DA JUSTA CAUSA
Embora fuja um pouco do assunto desse estudo, vejo-me premida a discorrer algumas palavras sobre essa questão da obrigatoriedade da justificativa da “justa causa”, quando imposta por ocasião de um testamento, visto que tenho observado que grande parte da doutrina tem exigido a justa causa específica e real para o seu cabimento.
Embora denominemos as ditas cláusulas de restritivas, devemos separar o joio do trigo.
Excetuando-se a cláusula de inalienabilidade, que carrega em si grande carga negativa, não cumpre com a função social, consubstancia-se em entrave para a livre e desejável circulação de bens, despoja o proprietário de um dos direitos mais elementares do domínio, que é o poder de dispor da coisa, sendo, portanto, rechaçada pela quase totalidade das pessoas, as demais cláusulas são extremamente protetivas e são bem acolhidas por todos, razão pela qual só me refiro às cláusulas de incomunicabilidade e de impenhorabilidade, dessa forma: cláusulas protetivas.
Portanto, tratar a cláusula de inalienabilidade de forma idêntica às cláusulas de impenhorabilidade e de incomunicabilidade nos conduzirá a distorções e injustiças que, certamente, repudiamos. A propósito, desde a edição da Lei Feliciano Pena, o legislador conferia tratamento diverso para a imposição da cláusula de inalienabilidade em relação à cláusula de incomunicabilidade. Vejamos então:
“Art. 3º - O direito dos herdeiros, mencionados no artigo precedente, não impede que o testador determine que sejam convertidos em outras espécies os bens que constituírem a legítima, prescreva-lhes a incomunicabilidade, atribua à mulher herdeira a livre administração, estabeleça as condições de inalienabilidade temporária ou vitalícia, a qual não prejudicará a livre disposição testamentária e, na falta desta, a transferência dos bens aos herdeiros legítimos, desembaraçados de qualquer ônus.”
Como podemos verificar, a questão da justificativa da cláusula de inalienabilidade é muito mais antiga do que possa parecer. O ínclito civilista José Ulpiano[6], discorrendo sobre o art. 3º da Lei Feliciano Pena, já assim asseverava:
“Assim, o testador pode estabelecer a inalienabilidade da legítima, mas, se não declarar a causa ou as condições do seu estabelecimento, este será ineficaz. É justificável o procedimento do legislador: a inalienabilidade é uma grande restrição à propriedade, um importantíssimo corte nos direitos elementares do domínio, e que diz respeito à organização da propriedade, à ordem pública, ao crédito público. Só condições legítimas, interesses sérios podem fundamentá-la, e para isso é necessária a declaração das suas condições ou seus motivos.”
Entendo, pois, que, somente diante de situações absolutamente necessárias e devidamente justificadas, seria facultada a imposição da cláusula restritiva de inalienabilidade. E, na minha ótica, igualmente, de lege ferenda, por se tratar de questão que envolve interesse público, essa justificativa deveria abranger não só a legítima, mas, também, quando se tratasse da parte disponível.
Situação inversa ocorre com as cláusulas de incomunicabilidade e de impenhorabilidade. As mencionadas cláusulas não restringem absolutamente nada! Não envolve interesse público, interessa apenas aos herdeiros e donatários. E, na hipótese de o donatário ou o herdeiro se sentir restringido de alguma forma, será muito simples de se resolver o problema, basta alienar o imóvel.
Será que alguém, algum dia, proporia uma ação judicial para declarar a ineficácia de uma cláusula de impenhorabilidade ou de incomunicabilidade por considerá-la injusta? Certamente, o tempo perdido e a subjetividade da questão afastariam qualquer pretensão desse tipo, seria muito mais eficiente alienar o imóvel.
Essas cláusulas são tão benéficas, que, se fosse possível, indubitavelmente, em todo patrimônio que fôssemos adquirir as incluiríamos. No entanto, as referidas cláusulas somente são permitidas nos contratos de doação e no testamento, ou na hipótese de compra e venda acoplada com a doação modal, este último exemplo com ressalvas, conforme nos ensina o douto Registrador do 5º Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo, Sergio Jacomino, em seu artigo “Doação Modal e Imposição de Cláusulas Restritivas.”[7]
Continuando na defesa das cláusulas protetivas, partiremos, então, agora, de algumas premissas que, a meu ver, são irrefutáveis:
a) - nenhum pai, mãe, filho ou cônjuge deseja que o bem que deixará para o seu herdeiro se comunique com o seu cônjuge ou companheiro (a), por mais que haja entre eles laços de profunda e verdadeira amizade.
Além disso, faz parte do conhecimento popular que as relações hodiernas são voláteis, fugazes, merecendo, portanto, que tomemos todas as cautelas no que diz respeito à proteção do patrimônio.
Então, como justificar a cláusula de incomunicabilidade de forma específica e real? O testador terá de justificar e provar que o seu filho ou a sua filha se casaram muitas vezes, perderam boa parte do seu patrimônio ou que não simpatizam com a sua nora ou o seu genro e comece a destilar todas as mágoas, nas suas declarações de última vontade? E se o herdeiro ou donatário tiver 2 anos de idade?
Sem dúvida, essa situação será extremamente constrangedora e indesejável. Por outro lado, essa deletéria justificativa será posteriormente analisada pelo futuro julgador, para que este decida se é ou não uma “justa causa”.
O que poderia ser mais subjetivo do que a análise do que seja uma “justa causa”?
No entanto, para nossa felicidade, essa impropriedade da lei será corrigida, na próxima Reforma, em que não mais será necessária a justificativa da cláusula de incomunicabilidade, por ela ser óbvia.
Entendo que o mesmo destino deverá seguir a cláusula de impenhorabilidade, por ser óbvia, igualmente.
b)Nenhum pai, mãe, filho, cônjuge gostaria que o bem que está sendo deixado seja objeto de penhora em razão de dívidas do herdeiro. Ou que o seu herdeiro venha a perder o bem recebido em consequência de empréstimos ou maus negócios;
Vivemos num mundo, principalmente, num país onde o número de pessoas inscritas no cadastro do SPC é incomensurável, onde exercer uma atividade empresarial se tornou uma tarefa prometeica, onde o número de idosos com créditos consignados, com doença senil e Alzheimer é cada vez maior.
Na verdade, as pessoas diante dessa dura realidade, por um fundado e justificado receio, tentam de alguma forma proteger os seus entes queridos, deixando o patrimônio amealhado, na maior parte das vezes, com tanto esforço, gravado com as cláusulas protetivas de incomunicabilidade e de impenhorabilidade.
Entretanto, esse entendimento a respeito da justa causa vem evoluindo de uma tal forma que, somente aqueles que tiverem herdeiros estroinas, pródigos, com atestado, devedores contumazes e comprovados, herdeiros com diversos casamentos ou uniões, com perdas patrimoniais, é que terão o direito de proteger o patrimônio dos seus herdeiros.
Os demais não terão esse direito, pois lhes faltará a “justa causa”, ainda que haja a concordância no inventário dos herdeiros.
Imaginemos, igualmente, as últimas palavras de um de um pai para o seu filho, para justificar a cláusula de impenhorabilidade: “determino que todos os bens que o meu filho venha a herdar fiquem gravados com a cláusula de impenhorabilidade, pois o meu filho é um devedor contumaz, irresponsável, não tem trabalho fixo, vive às custas dos outros, enfim, é um perdedor nato!”
Não seria constrangedor e repulsivo? E mais, e se as declarações forem falsas? Deveríamos seguir o mesmo procedimento da deserdação? Isso tudo não seria uma infindável, deletéria e indesejável discussão?
Por sua vez, poderíamos, ainda, argumentar que a cláusula de impenhorabilidade fere o interesse dos credores, devendo, por essa razão, ser rechaçada.
Esse argumento, a meu ver, não merece acolhida, visto que quando o credor ofereceu crédito ao devedor fê-lo com base e na análise do patrimônio do devedor, naquela ocasião. Ora, o bem doado ou o bem herdado não foi levado em consideração, no momento em que se ofereceu aquele crédito, consequentemente, não há que se cogitar de frustração do credor.
Retornando à questão da necessidade da justificativa real e específica da “justa causa”, volto a dizer, a atual linha de raciocínio da nossa doutrina, certamente nos conduzirá a indesejáveis injustiças e nos afastará radicalmente do preceito contido no art. 5º, da nossa Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro.
Mais uma vez, de lege ferenda, sugiro às Comissões que estão estudando a Reforma do Código Civil a modificação do art. 1.848, para que nele somente se exija a “justa causa”, para a hipótese da imposição da cláusula de inalienabilidade, dispensando as demais, pelas razões expostas neste trabalho, deixando, igualmente, explícito no art. 1.911 a desnecessidade da justificativa quando se tratar de doação.
DAS SUB-ROGAÇÕES REAIS
. CANCELAMENTO e MODIFICAÇÃO DAS CLÁUSULAS
Apesar de haver opinião minoritária divergente, pacificou-se na nossa doutrina e jurisprudência o entendimento no sentido de ser possível o cancelamento, bem como a modificação das mencionadas cláusulas (inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade), desde que acordes as partes interessadas, doador e donatário, e que não se fira interesse de terceiros, mediante simples requerimento dos interessados dirigido ao Oficial Registrador, nos termos do inciso II, do art. 250, da Lei de Registros Públicos.
Nesse sentido, reputo indispensável a leitura do primoroso artigo de um dos nossos maiores civilistas, Miguel Reale, intitulado “Da Cláusula de Inalienabilidade”, disponível no sítio oficial do 15º Ofício de Notas - http://www.cartorio15.com.br/conteudo/apresentacoes-e-artigos
Caso as ditas cláusulas tenham sido impostas num testamento, obviamente, o pretendido cancelamento administrativo não será possível, devendo a parte interessada recorrer à via judicial.
. DA SUB-ROGAÇÃO DAS CLÁUSULAS
Quando se pretende transferir as cláusulas de um bem para outro só será permitida a via judicial, ex vi do art. 1.112, do Código de Processo Civil.
. DA SUB-ROGAÇÃO DE UM BEM PARTICULAR EM OUTRO
Por outro lado, não devemos confundir a sub-rogação das cláusulas com a sub-rogação de um bem particular em outro, ambas são hipóteses de sub-rogação real, obrigação com eficácia real, no entanto, o tratamento que se lhes confere é inteiramente distinto.
A sub-rogação de gravames dar-se-á quando se pretende transferir as cláusulas que incidem sobre determinado bem para outro; será imprescindível, nesse caso, a autorização judicial, por força do disposto no art. 1.112, do Código de Processo Civil.
Já a sub-rogação de bem particular ocorre quando o detentor de um bem particular vende esse bem e adquire outro com o produto da venda daquele bem particular e pretende que esse novo bem ostente, igualmente, a condição de bem particular.
Nessa segunda hipótese não haverá, a princípio, necessidade de autorização judicial, conforme veremos adiante.
É importante que tenhamos esses conceitos bem definidos e sedimentados, para que não façamos confusão entre eles. Bens particulares são aqueles que pertencem exclusivamente a um dos cônjuges ou companheiros, em razão do seu título aquisitivo e do regime de bens adotado no matrimônio.
Para que a sub-rogação de bem particular ocorra, deverá constar, na escritura da compra desse novo bem, declaração do comprador de que esse bem está sendo adquirido com recursos exclusivamente seus, oriundos da venda de um bem particular.
Entendo, s.m.j., que essa declaração poderá ser feita unilateralmente ou com a interveniência do cônjuge ou do companheiro, declarando que está ciente e de acordo com a pretendida sub-rogação real.
Na hipótese de haver declaração do cônjuge ou do companheiro, no sentido de concordar com essa transferência de um bem particular para que o outro assim o seja, entendo que, nesse caso, deverá ser averbado, junto à matrícula desse novo bem, tratar-se de bem particular, de acordo com os arts. 167, II, “5”, 172 e 246 § 1º, todos da Lei de Registros Públicos.
Caso não haja essa anuência ? sendo declaração unilateral do interessado ? entendo não ser possível a pretendida averbação. A não ser que a parte interessada proponha uma ação judicial para suprimento da manifestação de vontade do outro consorte ou companheiro.
No entanto, se houver a concordância da outra parte ? a meu ver, a única que poderia ser prejudicada ? não terá necessidade de comprovação pelo Notário ou pelo Registrador, repito ? não somos detetives ? da origem do bem sub-rogado, se os valores dos bens se equivalem, entre outros questionamentos.
Até porque, quando nos referimos a um bem que esteja sendo sub-rogado, esse bem poderá ser dinheiro, títulos, ações, não necessariamente um bem imóvel.
Sendo essa matéria ? a sub-rogação de bem particular ? inserida no âmbito do direito patrimonial privado, interessa somente às partes envolvidas.
E mais, caso as partes estejam em conluio, com o objetivo de prejudicar terceiros e prestarem declaração falsa, elas responderão por crime de falsidade ideológica, previsto no art. 299, do Código Penal, sendo certo, ainda, que eventuais direitos de terceiros estarão resguardados e poderão ser questionados na via própria.
Vale ressaltar que, para que haja a sub-rogação real de um bem particular em outro, não basta declararmos na escritura que o bem está sendo adquirido com recursos exclusivos do comprador, esses recursos deverão ser exclusivos e provenientes da venda de um bem particular.
COMPRA E VENDA CONJUGADA COM DOAÇÃO MODAL
A compra e venda conjugada com doação modal ocorre quando, por exemplo, o filho adquire determinado bem imóvel, com dinheiro doado pelos pais. Nesse caso, é possível que se imponham ao imóvel que está sendo adquirido as cláusulas protetivas e restritivas, que, como sabemos, não são permitidas, via de regra, nos contratos onerosos.
Aproveito a oportunidade para transcrever a lição de Ademar Fioraneli, Registrador do 7º Ofício do Registro de Imóveis de São Paulo, no artigo denominado, DA COMPRA E VENDA NO REGISTRO IMOBILIÁRIO, pág. 89, in verbis:
“A denominada doação modal, hoje de uso frequente, consiste, para concretização da vontade do doador ou doadores, mediante celebração de um único instrumento público (compra e venda acoplada com doação), na aquisição de um determinado imóvel, em que o numerário utilizado no pagamento do preço é doado quase sempre pelos pais ou avós do adquirente donatário. O negócio é celebrado entre outorgantes vendedores e outorgado comprador, figurando o doador ou doadores da pecúnia como interveniente anuente doador que pode impor ao bem as cláusulas referidas e mesmo a constituição, em seu favor, do usufruto. (Registro de Imóveis – IRIB - Estudos de Direito Registral Imobiliário XXII Encontro de Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil – Cuiabá – Mato Grosso/1995) (g.n.)
Registre-se, igualmente, que esse entendimento não é unívoco, sofrendo severas críticas de outro grande Registrador de São Paulo, Sergio Jacomino, no seu trabalho “Doação Modal e Imposição de Cláusulas Restritivas”[8].