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De onde vem a "dialética da malandragem"?

Agenda 18/09/2014 às 14:26

O malandro (municipal, estadual ou federal) é um aventureiro, astuto e quase folclórico ao mesmo tempo, que pratica a astúcia desde logo pelo gosto da astúcia, em proveito próprio ou para solucionar um problema, mas sempre lesando terceiros.

O emérito professor da Universidade de São Paulo, Antonio Candido (Revista do Instituto de estudos brasileiros, n. 8, SP, USP, 1970, p. 67-89), vislumbrou no romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, o que ele chamou de "dialética da malandragem", que retrataria a dinâmica dos costumes da sociedade brasileira no começo do século XIX (não é difícil constatar que esses costumes valem até hoje). Leonardo (personagem do livro citado) seria o "primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira" (que, depois, foi elevado à categoria de símbolo - sem caráter - por Mário de Andrade, no Macunaíma).

Quem é o malandro?

O malandro (municipal, estadual ou federal) é um aventureiro, astuto e quase folclórico ao mesmo tempo, que pratica a astúcia desde logo pelo gosto da astúcia, em proveito próprio ou para solucionar um problema, mas sempre lesando terceiros.

O que caracteriza fundamentalmente a dialética da malandragem?

É a díade (o par) da ordem e da desordem, que retrataria não somente a sociedade descrita no livro Memórias de um sargento de milícias como a atual (basta prestar atenção no nosso entorno). Por todos os lados e em todas as partes há sempre, na dinâmica da ambiência histórica brasileira, uma ordem comunicando-se com a desordem. Na nossa bandeira a inscrição mais fidedigna (então) seria: (Des)Ordem e Progresso! É o tipo de sociedade que faz, sem sentimento de culpa, o bem e o mal, o certo e o errado, que é egoísta e também altruísta, que é honesta e também desonesta, que faz algo admirável ao lado de tantos atos deploráveis.

A tese do professor citado, em síntese, é a seguinte: as díades (os pares) marcariam o caráter da sociedade brasileira (daí a generalização da ordem e também da malandragem, da corrupção). Quase nunca o brasileiro seria então totalmente honesto, mas também não é totalmente desonesto. Cumpre ordens, mas não totalmente. É capaz de todo bem do mundo assim como de todo mal.

Trata-se de um mundo pendular entre o lítico e o ilícito?

Sim. Se correta a tese dualista da malandragem, deveríamos afirmar que a sociedade brasileira (pelo menos vários segmentos dela) vive zanzando entre dois hemisférios, o positivo (da ordem) e o negativo (da desordem). Voltando a Antonio Candido: a dinâmica do livro citado (Memórias de um sargento de milícias) pressupõe uma gangorra dos dois polos, que transita da ordem estabelecida às condutas transgressivas.

"Tutto nel mondo è burla" seria a expressão legítima desse mundo pendular, diáfano, cujas estruturas morais e éticas habitariam um lugar bem distante de toda rigidez. Vive-se ao sabor do balanceio entre ordem e desordem. Trata-se de uma sociedade "na qual poucos trabalham [ao menos duramente], enquanto outros flutuam ao Deus dará, colhendo as sobras do parasitismo, dos expedientes, das munificências (generosidades), da sorte ou do roubo miúdo".

A sociedade brasileira seria "uma organização fissurada pela anomia, onde se transita entre o lícito e o ilícito, sem muitas vezes podermos dizer o que é um e o que é outro, porque todos acabam circulando de um para outro com uma naturalidade que lembra o modo de formação das famílias, dos prestígios, das fortunas, das reputações, no Brasil urbano da primeira metade do século XIX" [e, com certeza, também do Brasil atual].

Um mundo liberto do peso do erro e do pecado? 

Nas Memórias, prossegue Antonio Candido, "foi criado um universo que parece liberto do peso do erro e do pecado. Um universo sem culpabilidade e mesmo sem repressão. As pessoas fazem coisas que poderiam ser qualificadas como reprováveis, mas fazem também outras dignas de louvor, que as compensam. E como todos têm defeitos, ninguém merece censura". Um mundo sem culpa. Em grande parte esses costumes (do século XIX), que pairam sobre a realidade brasileira diáfana atual, constituem um potente filtro da impunidade.

Eles fornecem, ademais, boas pistas para se compreender o corporativismo reinante nas nossas instituições e nos seus agentes, que seriam guiados pelos pares antitéticos (pelas díades) do lícito ou ilícito, do verdadeiro ou falso, do moral ou imoral, do justo ou injusto, da esquerda ou direta, partido X ou partido Y, liberal ou conservador etc.

As antinomias convivem?

Os referidos pares são reversíveis, diz Antonio Candido, que agrega: "as antinomias convivem num curioso lusco-fusco, sendo a hipocrisia um dos pilares dessa civilização". Se no campo dos costumes os extremos se anulam (se compensam), tudo isso fica mais evidente no campo jurídico, onde praticamente tudo é regulado, de forma aparentemente hermética, dando a sensação de uma ordem onipresente que, na verdade, muitas vezes "não pega".

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No tempo da escravidão declarada (século XIX), chegamos a fazer até mesmo algumas leis de abolição, só para "inglês ver". Tínhamos uma Constituição liberal e escravagista ao mesmo tempo (algo inusitado no mundo). Na área dos direitos sociais e dos direitos humanos fundamentais, são incontáveis os dispositivos legais que jamais são cumpridos. Só para citar um exemplo: a CF assegura saúde para todos, mas grande parte dos hospitais brasileiros sequer conta com médicos.

Há um ofuscamento entre o justo e o injusto, o certo e o errado, o moral e o imoral, o legal e o ilegal. O desaparecimento de Amarildo, no Rio de Janeiro, também se enquadra nesse tipo de obscuridade gelatinosa, visto que nosso policiamento vai da legalidade ao arbítrio e à ação violenta, sem nenhum tipo de remorso, de repressão ou de sanção interior. O assassinato se tornou "normal". Tudo é indiferente, secundário (adiáforo).

Não temos obsessão pela ordem? 

Essa é uma das nossas características psicossociológicas: ordem, liberdade, leis, dignidade, direitos humanos, tudo isso se apresenta como algo muito abstrato, no contexto das "formas espontâneas de sociabilidade", que ostentam choques permanentes entre "a norma e a conduta", o que torna "menos dramáticos os conflitos de consciência".

A brasileira poderia ser uma sociedade "flex" (para usar uma palavra da moda), muito pouco hermética, que é viva no seu dinamismo relacional, mas que perde em "inteireza e coerência". O princípio eixo é o da "acomodação geral", que tira a força e energia dos extremos, assim como os significados da lei, da ordem, da justiça, da ética etc.

Vivemos numa espécie de "terra-de-ninguém moral", marcada por uma vulgaridade ímpar, sobretudo em algumas manifestações e extimidades das redes sociais, onde as pessoas, muitas vezes protegidas pelo anonimato, fazem uso abundante do "eu autoexpressivo", "que é o eu próprio do individualismo narcisista dominante nas atuais sociedades de hiperconsumo, caracterizadas pela produção de necessidades artificiais constantemente renovadas" (Jacobo Muñoz, Claves de razón práctica, 220, p. 23).

Caminhamos dentro de margens bastante ambíguas, marcadas por uma "tolerância corrosiva", já agora não somente nas classes baixas, senão também nos estratos aburguesados. O Brasil seria "uma terra sem males definitivos ou irremediáveis, regida por uma encantadora neutralidade moral. Não se trabalha, não se passa necessidade, tudo se remedeia" (diz Antonio Candido). Seria um tipo de sociedade "parasitária e indolente", que é viva desde o tempo do Brasil joanino (D. João VI).

Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

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