispositivo Constitucional acima transcrito, faz importante observação:

O dispositivo põe, desde logo, uma questão, a de que a intimidade foi considerada um direito diverso dos direitos à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, quando a doutrina os reputava, com outros, manifestação daquela. De fato, a manifestação não é precisa. Por isso, preferimos usar a expressão direito à privacidade, num sentido genérico e amplo, de modo a abarcar todas essas manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade, que o texto constitucional em exame consagrou. Toma-se, pois, a privacidade como ‘o conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem a isso poder ser legalmente sujeito. A esfera de inviolabilidade, assim, é ampla, abrange o modo de vida doméstico, nas relações familiares e afetivas em geral, fatos, hábitos, local, nome, imagem, pensamentos, segredos, e, bem assim, as origens e planos futuros do indivíduo[2].

Diante do ensinamento acima transcrito, é possível concluir que a Constituição garante, como direito fundamental, o direito à privacidade (intimidade e vida privada). Ou seja, garante ao cidadão a proteção das informações relacionadas à vida privada, tais como modo de vida doméstico, nas relações familiares e afetivas em geral, fatos, hábitos, etc.

É importante destacar que, diante do texto magno, não se pode restringir a privacidade aos dados sigilosos, como se todos os demais dados estivessem sujeitos à publicidade.

Há leis ordinárias que garantem, expressamente, o sigilo de determinados dados (por exemplo, dados bancários). Esses dados, sem qualquer dúvida, somente podem ser manipulados pelo cidadão e não estão sujeitos à publicidade, salvo exceções legais (por exemplo, ordem judicial).

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A inexistência de norma reputando determinado dado como sigiloso não autoriza afirmar que se trata de dado público de livre acesso. Isso porque algumas informações estão ligadas diretamente ao indivíduo e dessa forma, protegidas pelo direito à intimidade, independente de norma legal expressa. O fundamento é a própria Constituição Federal.

Yussef Said Cahali trata da questão em comento com precisão:

o direito ao resguardo existe em toda a sua extensão; e tal direito não está circunscrito à esfera daquilo que deve permanecer inacessível ao conhecimento de outros, isto é, secreto; mas, compreende, sim, o que, embora acessível ao conhecimento alheio, não deve ser indiscretamente difundido. Pense-se, p.ex., em certos dados do Registro Civil, como seja a idade de uma senhora ou de uma menina que, apesar de resultarem oficialmente do registro civil, não devem ser indiscretamente divulgados[3]

Conclui-se, portanto, que todo dado sigiloso é protegido pelo direito constitucional à privacidade, mas o direito à privacidade não está restrito aos dados que a lei reporta como sigilosos. É preciso verificar, em cada caso concreto, se a informação diz respeito à esfera privada do cidadão. Se a resposta for afirmativa, há a incidência do direito à intimidade, independente de norma legal expressa.

Note-se que inexiste direito constitucional absoluto. Portanto, mesmo o direito à privacidade pode ser restringido, desde que exista proporcionalidade e fundamento suficiente para tanto.

Um exemplo, é a permissão judicial para interceptação das conversas telefônicas. É evidente que as conversas telefônicas estão protegidas, em última análise, pelo direito à intimidade. Contudo, também é inquestionável que esse direito pode ser restringido diante da necessidade de combater graves infrações penais.

Portanto, apesar de direito individual, a intimidade não é um direito absoluto e, com fundamento na proporcionalidade, pode ser restringida.

A questão que se coloca é, em nome da transparência dos atos da administração, é possível (proporcional, razoável) restringir o direito à intimidade dos servidores públicos e tornar disponíveis dados individualizados sobre a remuneração?


3 DA LEI FEDERAL DE ACESSO À INFORMAÇÃO

Com fundamento no dever de publicidade dos atos administrativo, foi promulgada, em 2011, a lei de acesso à informação (Lei nº 12.527). A justificação do Projeto de Lei 219/2003 (que deu origem à Lei 12.527/2011) afirma:

Um dos pontos de honra da moderna democracia é o compromisso de transparência da Administração Pública. Verifica-se, por isso, uma tendência crescente para que os estados modernos busquem o estabelecimento de leis que garantam ao cidadão o pleno conhecimento das ações do governo, da estrutura, missão e objetivos de seus órgãos, e sobre qual é o resultado final da equação representativa da aplicação de recursos públicos em confronto com os benefícios reais advindos à comunidade.

O instrumento para que se atinja tal desiderato é atribuição, a qualquer do povo, do direito de indagar e obter informações dos órgãos públicos que garantam a constante e plena sintonia com os princípios da moralidade, da publicidade, da impessoalidade, da legalidade e da eficiência. Tal direito deve ser assegurado, tanto para proteger legítimos interesses pessoais quanto para, de modo geral, estimular o correto desempenho administrativo. Nosso ordenamento jurídico se ressente de uma legislação incisiva sobre o assunto, reduzido que está ao mandamento do direito à informação, inscrito no art. 5º, XXXIII, da Constituição Federal, e a normas esparsas em diversos diplomas legais. O tratamento mais objetivo que pretendemos dar a matéria proporcionará um arcabouço legal de apoio ao cidadão e de garantia de transparência, a exemplo das legislações de diversos países, dentre as quais citamos o Freedom Information Act (Ato da Liberdade de Informação), dos Estados Unidos da América; a Lei nº 65/93 – Acesso os Documentos da Administração (Administração Aberta), da República Portuguesa; a Lei nº 78-753 – Medidas para melhoria das relações entre a administração e o público e diversas disposições de ordem administrativa, social e fiscal, da República Francesa; o artigo 37 da Lei nº 30/1992 – Regime Jurídico das Administrações Públicas e do Procedimento Administrativo Comum, do Reino de Espanha, e finalmente, cuja citação por último deve-se a sua recente edição, a Lei Federal de Transparência e Acesso à Informação Pública Governamental, promulgada no México a 10 de junho de 2002.

[...]

Estas as razões que nos levam ao oferecimento do presente projeto, cuja aprovação representará passo importante na busca da democracia plena e do aperfeiçoamento de nossas instituições.

A transcrição da justificação do projeto de lei que, anos mais tarde, gerou a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) demonstra que o escopo do legislador ordinário foi garantir a eficácia plena do princípio constitucional da publicidade.

Apesar dos méritos inegáveis do legislador ordinário, alguns aspectos demandam uma análise mais detida.

Os artigos 7º e 8º da Lei 12.527/2011 determinam:

Art. 7o O acesso à informação de que trata esta Lei compreende, entre outros, os direitos de obter: I - orientação sobre os procedimentos para a consecução de acesso, bem como sobre o local onde poderá ser encontrada ou obtida a informação almejada; II - informação contida em registros ou documentos, produzidos ou acumulados por seus órgãos ou entidades, recolhidos ou não a arquivos públicos; III - informação produzida ou custodiada por pessoa física ou entidade privada decorrente de qualquer vínculo com seus órgãos ou entidades, mesmo que esse vínculo já tenha cessado; IV - informação primária, íntegra, autêntica e atualizada; V - informação sobre atividades exercidas pelos órgãos e entidades, inclusive as relativas à sua política, organização e serviços; VI - informação pertinente à administração do patrimônio público, utilização de recursos públicos, licitação, contratos administrativos; e VII - informação relativa: a) à implementação, acompanhamento e resultados dos programas, projetos e ações dos órgãos e entidades públicas, bem como metas e indicadores propostos; b) ao resultado de inspeções, auditorias, prestações e tomadas de contas realizadas pelos órgãos de controle interno e externo, incluindo prestações de contas relativas a exercícios anteriores. 

[...]

Art. 8o É dever dos órgãos e entidades públicas promover, independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências, de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas.

Pretendendo regulamentar os referidos artigos legais, foi promulgado o Decreto nº 7.724/2012, nos seguintes termos:

Art. 7o É dever dos órgãos e entidades promover, independente de requerimento, a divulgação em seus sítios na Internet de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas, observado o disposto nos arts. 7  e 8o da Lei no12.527, de 2011. § 1o Os órgãos e entidades deverão implementar em seus sítios na Internet seção específica para a divulgação das informações de que trata o caput. § 2o Serão disponibilizados nos sítios na Internet dos órgãos e entidades, conforme padrão estabelecido pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República: [...] §3o Deverão ser divulgadas, na seção específica de que trata o §1o, informações sobre: [...]

VI-remuneração e subsídio recebidos por ocupante de cargo, posto, graduação, função e emprego público, incluindo auxílios, ajudas de custo, jetons e quaisquer outras vantagens pecuniárias, bem como proventos de aposentadoria e pensões daqueles que estiverem na ativa, de maneira individualizada, conforme ato do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão;

[...]

§ 4o As informações poderão ser disponibilizadas por meio de ferramenta de redirecionamento de página na Internet, quando estiverem disponíveis em outros sítios governamentais.

Seria possível afirmar que, no caso em análise, o Decreto nº 7.724/2012 (artigo 7º, §2º, VI) seria o fundamento legal suficiente para a publicação de dados individualizados da remuneração dos servidores (no caso, os federais).

Contudo, essa não parece ser a melhor solução frente ao direito vigente. Inexiste determinação legal (Lei 12.527/2011) para publicação do valor individualizado do salário do funcionário público.

Os dispositivos do Decreto nº 7.724/2012 que determinam a publicação individualizada de dados da remuneração dos funcionários públicos estão eivados de vício de ilegalidade, na medida em que extrapolam a função regulamentar e criam normas não previstas em lei.

Se a Lei 12.527/2011 não determina a publicação de dados individualizados da remuneração dos funcionários, o Decreto que a regulamenta não poderia dispor de forma diversa.

Também não parece correto o argumento que afirma que, dentro do âmbito regulamentar, seria possível ao decreto determinar a publicação de dados individualizados das remunerações dos servidores públicos, na medida em que a autorização genérica da lei de acesso à informação já seria suficiente. Isto é, que a disposição genérica da Lei 12.527/2011 sobre transparência de dados englobaria a publicação de dados individualizados da remuneração dos funcionários.

A divulgação de dados individualizados da remuneração é tema afeto ao direito constitucional à intimidade e vida privada (conforme será demonstrado). Portanto, não se pode admitir interpretação restritiva do texto constitucional para, reduzindo seu âmbito de incidência, legitimar os dispositivos do decreto que determinam a publicação individualizada da remuneração.

A jurisprudência pátria já se pronunciou conforme o entendimento aqui defendido, ou seja, que a inexistência de lei expressa impede a publicação dos dados individualizados de remuneração dos funcionários:

RESPONSABILIDADE CIVIL - Indenização por danos morais Divulgação dos nomes e vencimentos de servidores públicos municipais em site institucional da Prefeitura de São Paulo - Ato administrativo ilegal Ofensa à intimidade e privacidade dos servidores

[...]

assim dispõe a Lei nº. 14.720/08, acerca da publicação de informações sobre funcionários, empregados e servidores vinculados ao Poder Público Municipal, no endereço eletrônico do órgão em que se encontra em exercício.

[...]

O Decreto Municipal nº. 50.070/08, por sua vez, regulamentou o referido diploma legal, dispondo em seu art. 2º. que:

[...]

Da análise dos referidos diplomas, verifica-se que inexiste previsão normativa que autorize a divulgação dos vencimentos dos servidores públicos municipais pela Prefeitura de São Paulo.

[...]

E consoante já decidiu o Órgão Especial deste Egrégio Tribunal de Justiça, a divulgação de tais informações viola os direitos fundamentais à intimidade e à privacidade dos servidores públicos municipais.

[...]

Assim, a conduta da Administração afigura-se ilegal e causa evidente prejuízo às servidoras que tiveram sua vida privada devassada. (Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 0018703-34.2011.8.26.0053. Rel. Des. Leme de Campos. DJE 26/03/2012, g.n.)


4 DA VIOLAÇÃO À INTIMIDADE E VIDA PRIVADA (PRIVACIDADE)

No item anterior demonstrou-se que inexiste norma legal vigente que autorize a publicação de dados individualizados da remuneração dos servidores públicos (no caso em análise, dos servidores federais).

Mas, ainda que existisse norma expressa nesse sentido, parece que o melhor direto aponta para a impossibilidade da publicação dos referidos dados, sob pena de inconstitucionalidade material.

O direito à intimidade e o direito à vida privada (privacidade) são garantidos pela Constituição Federal, nos seguintes termos:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

O texto constitucional, ao salvaguardar o direito à intimidade e vida privada, procura garantir que informações sensíveis ao cidadão não sejam utilizadas de forma indiscriminada, o que, sem dúvida, poderia gerar danos diversos.

Apesar do conceito de intimidade e vida privada já ter sido objeto de estudo em item anterior, é importante destacar a lição de José Afonso da Silva, que resume com precisão a vontade do constituinte original:

A intimidade se caracteriza como a esfera secreta da vida do indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os demais, o que é semelhante ao conceito de Adriano Cupis que define a intimidade (riservatezza) como o modo de ser da pessoa que consiste na exclusão do conhecimento de outrem de quanto se refira à pessoa mesma[4].

Nesse ponto surgem as seguintes questões: os dados referentes à remuneração dos servidores públicos estão contidos nos dados protegidos pelo direito à intimidade e vida privada? Se afirmativo, como conciliar esse direito com o dever de transparência?

Primeiramente, é possível afirmar, com segurança, que os dados referentes à remuneração e patrimônio do indivíduo são protegidos pelo direito à privacidade. O próprio ordenamento jurídico sustenta essa conclusão, quando se verifica a existência de normas legais regulando o acesso aos dados patrimoniais e bancários do cidadão.

Afinal, é evidente que o indivíduo, até para preservação da sua segurança, tem direito de evitar que terceiros tenham acesso a dados referentes aos valores recebidos mensalmente.

Note-se que, no caso em análise, a necessidade de preservação da intimidade é acentuada pelo fato de que o acesso à remuneração do servidor público federal é feito por meio da internet e sem controle efetivo de quem realizou o acesso. Na verdade, é permitido o acesso por máquinas que compilam todos os dados disponíveis nos sites, para posterior distribuição.

Ou seja, a utilização da informática no caso em análise agrava a violação à intimidade e vida privada. José Afonso da Silva, ao tratar do direito à intimidade na era da informática, afirma que:

O intenso desenvolvimento de complexa rede de fichários eletrônicos, especialmente sobre dados pessoais, constitui poderosa ameaça à privacidade das pessoas. O amplo sistema de informações computadorizadas gera um processo de esquadrinhamento das pessoas, que ficam com sua individualidade inteiramente devassada. O perigo é tão maior quanto mais a utilização da informática facilita a interconexão de fichários com a possibilidade de formar grandes bancos de dados que desvendem a vida dos indivíduos, sem sua autorização e até sem seu conhecimento. A Constituição não descuidou dessa ameaça. Tutela a privacidade das pessoas, como vimos acima[5].

Evidente, ante o exposto, que os dados referentes à remuneração do servidor são englobados pelo direito constitucional à intimidade e vida privada (privacidade). Logo, mesmo se existisse lei ordinária determinando a divulgação dos dados individualizados da remuneração, tal norma seria eivada do vício da inconstitucionalidade material.

         O Tribunal de Justiça de São Paulo já adotou o entendimento aqui exposto:

AGRAVO DE INSTRUMENTO TUTELA ANTECIPADA. Ação de obrigação de fazer e indenização por dano moral Divulgação em Portal da Internet dos nomes dos servidores e respectivos vencimentos Inadmissibilidade Ausência de previsão legal A Lei Municipal nº 14.720/08 (regulamentada pelo Decreto nº 50.070/08) determina a divulgação tão somente dos nomes completos dos servidores, cargos que ocupam e unidades de lotação Transparência e publicidade das contas públicas que não pode se colocar acima das garantias e direitos individuais Violação à intimidade e à privacidade Presença dos requisitos legais (CPC, art. 273) Decisão mantida Recurso não provido[6].

Pois bem, nesse ponto é preciso responder à questão remanescente: como conciliar o direito individual à intimidade e vida privada, com os Princípios da Publicidade e Moralidade, inscritos no artigo 37 da Constituição Federal?

A primeira conclusão é que, no que tange à remuneração, deve prevalecer o direito à intimidade, com a impossibilidade de divulgação do salário individualizado do funcionário.

Por outro lado, para garantir o dever de publicidade, outros dados gerais referentes ao funcionalismo (total de funcionários, plano de carreira, total de gastos com funcionalismo, provisão orçamentária para pagamento de funcionários, etc.) podem ser publicados, garantindo integralmente a observância aos princípios do art. 37 da Constituição.

         Sobre o tema, vale a transcrição do voto do Desembargador MARREY UINT, do Tribunal de Justiça de São Paulo:

Há, de fato, um conflito de princípios constitucionais. A preservação da intimidade e da segurança está intrinsecamente ligada à dignidade da pessoa humana, e, consoante ensinamento de Rizzato Nunes (`Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana`, São Paulo, Saraiva, 2002, p. 54), a aplicação do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana há de prevalecer:

`É verdade que o chamado princípio da proporcionalidade, que serve de instrumento para a resolução do eventual conflito entre princípios constitucionais, para a doutrina, está ligado ao princípio da igualdade, mas, como o demonstraremos, não só o mais importante elemento principiológico constitucional é o da dignidade da pessoa humana como, conforme já adiantamos, o princípio da proporcionalidade deve ser tido como originário desse outro da dignidade`.

[...]

Não é de interesse público conhecer os vencimentos individualizados dos servidores, mas sim o quanto a Prefeitura arrecada e o quanto gasta em sentido global com sua folha de pagamento.

É o quanto basta a fim de dar cumprimento ao princípio da publicidade que a Administração Pública deve consagrar, garantindo-se desta maneira, o respeito à intimidade, à segurança, bem como a devida transparência aos atos administrativos[7].

Portanto, ante o exposto, de rigor a conclusão de que a publicação de dados individualizados relativos à remuneração do funcionário público, viola o direito constitucional à intimidade e vida privada e, dessa forma, não pode ser mantida.

Contudo, é importante informar que os julgados mais recentes não acolhem o entendimento aqui exposto e mantém a publicação dos dados, sob o fundamento de que prevalece o dever de publicidade e não vislumbram violação de intimidade nos referidos dados.

Nesse sentido, confira-se: TRF-5R, AC 08024498220134058400, DJE 15/04/2014 e STF, Pleno, SS 3902 AgR, DJe 30/09/2011.

Note-se que, apesar do atual entendimento jurisprudencial sobre o tema (especialmente do STF), são mantidas as conclusões aqui expostas no que tange à impossibilidade de publicação dos dados individualizados relativos à remuneração dos servidores públicos.

Sobre o autor
Marcelo Carita Correra

Procurador Federal,<br>exerceu a advocacia privada em São Paulo/SP<br>Bacharel em Direito pela PUC-SP<br>Especialista em Direito Tributário pela PUC-SP<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORRERA, Marcelo Carita. O dever de transparência e a publicação de dados referentes à remuneração dos servidores públicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4201, 1 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31606. Acesso em: 17 nov. 2024.

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