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Tutela jurisdicional das liberdades

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Agenda 01/08/2002 às 00:00

11 - Liberdade e tutela - uma contradição

Finalmente, vale ponderar que liberdade e tutela se revelam coisas incompatíveis, porquanto liberdade tutelada não é mais liberdade. É dádiva, concessão, proteção, dependência, tudo isso negação mesma da liberdade. A liberdade só comporta limites, jamais tutela. Toda tutela de liberdade é perda de liberdade por alguém que deixou de poder o que potencialmente podia poder. e, inferiorizado, pretende ver reparada essa perda, socorrendo-se de quem mais poderoso que o poderoso que o submeteu. Muda-se de senhor, porém se continua servo. Essa incontestável realidade é que confere a toda ordem social o caráter de um sistema de dominação. Liberdade social e poder ou controle são categorias indissociáveis. Isso já foi por nós evidenciado. Livre e soberano, portanto, é quem tem o poder de controlar e sancionar, não o controlado ou sancionado, nem o que é favorecido com o controle ou a sanção Paradoxalmente, portanto, quanto mais necessitamos de tutela menos livres somos e mais dependentes. O que é tutelar uma liberdade ? Como já frisado, esse dizer encerra uma contradição insuperável. Quem carece de proteção não é livre, senão na medida da vontade de quem o protege. Isso nos alerta, mais uma vez, para a inocuidade das proclamações de liberdades, um modo de dizer sem conseqüências, porque dependente da efetividade da proteção prometida. Livre, portanto, é o protetor, não o protegido. E se é ele um agente político, nossa efetiva liberdade é diretamente proporcional ao quanto de poder nos cabe no poder político que nos tutela. Em resumo - os problemas da liberdade são políticos, não jurídicos. Eles se juridicizam como conseqüência e projeção, mas não se substancializam jurídicamente, nem são solucionáveis juridicamente em termos satisfatórios.


12 - A tutela jurídica

Essa evidência levou juristas, cientistas políticos e sociólogos a refletir mais profundamente sobre a correlação substancial entre o enunciar direitos e o organizar politicamente a sociedade para a qual são enunciados, a par da adequação dos instrumentos postos para assegurar sua efetividade. Mais importante que o elenco de liberdades, direitos e garantias proclamados é a real correlação de forças na sociedade e sua institucionalização em termos de organização do poder político. Nada é mais revelador dessa verdade que observarmos como prescrições linguisticamente idênticas se efetivam de modo tão diverso, a depender do contexto sócio-político em que foram enunciadas Quando a nossa liberdade não tem a garantia da consciência ética do outro de que deve, na situação concreta, limitar a sua em beneficio da nossa, colocamo-nos na total dependência da presença e da vontade do beleguim, englobando este termo todos os indispensáveis agentes do poder político responsáveis pelo controle e pela sanção, sejas eles militares ou civis, administradores ou julgadores. Há diferença de papéis e de pompa, não de substância A tutela jurisdicional, sem dúvida, é mais imponente, mais formal, magestática, mesmo, todavia tão dominadora quanto as outras e tão impotente quanto elas para operar em termos de plena efetividade e como fator de harmonia na convivência social.


13 - Pressupostos políticos da liberdade jurídica

Toda tutela implica em poder do tutor sobre o tutelado, que permanece dependente e inferiorizado. Na tutela jurisdicional, esse tutor é o juiz. Será ele, dentre os agentes do poder político institucionalizado, alguém que escapa aos condicionamentos do sistema de dominação que o legitima? Traduzirá ingenuidade, manipulação ideológica ou imperdoável má fé responder afirmativamente. Poder que se organiza institucionalizando instrumentos que viabilizem sua neutralização é tudo menos poder, nem subsistirá como poder, porque poder suicida Podemos, concluir, portanto, que os problemas da liberdade são, fundamentalmente, problemas políticos, problemas de não-liberdade que subsistem enquanto não resolvidos politicamente. Jurisdicionalizá-los, antes de representar solução será agravá-los, com todos os consectários negativos que derivam das disputas de poder no interior de qualquer organização política, o que lhe determina a disfuncionalidade, geradora de crises que tendem a se agravar, se não solucionados. Os gregos, atentando para essa dimensão do fenômeno, já haviam advertido, com sabedoria, constituir condição primeira da igualdade política, consequentemente da liberdade, a igualdade do cidadão em face de quem o julga. Destarte, se enunciarmos enxundiosamente direitos e liberdades e isntitucionalizarmos inadequadamente o poder de legislar e de julgar, de duas uma, ou fizemos dos legisladores e magistrados nossos soberanos, e continuamos vassalos, ou introduzimos a peçonha no corpo político. Numa ou noutra alternativa, seremos sempre os perdedores.

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14 - O caso brasileiro. As razões de sua gravidade

Quanto vem de ser analisado apresenta-se, em nosso país, particularmente agravado. Examinar com alguma profundidade os fundamentos dessa nossa assertiva exigiria um tempo de que não posso dispor. Fiquem algumas indicações que me parecem razoavelmente esclarecedoras. Em primeiro lugar, nossa infeliz colonização, que pode ser resumida com a frase de Raimundo Faoro - fomos Estado, antes de sermos Nação, o que, traduzido, significa: impingiram-nos instituições, sem que jamais tenhamos tido espaço político para plasmá-las a nossa feição e segundo nossas necessidades. Soma-se a isso o fato de que nossa economia fincou raízes no latifúndio, na monocultura, na mão de obra escrava e na dependência internacional, o que a fez concentradora de riqueza. Sempre estivemos olhando para fora, nunca para nós mesmos, donde o nosso "mazombismo" cultural e desapreço pela construção de nossa identidade. A dramática ausência de classe média por alguns séculos, a par de sua emergência tardia sob a tutela do Estado ou do poder econômico, marcou-nos como estigma de sermos, no dizer de Hobsbawm, "um monumento à negligência social" porque sempre transferimos para o poder público o que essencial e originariamente é de nossa responsabilidade. Nossa criminosa indiferença para com o outro, principalmente o mestiço e nacional, acentuado pelo desastroso interregno autoritário de um quarto de século, fez-nos um país marcado por uma desigualdade real que torna a igualdade formal mera e pungente caricatura. A tudo isso, somamos o fato de havermos chegado muito tarde num mundo cada vez mais opressivo e excludente, padecendo da falta de consciência dessa tragédia ou desse desafio. E fico por aqui, por inconveniente ir adiante, e ainda por me parecer quanto dito bastante para evidenciar as chagas que maceraram nosso corpo político ainda não desapareceram. Foi esse corpo chagado que vestimos com luxo e gala em 1988. Mas o hábito não faz o monge, nem o rótulo assegura a veracidade do conteúdo. Uma e outra coisa, antes de ajudar, desfavorecem com a deslealdade de anunciarem, com falso brilho e pompa, um conteúdo que não está no continente.


15 - Nosso aparato constitucional

Nesse cenário, valeria pouco falar sobre as roupas que cobrem o corpo do indigente, pois é ele que precisa ser cuidado. Principalmente porque ainda tem cura. Daí ter preferido exibi-lo assim, na sua gritante esqualidez, para chocar as pessoas, despertando-as e mobilizando-as para as mudanças que realmente se fazem necessárias e urgentes - institucionais, de base, profundas, porque indo até às raízes. Contudo, para não dizerem que não falei de flores, vou referir-me às plumas e paetês que ornamentam nossa fantasia democrática. Nossas liberdades políticas têm a seu serviço um inexcedível arsenal de instrumentos. Dispomos do habeas-corpus e do habeas data, do mandado de segurança, tanto individual quanto coletivo, sem esquecer o mandado de injunção. Ainda se colocam a nosso dispor a ação popular, a ação direta de incosntitucionalidade, o controle difuso da constitucionalidade das leis, com possibilidade de tutela liminar satisfativa, mesmo que provisória, e com a garantia de que todos quantos a isso se opuserem estarão sob a ameaça de cadeia, mesmo que sem forma nem figura de juízo, trate-se de Ministro, empresário, banqueiro, soldado ou menestrel. Se estiver em risco sua liberdade de ir e vir, impetre habeas corpus. Hoje, inclusive, a pedir reflexão ampliativa, visto como se propugna cada vez mais prender menos e cada vez mais se sancionar com penas restritivas de direitos. Se estiver em jogo outra liberdade que não a de ir e vir, impetre mandado de segurança, tanto individual, para defesa de seu interesse específico, como coletivo, se você deseja ser um paladino do interesse público em face das agressões do poder político opressor (entenda-se como tal o Poder Executivo). Se algum ato desse poder político opressor lesar ou ameaçar de lesão o patrimônio público - e tudo é público e de todos, a luz, o ar, a terra, o céu, os sonhos e os pesadelos - ajuíze uma ação popular. Se houver registros secretos a seu respeito, traga-os à luz pelo habeas data, e se o reumatismo normativo deixar desprotegido seu direito, ajuíze mandado de injunção. Na hipótese de o Legislativo ou o Executivo desrespeitarem, manhosamente, qualquer dos mil diretos fundamentais que a Constituição lhe outorgou, tentando fazê-lo de bobo, afore alguma cautelar inominada, com pedido de liminar e de antecipação de tutela sem audiência da parte contrária, caso não tenha conseguido sensibilizar alguma das entidades guardiãs da ordem jurídica, legitimadas para a ação direta de incosntitucionalidade, também com direito a liminar inaudita altera pars. Ao lado desse respeitável estoque, você também dispõe de armas de menor calibre, ainda que dotadas de respeitável poder de fogo, como sejam a ação civil pública, para a qual você é impotente como pessoa física, inconveniente facilmente contornável, todavia, desde que você convoque algum amigo do peito, fundando com ele alguma entidade que tenha apelido pertinente e sugestivo, o que lhe dará legitimidade, por força de sua "adequada representatividade (na dependência do que pensar o magistrado, é bom advertir) para pleitear o que desejava pleitear e lhe foi interditado. Nem esqueça que há outros meios de você se afirmar politicamente, através do disfarce dos interesses difusos, coletivos e homogêneos, que aceitam sua encarnação em modestas ações comuns, ainda que em juizados incomuns e atendendo a princípios incomuns. Nem olvide que você tem no Ministério Público e, de resvalo, em algumas Defensorias Públicas, um exercito de anjos tutelares, mobilizados para lhe darem a proteção que você, com suas poucas forças, jamais lograria conseguir.


16 - Concluindo, sem pessimismo mas realisticamente

Como se vê, de fome jurídica não morreremos nós, os brasileiros. Se houver algum risco, esse risco será de indigestão. Mas se formos prudentes e tivermos paciência para mastigar bastante e tempo e persistência para prosear entre uma e outra mastigação e deglutição, terminaremos fazendo jus a todo as saborosas iguarias com que fomos juridicamente banqueteados.. Há algo, entretanto, sobre que cumpre advertir. Todas essas iguarias estão na mesa, mas você não tem livre acesso a elas, nem pode degustá-las segundo seu apetite. Sua fome só será satisfeita segundo a vontade soberana e sem controle efetivo dos que podem lhe impedir de acesso até elas e têm poder para deturpar-lhes o sabor e o teor nutritivo, sem esquecer que nem eles mesmos são assim tão livres, porque se o menu anuncia fartura, a verdade é que a dispensa está em falta de quase tudo, porque os que prometeram fornecer as mercadorias se descuidaram ou se desinteressaram de produzi-las. Acredito tenha chegado o momento de encerrar. Suportaram-me além do tolerável. Em muitos, quanto disse deve ter despertado revolta. Vêem-me como alguém negativo e ressentido que distila a bílis que não pôde empregar para sua própria digestão. Em outros, devo ter provocado perplexidades. Estes se perguntam se há alguma verdade por trás de tudo quanto foi dito. Olham para mim entre surpresos e receosos, nem me rejeitam, nem me aceitam totalmente, propõem-se, entretanto, a refletir e correr o risco de se desinstalarem. Outros, e não serão poucos, colocarão em dúvida minha higidez mental, associável, sem muito esforço, a minha já avançada idade. Digo-lhes, entretanto, que meu posicionamento nem é insano, nem irrefletido, nem ressentido. Resgato apenas um compromisso assumido comigo mesmo de dizer, antes de tanto me ser impossível, quanto infiro de tudo que ocorre no meu país, em termos de conjuntura jurídica. Quero unicamente documentar quanto penso, fazendo-o radicalmente, para que amanhã, quando apenas "me chamar saudade" e só puder ser lido e não mais ouvido (se por acaso ainda se derem, no futuro, à generosidade de me lerem) seja feito meu julgamento. Aí, sim, haverá objetividade e isenção para tanto. Os acontecimentos dirão se devo ser visto como alguém que foi incapaz de perceber o que ocorria de positivo em seu redor e fez cinzento o que só era assim por força de sua visão decrépita e embaçada. Mas eles também poderão lembrar-me como o que viu o que estava oculto aos olhos de muitos que não conseguiam ver, ou receavam ver ou não queriam ver o que realmente acontecia Esse ver adiante ou ver o que está sendo rejeitado pelos que olham não querendo ver, é próprio das crianças e dos velhos. Aquelas, por desconhecedoras ainda dos riscos futuros que o compromisso de hoje com a verdade pode acarretar; os anciãos, porque já sem quase nenhum amanhã pouca importância dão aos riscos em termos de futuro. E foi a libertária inocência da criança que a fez dizer, aos brados, o que todos viam e tinham receio de proclamar - que o rei estava nu. Intencionalmente ou não, estamos todos sendo enganados A veste mágica que os intrujões teceram para o rei e dolosamente proclamaram só poder ser vista pelos puros é, em verdade, pura empulhação dos que se banqueteiam às custas dos crédulos e dos tímidos. Também os velhos, já na porta de saída, sabendo que nem o fasto nem o nefasto será para eles, têm essa libertária temeridade de poderem dizer, com a voz mais forte que ainda lhes é dado emitir: " Vocês estão sendo enganados. O rei está nu, o rei está nu, o rei está nu.....".Minha fala bem que poderia ter-se resumido, para benefício de todos, nesta curta e incisiva exclamação. - O REI ESTÁ NU.


Notas

1. Verbete "Liberdade", Dicionário de política, Ed. UNB, p. 709

2. A resepito, ver Peter l. Berger e Thomas Luckmann,A construção social da realidade, Vozes, Petrópolis, 1990, pp. 77e segs.

Sobre o autor
José Joaquim Calmon de Passos

Falecido em 18 de outubro de 2008. Foi advogado e consultor jurídico em Salvador (BA), coordenador da Especialização em Direito Processual da Universidade Salvador (UNIFACS), professor catedrático de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia (aposentado)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PASSOS, José Joaquim Calmon. Tutela jurisdicional das liberdades. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3199. Acesso em: 23 dez. 2024.

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