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Do pagamento indevido e sua repetição.

Uma teoria geral. Aplicação do instituto em sede tributária

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Agenda 01/08/2002 às 00:00

3. Do pagamento indevido e sua restituição. Da tratativa dada à matéria pelo Código Tributário Nacional.

Cuida o Código Tributário Nacional da repetição do indébito tributário na seção III do capítulo IV, que trata, por sua vez, da extinção do crédito tributário. Deste modo, quis o legislador imediatamente após tratar do pagamento, forma de extinção das obrigações, cuidar da repetição de valores eventualmente prestados indevidamente. Censuras têm sido feitas a esta localização, registrando José Eduardo Soares de Melo [12]não ser a matéria concernente, propriamente, à extinção do crédito, mas a questão de diferente natureza, ou seja, de ressarcimento de valores que foram indevidamente recolhidos aos cofres públicos.

Com efeito, se o pagamento resolve o vínculo obrigacional, o pagamento indevido, em sentido contrário, faz surgir um vínculo, de natureza civil, caminhando em sentido contrário ao da obrigação tributária, por ter como sujeito ativo o solvens e como sujeito passivo o Erário indevidamente beneficiado.

Aliás, se por um lado o vigente Código Civil também traz a mesma disposição topográfica - fazendo-se seguir as disposições relativas ao pagamento indevido àquelas atinentes ao pagamento - o Projeto do Código Civil sintomaticamente inovou, deslocando os preceitos inerentes ao pagamento indevido para o capítulo que cuida dos atos unilaterais, a ele dedicando os artigos 878 a 885.

De qualquer modo, ainda que se forre o Código Tributário Nacional desse vício, o certo é que a redação dos cinco artigos que tratam do tema está longe de estar imune a críticas.

Primeiro, menciona em vários pontos a restituição total ou parcial de tributo. Duas impropriedades. A primeira, é a de que a restituição haverá de ser sempre total, em relação ao quantum indébito. O indébito por sua vez é que poderá ser parcial ou total em relação ao quantum prestado. A segunda, é a de que não apenas o pagamento indevido de tributo, há de ensejar a repetição, mas todo e qualquer valor a ele subjacente haverá de ser igualmente restituído ao seu dominus. Aliás, neste sentido é a redação do artigo 167 ao preceituar que a restituição total ou parcial do tributo dá lugar à restituição, na mesma proporção, dos juros de mora e das penalidades pecuniárias, salvo as referentes a infrações de caráter formal não prejudicadas pela causa da restituição.

Em seguida prescreve o inc. I do artigo 165 ensejar a repetição a cobrança ou pagamento espontâneo de tributo indevido ou maior que o devido.

Já advertia Alf Ross [13] que a maior parte das palavras são ambíguas, e todas elas são vagas. Neste caso, o legislador foi além: preceituou ensejar repetição, a simples cobrança ou, alternativamente, o pagamento de tributo. Ainda que emprestássemos à disjuntiva ou o sentido includente, não teríamos como emprestar maior validade à expressão. A cobrança não enseja repetição de indébito. Também, não apenas o pagamento indevido haverá de ensejar a repetição, mas outras formas de extinção, como a compensação, se efetuadas em relação a quantum indevido, haverão de dar ocasião à repetição, na mesma medida.

Ainda, na mesma expressão, consignou o legislador as locuções tributo indevido ou maior que o devido. A repetição é desnecessária. O tributo - ou qualquer valor a qualquer título prestado - maior que o devido será igualmente indevido.

Observa-se nos dois primeiros incisos do artigo 165 a preocupação em delimitar os casos em que se daria o surgimento do indébito. Em verdade cuidam-se de hipóteses em que se nota uma dissociação da realidade, ocorrida no interior da própria norma individual e concreta - a cargo, como vimos, ora da autoridade administrativa, por meio do lançamento, ora como resultado do só labor do contribuinte - ou por defeito de subsunção entre a constituição dos elementos daquela norma individual e concreta e os critérios eleitos pela regra matriz de incidência do tributo.

O defeito de subsunção a que nos referimos consubstancia clara situação erro - noção equivocada de um dado da realidade - levado a efeito pelo editor da norma individual e concreta.

Consoante afirmamos já na parte inicial do trabalho, vem a ser ônus probandi do autor, na ação de repetição de indébito, a produção de prova hábil a demonstrar tal equívoco, na estruturação daquela norma individual e concreta, quer por desarranjo interno em seus elementos, quer por desarmonia entre esses elementos e os critérios eleitos pela regra-matriz de incidência, que vem a ser, nesta seara, a norma completa, instituidora do tributo.

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Neste ponto, nos parecem de inteiro cabimento as lições auridas de Paulo de Barros Carvalho [14] no que concerne à distinção entre o erro de fato e o erro de direito.

Com efeito, aquelas meditações são de molde a servir de base para um sem número de reflexões, as quais só se prestarão a enriquecer a teoria geral do direito, e por ser aqui de inteira oportunidade, transcrevemos as conclusões :

Lembremo-nos de que o erro de fato é um problema intranormativo, um desajuste interno na estrutura do enunciado, por insuficiência de dados lingüísticos informativos ou pelo uso indevido de construções de linguagem que fazem as vezes de prova. Esse vício na composição semântica do enunciado pode macular tanto a oração do fato jurídico tributário como aquela do conseqüente, em que se estabelece o vínculo relacional. Ambas residem no interior da norma e denunciam a presença do erro de fato.

Já o erro de direito é também um problema de ordem semântica, mas envolvendo enunciados de normas jurídicas diferentes, caracterizando-se como um descompasso de feição externa, internormativa.

Assim, consoante essa lição, o indébito pode surgir, tanto do erro de fato como do erro de direito.

Exemplificando para esclarecer, se um contribuinte ao constituir o crédito tributário mediante atividade sua - imaginemos um contribuinte do ICMS por exemplo - tomar um produto industrializado em relação ao qual se tenha um benefício fiscal de isenção e, julgando-o produto primário, emitir os documentos fiscais, efetuar a escrituração e recolher o imposto que julga devido, teremos um erro na constituição do fato jurídico tributário, de natureza interna. Com efeito, o fato constituído no antecedente da norma individual e concreta elaborada pelo contribuinte ( venda de mercadoria sujeita ao tributo) não corresponde ao evento venda de mercadoria forrada pela isenção.

Típica disfunção interna na norma assim produzida, consubstanciadora do erro de fato.

Por outro turno, imaginemos a circunstância em que esse mesmo contribuinte, tendo em vista a regra matriz de incidência do ISS, imagine ser este tributo incidente sobre os serviços prestados com o fornecimento de refeições em seu restaurante. Assim, efetue a emissão dos documentos fiscais correspondentes e recolha o tributo ao município em que se encontra localizado, vindo mais tarde a ser autuado pelo fisco estadual, sob o fundamento de que naquelas circunstâncias, o total da operação tem como sujeito ativo ele, Estado.

Configurada estaria situação em que presente a subsunção do conceito do fato constituído em face de sujeito ativo incorreto por indevida passagem do critério pessoal, erigido pela regra matriz de incidência, para o elemento pessoal constituído pelo contribuinte, ao construir a norma individual e concreta.

Típico descompasso de natureza internormativa, a caracterizar o denominado erro de direito.

De qualquer modo, estas considerações vieram no ensejo de afirmar que o casuísmo trazido pela norma tem uma só conclusão possível : qualquer que seja a disfunção, qualquer que seja o erro verificado, quer de fato - intranormativo - quer de direito - internormativo - sempre que ensejar indevido recolhimento de tributo ou outra verba qualquer, ensejará ipso facto, o direito à repetição, em relação ao total daquele indébito, acrescido dos juros de mora e correção monetária a partir do indevido cumprimento da obrigação.

Mais ainda, fica claro que incumbe ao autor, na ação de repetição de indébito, fazer prova desse defeito de subsunção, pena de inépcia da inicial, caso ausente qualquer elemento nesse sentido - imaginemos a hipótese absurda de pedido de repetição de indébito sem qualquer prova do pagamento, ou sem qualquer prova do erro - ou de improcedência, ao final, do pedido, em face de defeito na linguagem veiculadora dessa prova.

Algumas dessas questões de índole processual, serão por nós abordadas, ao final do trabalho, dentro, evidentemente, da profundidade aqui proposta.


4.Da repetição de indébito em relação aos tributos que comportam repercussão econômico-financeira. As controvérsias quanto à repercussão econômica como impediditiva da repetição. O locupletamento ilícito, se houve repercussão. a posição de Paulo de Barros Carvalho.

Não são poucos os questionamentos doutrinários e jurisprudenciais surgidos no que concerne à repetição daqueles tributos que comportam repercussão de seu encargo. A questão se tem no ponto em que ao repercutir o tributo, o contribuinte termina por não assumir o encargo financeiro dele decorrente. Poderia, em tais casos, pleitear repetição daqueles valores afinal suportados por outrem, sem restar malferido o princípio que condena o indevido locupletamento?

Sobre o tema, preceitua o artigo 166 do Código Tributário Nacional que a restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo, somente será feita a quem prove haver assumido referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-lo.

Pretendeu o legislador, por meio do dispositivo legal, vedar a que o contribuinte, após transferir o encargo do tributo indevido, viesse a pleitear, salvo expressa autorização daquele que efetivamente suportou a carga, aquele montante, locupletando-se de valor afinal pertencente a outrem.

A jurisprudência andou nessa questão, desde a inadmissibilidade da repetição nos chamados tributos indiretos, até o ponto em que passou a exigir a prova da assunção do encargo ou a expressa autorização a que se refere o artigo 166.

Com efeito, segundo a súmula 71 do Supremo Tribunal Federal, embora pago indevidamente, não cabe restituição de tributo indireto, em entendimento hoje já superado naquele Excelso Pretório, com a edição da Súmula de Jurisprudência Predominante número 546, segundo a qual, cabe a restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão, que o contribuinte de jure não recuperou do contribuinte de facto o quantum respectivo.

Questão tormentosa vem a ser esta da repercussão. Primeiro, porque, em rigor, todos os tributos incidentes no processo de produção e comercialização são, afinal, repercutidos nos custos e, por via de consequência, integram o encargo afinal suportado pelo consumidor final do bem ou serviço.

À evidência, o preceito não pretende ter tal amplitude. Se assim o é, determinar qual seria afinal a melhor extensão a ser emprestada ao comando contido no artigo 166 é labor dos mais intrincados.

Primeiro, nos parece que em quaisquer circunstâncias, ainda que se cuide dos denominados tributos indiretos, os quais comportam as figuras comumente denominadas de contribuinte de jure e contribuinte de facto, a presunção de repasse sempre pode ser desconstituída pelo contribuinte que adimpliu obrigação tributária indevida.

A estas considerações não poderiam deixar de somar-se críticas à expressão contribuinte de facto e contribuinte de jure. Com efeito, o estudo da regra matriz de incidência e da norma individual e concreta acima feito, é de molde a afastar tal classificação. Inexiste no campo de interesse do cientista do direito qualquer razão para albergar essa cisão do conceito de contribuinte, porque contribuinte é aquele que posta-se no polo passivo da relação jurídica tributária - dada a natureza necessariamente patrimonial desta, como já se disse.

Partindo-se então do pressuposto de que a relação jurídica tributária é necessariamente patrimonial, inexiste nessa relação outra figura que a do contribuinte. O obrigado a uma prestação puramente instrumental não figuraria, nessa relação jurídica assim constituída, na qualidade de contribuinte, ainda porque a natureza do vínculo daí surgido seria tipicamente administrativa e não propriamente tributária. Neste sistema de referência, mesmo o responsável tributário seria em verdade contribuinte. O consumidor, em situações tais, embora possa assumir o encargo, não faz figura na relação jurídica tributária, podendo assumir relação financeira de qualquer modo estranha à relação jurídica do tributo.

Neste passo, tem sido oportuna a intervenção da jurisprudência, ao construir interpretação restritiva à locução tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro, como se pode aferir do julgado proferido no Agravo Regimental em Agravo de Instrumento 209309-PR [15].

O artigo 166 do Código Tributário Nacional tem como ratio essendi a proteção, ainda uma vez, dos princípios nemo potest locupletari detrimento alterius ou nemo debet ex aliena jactura lucrum facere. A incidência de tais princípios, se por um lado veda a que tenha a Fazenda Pública justo título à retenção de valores pertencentes ao sujeito passivo, por outro também impede a que este, embora contribuinte, vale dizer, embora figurante no polo passivo da relação jurídica tributária, aproprie como seus, valores pertencentes a outrem, situado no polo final da cadeia de repasse dos custos.

Assim, cumpre ao contribuinte a prova de não haver recuperado aqueles valores ou se o fez, estar munido de autorização daquele destinatário do encargo, para reavê-lo do Erário.

Neste ponto algumas considerações são imprescindíveis:

Primeiro, a ausência de comprovação do não-repasse ou a inexistência da autorização a que se refere o artigo, haverá de levar à improcedência do pedido, quer em nível administrativo, quer em nível judicial. Isto é assim porque como ensina Paulo de Barros Carvalho [16], estamos em que, se não há fundamento jurídico que ampare o Estado, no caso de haver recebido valores indevidos de contribuintes que transferiram o impacto financeiro a terceiros, também não há justo título para que estes, os sujeitos passivos que não provaram haver suportado o encargo, possam predicar a devolução. E na ausência de títulos de ambos os lados, deve prevalecer o magno princípio da supremacia do interesse público ao do particular, incorporando-se as quantias ao patrimônio do Estado.

A conclusão é irrepreensível : se os valores não pertencem ao contribuinte, mas no mais das vezes a uma massa difusa e, pois, indeterminada de consumidores finais, é jurídico que eles sejam socializados para, afinal, retornarem para aqueles titulares, em forma de atendimento das suas necessidades por meio de serviços públicos, em vez de se verem apropriados pelo particular e enclausurados em seu patrimônio.

Evidentemente, a presunção de repasse, ocorrente nos denominados tributos indiretos - ICMS e IPI, por exemplo - pode ser desconstituída pelo contribuinte, como já se salientou. Mais ainda, a jurisprudência tem ampliado o número de circunstâncias em que tal repasse financeiro tem sido a priori afastado, ensejando a repetição do indébito ao contribuinte, ainda que se trate de tributos em cujo bojo pudesse aninhar-se aquela repercussão, em tese.

Assim se decidiu, por exemplo, junto ao Supremo Tribunal Federal, nos RE 87055/SP, 84827-PR e 94377-SC, nas hipóteses de absorção do valor repassado a título de ICMS no custo dos produtos vendidos e no caso de operação com produto tabelado. As ementas desses julgados são esclarecedoras do que aqui se disse :

RE 87055/SP:

ICM. Restituição de tributo pago indevidamente. Se a carga tributária resultante de imposto indireto é absorvida na margem de lucro bruto do comerciante, por não haver integrado a formação do custo sobre o qual foi calculado o lucro, recai ela sobre o contribuinte de jure. Súmula 546. Recurso extraordinário não conhecido.

RE 84827/PR :

ICM. Ação de repetição de indébito. Ausência de repercussão econômica do tributo sobre mercadoria tabelada. Aplicação da súmula 546. Recurso extraordinário conhecido e provido.

RE 94377- SC :

Tributário. Repetição de indébito. Imposto indevidamente pago sobre componente da fabricação de produto tabelado. Inaplicabilidade da Súmula 71 do Supremo Tribunal Federal, e sim da Súmula 546, se o imposto pago indevidamente não era trasladado ao consumidor, por ser tabelado o produto.

O que se observa, nesses julgados, é a aceitação da presunção de não-repasse, às posteriores operações, do valor do tributo, afinal fruto do indevido recolhimento.

De qualquer modo, ainda nessas circunstâncias vistas, cumpre ao contribuinte caracterizar o não repasse, o que não deságua em conduta impossível - lembrando a prova diabólica, a que já faziam referência os romanos - porque feita por meio da prova de fatos incompatíveis com a repercussão, como, v.g. as hipóteses acima citadas.

Sobre o autor
Ercias Rodrigues de Sousa

Procurador da República. Procurador Regional dos Direitos do Cidadão em Rondônia. Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Ercias Rodrigues. Do pagamento indevido e sua repetição.: Uma teoria geral. Aplicação do instituto em sede tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3180. Acesso em: 24 dez. 2024.

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