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Breve esboço a respeito da inexistência de uma teoria geral do processo

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Agenda 24/09/2014 às 12:22

O Direito Processual Civil tem conteúdo próprio, que o difere substancialmente do conteúdo do Direito Processual Penal, motivo pelo qual não é possível aplicar princípios e regras do Processo Civil ao Processo Penal, sob pena de fazermos uma verdadeira e odiosa “processualização civil” do Processo Penal.

Este pequeno artigo trata-se de uma espécie de resumo da minha obra “Crítica à Teoria Geral do Processo”, publicada pela Editora LexMagister, 2014, Porto Alegre/RS. (http://www.multieditoras.com.br/produto.asp?id=1081&site=1).[1]

Obviamente que, como todo resumo, não podemos nos aprofundar sobre o tema (como o fizemos no livro acima referido), mas adianto que ele tem como finalidade oferecer uma pequena contribuição para a desconstrução definitiva a respeito da ideia de que existiria uma Teoria Geral do Processo e, como tal, poder-se-ia conceber o Direito Processual como uma só categoria dentro da ciência do Direito Processual. Pretendo, portanto, fazer uma crítica respeitosa, porém contundente, à chamada Teoria Geral do Processo ou, como alguns preferem, à Teoria Unitária do Processo. A razão pela qual me debrucei sobre o tema é que entendo ter o Direito Processual Civil conteúdo próprio, que o difere substancialmente do conteúdo do Direito Processual Penal, motivo pelo qual não é possível aplicar princípios e regras do Processo Civil ao Processo Penal, sob pena de fazermos uma verdadeira e odiosa “processualização civil” do Processo Penal.

Com efeito, esta Teoria Geral é inadmissível exatamente porque não há qualquer similitude entre os conteúdos do Processo Civil e do Processo Penal. Por óbvio que conceitos genéricos, tais como os de jurisdição (nada obstante, no Processo Penal não se poder falar em lide), processo, órgãos judiciários, competência (com muitas ressalvas), procedimento (idem), atos processuais, prova, etc, servem para as duas disciplinas. A jurisdição, como a função de julgar, é una, por exemplo. A natureza jurídica do processo, também. Da mesma forma, a garantia ao duplo grau de jurisdição, e assim por diante... Igualmente em relação à natureza jurídica do processo, ainda que se conceba o processo como relação jurídica (Oskar von Bülow), como situação jurídica (James Goldschmidt), como instituição (Jaime Guasp), como serviço público (Léon Duguit e Gaston Jèze), etc., etc.  

Porém, evidentemente, que esta afirmação última jamais pode ter o condão de admitirmos uma Teoria Geral do Processo, mesmo porque, ainda que, por exemplo, o conceito de prova seja o mesmo, trate-se de Processo Civil ou Processo Penal, há uma diferença abissal quando nos aprofundamos no seu estudo no Processo Penal: a questão do ônus e da gestão da prova são exemplos irrespondíveis.

Sou daqueles que entendem que o Direito Processual Civil tem o seu próprio conteúdo que o difere substancialmente do conteúdo do Direito Processual Penal, razão pela qual não é possível aplicar princípios e regras do Processo Civil ao Processo Penal, sob pena de fazermos uma verdadeira e odiosa “processualização civil” do Processo Penal.

A Teoria Unitária é inadmissível exatamente porque não há similitude entre os conteúdos do Processo Civil e do Processo Penal. Eugenio Florian, já em 1927, teve a lucidez de estabelecer a contradição de uma Teoria Geral do Processo. Para ele era inadmissível a tese da identidade dos dois processos:

“A nosso juízo, o processo penal e o civil são duas instituições distintas. O objeto essência do processo penal é, como vimos, uma relação de direito público, porque nele se desenvolve outra relação de direito penal. Já no processo civil o objeto é sempre ou quase sempre uma relação de direito privado, seja civil ou mercantil. (...) O processo penal é o instrumento normalmente indispensável para a aplicação da lei penal em cada caso; o civil, ao contrário, não é sempre necessário para atuar as relações de direito privado. (...) No processo civil o juízo está regido exclusivamente por critérios jurídicos puros (...), ao contrário do processo penal em que se julga um homem e, por isso mesmo, o juiz deve inspirar-se em critérios ético sociais. (...) O processo civil tem caráter estritamente jurídico, e o penal, no qual se trata de julgar um homem, tem também caráter ético. (...) Leva-se em consideração, equivocadamente, algumas formas comuns entre o processo civil e o processo penal de mínima importância, descuidando-se de elementos diferentes, que são decisivos. (...) O triunfo da tese unitária conduziria a absorção da ciência do processo penal pela ciência do processo civil, perdendo o primeiro a sua autonomia, resultando profundamente alterado  em sua concepção e estrutura.”[2] (tradução minha).

Interessante que Ovídio Baptista da Silva, consagrado processualista civil, ao escrever a sua Teoria Geral do Processo Civil (em coautoria com Fábio Gomes), posiciona-se terminantemente contrário à Teoria Unitária do Processo. Após alinhar alguns argumentos de outros autores a favor da tese, afirma: “Não convencem, entretanto, as razões alinhadas em prol da construção de um conceito unitário, bem como da elaboração de uma teoria geral adequada tanto ao processo civil como ao processo penal. Muitos doutrinadores que defendem tal unidade se contradizem logo de início. (...) Os próprios doutrinadores que defendem a unidade fundamental do processo ressalvam a identidade própria dos respectivos ramos, o que, a rigor, encerra uma contradição; a não ser que entendamos esta unidade em termos extremamente finalísticos, mas, então, cair-se-ia no plano da teoria geral do direito. (...) O direito processual civil, como o direito processual penal, juntamente como todos os demais ramos da ciência jurídica, constituem uma vasta unidade, um conjunto harmônico de normas coordenadas, cuja independência, entretanto, deve ser respeitada.”[3]

A propósito, prefaciando o meu primeiro livro, escreveu generosa e exageradamente, Calmon de Passos, adepto ferrenho de uma Teoria Geral do Processo:

Em nenhum momento de minha vida de professor ministrei aulas de Processo Penal, nem jamais publiquei algum artigo versando algum de seus problemas relevantes. (...) Para não ser infiel à verdade, direi que se me faltam credenciais como mestre de Processo Penal, não sou de todo desprovido das virtudes de um bom aluno dessa disciplina. E que bom aluno tenho sido quando presente, e sempre estou, às aulas que Rômulo ministra no Curso de Especialização em Processo que coordeno na UNIFACS! Faço coro com meus colegas, unânimes em louvar a clareza de sua exposição, o rigor lógico a que submete seu pensamento, sua correção terminológica e seu empenho em fugir do “discurso” jurídico inconsequente, que muitas vezes se pretende também eloquente. Esse rigor intelectual de Rômulo no tocante ao que ensina é igual ao rigor ético que se impõe em seu comportamento profissional. É esse mestre e esse homem que se revelam presentes nos trabalhos que compõem este volume de estudos de Processo Penal editado pela Forense. Em todos os artigos estão presentes as marcas da excelência de Rômulo: clareza, correção técnica e erudição sem excesso. E concluo asseverando que tudo quanto dito aqui não foi ditado pelo coração, sim pela razão fria e objetiva de um estudioso do Direito que se rejubila quando se dá conta de que, sendo um apaixonado pelo saber que escolheu e alguém consciente de já estar em fim de jornada, pode recompor suas forças com a certeza de que a grande viagem que é a aventura humana prosseguirá, mesmo sem ele, nos que foram ontem seus alunos e hoje já se podem intitular seus mestres.” (Salvador, 07 de março de 2002). Grifei.                            

No mesmo sentido, o Professor René Ariel Dotti, dono de um dos maiores escritórios de advocacia criminal do Brasil, ao receber o meu livro acima referido, passou-me um telegrama, que ora transcrevo ipsis litteris: “Agradeço a remessa de sua Crítica à Teoria Geral do Processo que envolve um tema desafiador e fascinante para demonstrar a ilusão de ótica que processualistas civis procuraram impor aos penalistas com a tentativa de misturar o azeite com o vinagre. Meus parabéns pela iniciativa e pela sensibilidade em desmistificar essa crendice.”

Da mesma maneira, ao agradecer o envio de um exemplar, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, generosamente, afirmou em um bilhete: “Seu livro é a prova de que os problemas resultantes dessa ´coisa` estão vivos; e contra isso é preciso lutar. Parabéns.”

Aliás, Gustavo Badaró, em acertada observação, adverte que: “A própria relação jurídica processual penal é artificial. (...) Embora não haja lide no processo penal, isso não quer dizer que se trate de um processo de jurisdição voluntária. (...) O processo penal apresenta, em seu conteúdo, uma controvérsia a respeito da veracidade ou não da imputação.”[4]

O mesmo se diga em relação aos conceitos de parte e lide no processo penal. Mesmo em referência ao duplo grau de jurisdição podemos identificar com uma grande facilidade diferenças tão contundentes que não condizem com uma Teoria Geral do Processo.

Vejamos, ainda que en passant, o que se pode entender como sendo uma teoria geral. Na acepção clássica da filosofia grega, a palavra teoria é o “conhecimento especulativo, abstrato, puro, que se afasta do mundo da experiência concreta, sensível.” Nas palavras dos filósofos Hilton Japiassu e Danilo Marcondes, é o “saber puro, sem preocupação prática” ou um “conjunto de hipóteses sistematicamente organizadas que pretende, através de sua verificação, confirmação ou correção, explicar uma realidade determinada.” Por sua vez, e ainda sob o ponto de vista da filosofia, o vocábulo geral denomina algo que é universal e se opõe ao particular. Aliás, para Descartes, citado pelos autores acima referidos, “é próprio do nosso espírito formar propriedades gerais do conhecimento das particulares.”[5] Já no campo do Direito, Miguel Reale define a teoria como: “A conversão de um assunto em problema, sujeito a indagação e pesquisa, a fim de superar a particularidade dos casos isolados, para englobá-los numa forma de compreensão, que correlacione entre si as partes e o todo.” (grifos no original).

Obviamente que sob estes aspectos é imperioso uma Teoria Geral do Direito ou uma Teoria Geral do Estado, pois a Ciência Jurídica não pode ficar “circunscrita à análise destes ou daqueles quadros particulares de normas, mas procura estruturá-los segundo princípios ou conceitos gerais unificadores.” Isso sim é necessário e evidente. Não, contudo, em relação aos mais diversos ramos do Direito em particular. Portanto, a Teoria Geral do Direito existe, é imprescindível e de induvidosa importância, pois não se pode deixar de fixar:  “Os princípios ou diretrizes capazes de elucidar-nos sobre a estrutura das regras jurídicas e sua concatenação lógica, bem como sobre os motivos que governam os distintos campos da experiência jurídica”, mesmo porque não adianta “conhecer um pouco de cada coisa, e de tudo nada....[6]

A propósito, ainda Miguel Reale: “O Estado é uma realidade cultural, isto é, uma realidade constituída naturalmente em virtude da própria natureza social do homem, mas isto não implica, de forma alguma, na negação de que se deva levar também em conta a contribuição que consciente ou voluntariamente o homem tem trazido à organização da ordem estatal”.[7]

Em definitivo, há “coisas” completamente diferentes entre o Processo Penal e o Processo Civil e não somente meras peculiaridades, como costumam afirmar os adeptos da Teoria Unitária. Tais “peculiaridades” do Processo Penal são tão evidentes e tão diversas que devemos, no seu estudo, esquecer os princípios e regras orientadoras do Processo Civil.

Não esqueçamos que na ciência do Processo Penal exige-se obediência cartesiana ao Princípio do Favor Libertatis, possivelmente um dos grandes obstáculos para a admissibilidade da Teoria Geral do Processo. Este postulado deve ser obrigatoriamente observado em toda e qualquer interpretação das normas processuais penais.

Ressalto que aqui não levo em consideração a diferença entre postulado e princípio, mesmo porque só compreendo como essencial diferençar princípios de regras, já que o grau de abstração dos primeiros impede-me diferençá-los, nada obstante a autoridade de autores que o fazem, como Humberto Ávila, aqui citado por todos, cuja obra consta das referências bibliográficas.

Ademais, o também chamado Princípio do Favor Rei também impõe ao legislador processual penal a sua observância, quando da elaboração destas disposições jurídicas o que, evidentemente, não ocorre no Processo Civil, pois não se pode falar na relação processual civil qualquer atentado (ainda que remoto) à liberdade de locomoção, com exceção da prisão civil do alimentante faltoso, ainda assim por força de dispositivo constitucional.

Lembremos, com Giuseppe Bettiol:

"Numa determinada óptica, o princípio do favor rei é o princípio base de toda a legislação processual penal de um Estado inspirado, na sua vida política e no seu ordenamento jurídico, por um critério superior de liberdade.” (...) Não há, efetivamente, Estado autenticamente livre e democrático em que tal princípio não encontre acolhimento. É uma constante das articulações jurídicas de semelhante Estado, um empenho no reconhecimento da liberdade e autonomia da pessoa humana.” (...) No conflito entre o jus puniendi do Estado por um lado e o jus libertatis do arguido por outro, a balança deve inclinar-se a favor deste último se se quer assistir ao triunfo da liberdade.”[8]

Em relação à competência, sabemos que no Processo Penal a regra (ao contrário do Processo Civil (arts. 94 a 100 do Código de Processo Civil) para a determinação da competência territorial ou será o lugar da consumação do delito (art. 70 do Código de Processo Penal) ou, excepcionalmente, o da prática da infração penal de menor potencial ofensivo, nos termos do art. 63 da Lei nº. 9.099/95, tendo em vista o Princípio da Ubiquidade (art. 6º., Código Penal).

Já o domicílio do réu é um critério subsidiário, raramente utilizado na prática quando não se sabe o lugar do crime (art. 72, Código de Processo Penal) ou na ação penal de iniciativa privada, facultando-se à vítima, neste último caso, a escolha do foro competente (art. 73).

No Processo Penal também se determina a competência o fato de o réu ser ocupante de uma determinada função pública (termo aqui utilizado em sentido amplo, incluindo-se o mandato eletivo)[9], a chamada prerrogativa de função prevista no art. 69, VII do Código de Processo Penal e também na Constituição Federal (arts. 29, X, art. 96, III, 108, I, “a”, 102, I, “b” e “c” e 105, I, “a”) e nas Constituições estaduais (na Bahia, veja-se o art. 123, I, “a”, determinando ser do Tribunal de Justiça a competência para julgar o Vice-Governador, Secretários de Estado, Deputados Estaduais, o Procurador-Geral do Estado, os Defensores Públicos, dentre outras autoridades públicas.

Neste aspecto, a diferença entre os diversos Estados da Federação, pode-se afirmar, é mínima). Observo que não é uma competência ratione personae, como se costuma afirmar com certa frequência, mas, exclusivamente, em razão do exercício de uma função pública.

Ora, em matéria cível não há tal critério para se determinar a competência, salvo raríssimos casos como a competência das varas da Fazenda Pública (que não se trata, evidentemente, de uma “ação cível originária”) ou no caso do art. 102, I, “d”, da Constituição.

Com efeito, e segundo a lição de Luiz Flávio Gomes: “A competência por prerrogativa de função versa exclusivamente sobre atividades criminais. Não se estende à investigação de natureza civil.”[10]

Aliás, veja-se a impropriedade desta disposição encontrar-se em um código processual penal, quando se sabe que os atos de improbidade administrativa não são ilícitos penais, mas infrações de outra natureza (civil, administrativa e política). Logo, a previsão deveria estar contida em outro diploma, jamais no Código de Processo Penal, livro reservado à disciplina da persecutio criminis e de seus consectários. Maria Sylvia Zanella di Pietro esclarece que: “A natureza das medidas previstas no dispositivo constitucional está a indicar que a improbidade administrativa, embora possa ter consequência na esfera criminal, com a concomitante instauração de processo criminal (se for o caso) e na esfera administrativa (com a perda da função pública e a instauração de processo administrativo concomitante) caracteriza um ilícito de natureza civil e política, porque pode implicar a suspensão dos direitos políticos, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento dos danos causados ao erário.”[11]

Também o art. 37, § 4º. da Constituição Federal é expresso no sentido de que: “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.” Observa-se que o próprio texto constitucional nitidamente faz a distinção.

Merece também destaque a questão da prevenção como critério determinador da competência penal. Se tal hipótese é possível no Processo Civil, sem problemas (arts. 106, 107 e 219 do Código de Processo Civil), no Processo Penal é absolutamente inconstitucional, pois fere os princípios e as regras atinentes ao sistema acusatório (ver adiante quando trato do iniciativa instrutória do Juiz penal).

É bem verdade que os arts. 69, VI, 75, parágrafo único e 83 do nosso vetusto Código de Processo Penal estabelecem como um dos critérios determinadores da competência exatamente a prevenção. Por ela, e em linhas gerais, qualquer ato praticado por um Juiz de Direito, ainda que anterior ao processo, torna o respectivo Juízo prevento.

Claro que tais disposições não deveriam constar de um diploma processual penal de um Estado Democrático de Direito, pois a prevenção, longe de atrair a competência do juízo penal, deveria excluí-la, visto que a prática deste ato judicial anterior ao processo criminal atinge inevitavelmente a imparcialidade do julgador.

Observe-se, por exemplo, que para se decretar a prisão preventiva o Juiz deve obrigatoriamente, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal, admitir a “existência do crime e indício suficiente de autoria”, o que já significa um posicionamento quanto ao mérito da causa penal e, por conseguinte, um julgamento prévio.

Não por menos que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) já decidiu, desde há muito, pela exclusão do julgador que de alguma forma atuou na fase investigatória: “Sem dúvida, chegou o momento de repensar a prevenção e também a relação juiz/inquérito, pois ao invés de caminhar em direção à figura do juiz garante ou de garantias, alheio à investigação e verdadeiro órgão supra partes, está sendo tomado o caminho errado do juiz instrutor. E, mais: a imparcialidade do julgador está comprometida não só pela atividade de reunir material ou estar em contato com as fontes de investigação, mas pelos diversos pré-julgamentos que realiza no curso da investigação preliminar (como na adoção de medidas cautelares, busca e apreensão[12], autorização para intervenção telefônica[13], etc.).”[14] Grifos do original.

O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, já decidiu que “o princípio constitucional do justo processo legal manda que cada causa tenha um magistrado competente para decidi-la”.

Neste julgamento, ao votar pela concessão do habeas corpus, o relator, Ministro César Peluso afirmou que: "O juiz já teria feito um pré-julgamento do réu ao receber a ação penal”. “Ele teve um contato com o réu que não foi superficial. (...) A sentença condenatória penal estaria repleta de remissões aos atos das investigações prévias, além de ter opiniões anteriormente concebidas e expostas. (...) Ele teve um contato com o réu que não foi superficial. (...) A sentença condenatória penal estaria repleta de remissões aos atos das investigações prévias, além de ter opiniões anteriormente concebidas e expostas”. (Habeas Corpus nº. 94641).´

Veja-se que, ao contrário do Processo Civil (art. 114, Código de Processo Civil), não há falar-se em prorrogação de competência no Processo Penal, ainda que se trate de competência relativa, pois, segundo o art. 109 do Código de Processo Penal: “Se em qualquer fase do processo o juiz reconhecer motivo que o torne incompetente, declará-lo-á nos autos, haja ou não alegação da parte, prosseguindo-se na forma do artigo anterior.”

Logo, como afirmei acima, nada obstante não se poder, do ponto de vista puramente conceitual e dogmático, enxergar uma diferença entre a competência, seja em qual ramo do Direito estejamos tratando, uma Teoria Geral do Processo não resolveria inúmeras questões atinentes à competência no âmbito do Processo Penal, pois muitos dos chamados “critérios determinadores e modificadores” devem ser analisados sob prisma completamente diverso, inclusive no que diz respeito à conexão, à continência e ao desaforamento (arts. 76, 77 e 427 do Código de Processo Penal).

Em relação ao ônus da prova, é cediço que no Processo Civil compete ao réu alegar, na contestação, toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito com que impugna o pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir, cabendo manifestar-se precisamente sobre os fatos narrados na petição inicial, presumindo-se verdadeiros os fatos não impugnados, salvo raríssimos casos (esta regra apenas não se aplica ao advogado dativo, ao curador especial e ao órgão do Ministério Público). É abissal a diferença entre os dois ramos do Direito Processual, a impedir cogitar-se de uma Teoria Geral do Processo.

Os defendores de uma Teoria Geral do Processo, todos, enfrentaram a questão exclusivamente sob a ótica de um processo em que não se imputa a alguém a prática de um fato típico, antijurídico e culpável (além de punível) e sem atentar para o Princípio da Inocência e do In Dubio Pro Reo. Eram, como se sabe, Professores de Processo Civil... No Processo Penal, contudo, o ônus da prova é sempre da acusação. Estabelecer, simples e categoricamente, que “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer”, repetindo o Código de Processo Civil (art. 333, I e II), é fazer tábula rasa dos referidos princípios (conferir o art. 5º., LVII da Constituição Federal).

Aliás, o próprio Michelli, após citar as obras de Bettiol e Saraceno como decisivas para uma mudança de paradigma nesta questão, afirma que, diferentemente do Processo Civil, no Processo Penal: “À acusação incumbe a prova positiva da inexistência dos fatos que excluem o delito. Consequentemente, o Juiz deverá absolver, quando não tenha provas suficientes de que o acusado cometeu o fato que lhe foi atribuído, e também deverá absolver quando faltem provas suficientes para excluir, por exemplo, a legítima defesa.” (Tradução minha).[15]

Efetivamente, Giuseppe Bettiol, muito influenciado pela doutrina germânica, foi um dos responsáveis na Itália pela revisão da doutrina clássica acerca da distribuição da prova no processo, fato observado por Michelli.[16] Para Bettiol, com efeito: “É sobre o Ministério Público que recai todo o peso do ônus da prova no processo penal. Isto no sentido de que ele é chamado a demonstrar (se pretende eliminar da mente do juiz todo o resíduo de dúvida) a realidade dos fatos constitutivos da pretensão punitiva (o acusado de crime de furto subtraiu efetivamente uma coisa móvel de outrem) e a inexistência de fatos impeditivos (não se verificou a favor do réu o estado de necessidade que justificaria o delito de furto): isto é, todo o complexo dos pressupostos, elementos, condições e circunstâncias que tornam possível a aplicação da pena.”[17]

Atentemos, outrossim, para a lição de Julio MaierLa carga de la prueba de la inocencia no le corresponde al imputado o, de otra manera, que la carga de demonstrar la culpabilidad del imputado le corresponde al acusador y, también, que toda la teoria de la carga probatória no tiene sentido en el procedimiento penal. (...) El imputado no tiene necessidad de construir su inocencia, ya construida de antemano por la presunción que lo ampara, sino que, antes bien, quien lo condena debe destruir completamente esa posición, arribando a la certeza sobre la comisión de un hecho punible.”[18]

Evidentemente que esta conclusão decorre do art. 5.º, LVII da Constituição, pois se ninguém pode ser considerado culpado até trânsito em julgado da sentença penal condenatória, “cabe indagar se a ilicitude da conduta é ou não necessária para a condenação. Evidentemente que a resposta é positiva e, em consequência, a ilicitude da conduta também é objeto da presunção de inocência: se houver dúvida sobre uma causa de excludente de ilicitude, o acusado deve ser absolvido”, como bem nota Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró.[19] Obviamente que: “não se pode confundir o ônus da prova com interesse em provar determinado fato. O acusado não tem o ônus de provar a existência da excludente de ilicitude, nem mesmo o ônus de gerar dúvida, mas tem interesse em provar a sua ocorrência. Sendo o ônus da prova uma regra de julgamento, que somente deve ser utilizado no momento decisório, ante a dúvida do juiz sobre fato relevante, é evidente que o acusado tem interesse em provar que a excludente efetivamente acorreu. Demonstrou a existência da excludente, a sentença será absolutória, não sendo sequer necessário recorrer às regras sobre ônus da prova. Este interesse, contudo, não se confunde com ônus de provar. Se o acusado, embora interessado em provar plenamente a ocorrência da excludente, não consegue levar ao juiz a certeza de sua ocorrência, mesmo assim, se surgir a dúvida sobre sua ocorrência – o que significa que o acusador não conseguiu desincumbir-se do seu ônus de provar plenamente a inocorrência da excludente -, a consequência será absolvição. Em tal caso, fica claro, portanto, que o acusado tinha interesse em provar, por exemplo, a legitima defesa, mas isto não significa que tivesse o ônus de demonstrar a ocorrência da excludente de ilicitude.[20]

Outro argumento intransponível para rejeitar a tese de uma Teoria Geral do Processo reside na impossibilidade de se permitir ao Juiz penal atividade de natureza eminentemente persecutória (agir de ofício), o que significa um gravíssimo atentado aos postulados do sistema acusatório. O que é admissível no Processo Civil (até por força do Princípio do Impulso Processual), soa absurdo no Processo Penal. A propósito, Juan Montero Aroca: “Si el medio de prueba practicado de oficio por el tribunal de instancia tiene por objeto la comprobación de los hechos, esto es, se dirige a probar su existencia o inexistencia, se produce la quiebra de la imparcialidad objetiva del tribunal.”[21]

Tudo isso resulta da concepção que o único sistema processual admissível em um Estado Democrático de Direito é o sistema acusatório que, a par de distinguir perfeitamente as três funções precípuas em uma ação penal (o julgador, o acusador e a defesa), afasta o Juiz completamente da gestão da prova, o que não ocorre necessariamente no Processo Civil. Tais sujeitos processuais devem estar absolutamente separados (no que diz respeito às respectivas atribuições e competência), de forma que o julgador não acuse, nem defenda (preservando a sua necessária imparcialidade), o acusador não julgue e o defensor cumpra a sua missão constitucional de exercer a defesa técnica.

Nada obstante, vejamos esta observação de uma processualista civil: "A doutrina costuma relacionar o modelo adversarial-dispositivo a regimes não-autoritários, politicamente mais liberais, e o modelo inquisitivo a regimes autoritários, intervencionistas. Trata-se de afirmação bem frequente na doutrina. A ilação é um tanto simplista. Se é certo que dados culturais certamente influenciarão a conformação do processo, método de exercício do poder, não há relação direta entre aumento de poderes do juiz e regimes autocráticos, ou incremento do papel das partes e regimes democráticos. Nem processo dispositivo é sinônimo de processo democrático, nem processo inquisitivo significa processo autoritário."[22]

Observa-se que no sistema acusatório é vedado ao Juiz proceder como órgão persecutório. É conhecido o princípio do ne procedat judex ex officio, verdadeiro dogma do sistema acusatório. Nele, segundo o professor da Universidade de Santiago de Compostela, Juan-Luís Gómez Colomer: “Hay necesidad de una acusación, formulada e mantenida por persona distinta a quien tiene que juzgar, para que se pueda abrir y celebrar el juicio e, consecuentemente, se pueda condenar”[23], proibindo-se “al órgano decisor realizar las funciones de la parte acusadora”[24], “que aqui surge com autonomia e sem qualquer relacionamento com a autoridade encarregue do julgamento”[25].

Sobre o sistema acusatório, assim escreveu André Vitu: “Ce système procédural se retrouve à l’origine des diverses civilisations méditerranéennes et occidentales: en Grèce, à Rome vers la fin de la Republique, dans le droit germanique, à l’époque franque et dans la procédure féodale. Ce système, qui ne distingue pás la procédure criminelle de la procédure, se caractérise par des traits qu’on retrouve dans les différents pays qui l’ont consacré. Dans l’organisation de la justice, la procédure accusatoire suppose une complète égalité entre l’accusation et la défense.”[26]

O próprio José Frederico Marques, adepto da Teoria Geral do Processo, afirmava: “A titularidade da pretensão punitiva pertence ao Estado, representado pelo Ministério Público, e não ao juiz, órgão estatal, tão-somente, da aplicação imparcial da lei para dirimir os conflitos entre o jus puniendi e a liberdade do réu. Não há, em nosso processo penal, a figura do juiz inquisitivo. Separadas estão, no Direito pátrio, a função de acusar e a função jurisdicional. (...) O juiz exerce o poder de julgar e as funções inerentes à atividade jurisdicional: atribuições persecutórias, ele as tem muito restritas, e assim mesmo confinadas ao campo da notitia criminis. No que tange com a ação penal e à função de acusar, sua atividade é praticamente nula, visto que ambas foram adjudicadas ao Ministério Público.”[27] Grifo do autor citado.

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Ainda como corolário dos princípios atinentes ao sistema acusatório, aduzo a necessidade de se afastar o Juiz, o mais possível, da atividade instrutória[28]. Um dos argumentos mais utilizados para a admissão do Juiz na colheita da prova é a decantada busca da verdade real, verdadeiro dogma do processo penal[29]. Ocorre que este dogma está em franca decadência, pois hoje se sabe que a verdade a ser buscada é aquela processualmente possível, dentro dos limites impostos pelo sistema e pelo ordenamento jurídico.

Como ensina Muñoz Conde:

“El proceso penal de un Estado de Derecho no solamente debe lograr el equilibrio entre la búsqueda de la verdad y la dignidad de los acusados, sino que debe entender la verdad misma no como una verdad absoluta, sino como el deber de apoyar una condena sólo sobre aquello que indubitada e intersubjetivamente puede darse como probado. Lo demás es puro fascismo y la vuelta a los tiempos de la Inquisición, de los que se supone hemos ya felizmente salido.”[30]

Com efeito, não se pode, por conta de uma busca de algo muitas vezes inatingível (a verdade...)[31] permitir que o Juiz saia de sua posição de supra partes, a fim de auxiliar, por exemplo, o Ministério Público a provar a imputação posta na peça acusatória. Sobre a verdade material ou substancial, Luigi Ferrajoli afirma:“Ser carente de límites y de confines legales, alcanzable con cualquier medio más allá de rígidas reglas procedimentales. Es evidente que esta pretendida ´verdad sustancial´, al ser perseguida fuera de reglas y controles y, sobre todo, de una exacta predeterminación empírica de las hipótesis de indagación, degenera en juicio de valor, ampliamente arbitrario de hecho, así como que el cognoscitivismo ético sobre el que se basea el sustancialismo penal resulta inevitablemente solidario con una concepción autoritaria e irracionalista del proceso penal”.

Por óbvio não se pode permitir no Processo Penal (como se pode no Processo Civil) uma perigosa e desaconselhável iniciativa instrutória levada a cabo diretamente pelo Juiz. Não é possível tal permissão em um sistema processual acusatório, pois que lembra o velho e pernicioso sistema inquisitivo caracterizado, como diz Ferrajoli: “Por una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad”, ou seja, este sistema “confía no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga”.[32]

Neste ponto[33] é importante uma rápida observação: com efeito, não se pode humanamente e a qualquer custo buscar algo[34] (a verdade), muita vez inatingível.[35]

Esta figura lembra o Juiz Inquisidor “nascido na era do Império Romano, mas com protagonismo acentuado na Idade Média, isto é, época da Inquisição. Não é da tradição do Direito brasileiro e, aliás, também segundo nosso ponto de vista, viola flagrantemente a atual Ordem Constitucional”.[36]

É evidente que tal possibilidade é teratológica, pois não se pode admitir que uma mesma pessoa (o Juiz), ainda que ungido pelos deuses, possa avaliar como “necessário um ato de instrução e ao mesmo tempo valore a sua legalidade. São logicamente incompatíveis as funções de investigar e ao mesmo tempo garantir o respeito aos direitos do imputado. São atividades que não podem ficar nas mãos de uma mesma pessoa, sob pena de comprometer a eficácia das garantias individuais do sujeito passivo e a própria credibilidade da administração da justiça. Em definitivo, não é suscetível de ser pensado que uma mesma pessoa se transforme em um investigador eficiente e, ao mesmo tempo, em um guardião zeloso da segurança individual. É inegável que ‘o bom inquisidor mata o bom juiz ou, ao contrário, o bom juiz desterra o inquisidor’”.[37]

Parece-me claro que deixar (também) nas mãos do Juiz a gestão da prova representa, efetivamente, uma mácula séria aos postulados do sistema acusatório, precipuamente à imprescindível imparcialidade que deve nortear a atuação de um Juiz criminal, o que não se coaduna com a feitura pessoal e direta de diligências investigatórias. Como se disse acima, neste sistema estão divididas claramente as três funções básicas da Justiça Penal, quais sejam: o Ministério Público acusa, o advogado defende e o Juiz apenas julga, em conformidade com as provas produzidas pelas partes. “Este sistema se va imponiendo en la mayoría de los sistemas procesales. En la práctica, ha demonstrado ser mucho más eficaz, tanto para profundizar la investigación como para preservar las garantías procesales”, como bem acentua Alberto Binder.[38]

Como diz Juan Montero Aroca: “En correlación con que la Jurisdicción juzga sobre asuntos de otros, la primera exigencia respecto del juez es la de que éste no puede ser, al mismo tiempo, parte en el conflicto que se somete a su decisión.”[39]

Quanto à neutralidade, faz-se uma ressalva, pois não acredito em um Juiz neutro (como em um Promotor de Justiça ou um Procurador da República neutro). Há sempre circunstâncias que, queiram ou não, influenciam em decisões e pareceres, sejam de natureza ideológica, política, social, etc., etc. Como notou Eros Roberto Grau:  "Ainda que os princípios os vinculem, a neutralidade política do intérprete só existe nos livros. Na práxis do direito ela se dissolve, sempre. Lembre-se que todas as decisões jurídicas, porque jurídicas, são políticas.”[40] São inconfundíveis a neutralidade e a imparcialidade. É ingenuidade acreditar-se em um Juiz neutro, mas absolutamente indispensável um Juiz imparcial.

Um Magistrado imparcial, como afirmam Alexandre Bizzotto, Augusto Jobim e Marcos Eberhardt, implica em um “formal afastamento fático do fato julgado, não podendo o Magistrado ter vínculos objetivos com o fato concreto colocado à discussão processual. Coloca-se daí na condição de terceiro estranho ao caso penal. (...) Já a neutralidade é a assunção da alienação judicial, negando-se ingenuamente o humano no juiz. Este agente político partícipe da vida social sente (a própria sentença é um ato de sentir), age, pensa e sofre todas as influências provocadas pela sociedade pós-moderna. Afirmar que o juiz é neutro é ocultar uma realidade.”[41]

A propósito da verdade real, que pode até ser aceitável no Processo Civil, cito Michele Taruffo:

“La distinción entre verdad formal y verdad material es, sin embargo, inaceptable por varias razones que la doctrina menos superficial ha puesto en evidencia desde hace tiempo. En especial, parece insostenible la idea de una verdad judicial que sea completamente ‘distinta’ y autónoma de la vedad ‘tout court’ por el solo hecho de que es determinada en el proceso y por medio de las pruebas; la existencia de reglas jurídicas y de límites de distinta naturaleza sirve, como máximo, para excluir la posibilidad de obtener verdades absolutas, pero no es suficiente para diferenciar totalmente la verdad que se establece en el proceso de aquella de la que se habla fuera del mismo [...] La expresión ‘verdad material’, y las otras expresiones sinónimas, resultan etiquetas sin significado si no vinculan al problema general de la verdade.”[42]

Mais uma observação: como se sabe, no Processo Civil a confissão pode ser feita até por mandatários com poderes especiais; ademais, admite-se a confissão extrajudicial, feita por escrito à parte ou a quem a represente, tendo esta a mesma eficácia probatória da judicial. Também aqui a confissão é, de regra, indivisível, não podendo a parte, que a quiser invocar como prova, aceitá-la no tópico que a beneficiar e rejeitá-la no que lhe for desfavorável.

Ora, tais disposições processuais civis são inteiramente despropositadas se cotejadas com os princípios e regras orientadoras de um Processo Penal garantidor.

Evidentemente que a confissão é um meio de prova também previsto no Código de Processo Penal (arts. 197 a 200). Outrora considerada como a regina probationum, hoje, contudo, seu valor probatório é relativo, devendo ser corroborada por outros meios de prova também admitidos e avaliada em conformidade com o sistema do livre convencimento (art. 197).

Para Carlos Duran:

“La confesión del acusado consiste en el expreso reconocimiento de haber ejecutado el hecho delictivo de que se le acusa. Existe confesión aun cuando el reconocimiento del acusado sea parcial, bien porque sólo admita una parte del hecho o de los hechos imputados al mismo, bien porque se limite a considerarse como un simple cómplice de la perpetración del delito, rechazando su consideración como autor o como cooperador necesario”.[43]

Como dito acima, a confissão já foi considerada a rainha das provas, a ponto de serem legítimos, para consegui-la, métodos verdadeiramente desumanos, como a tortura. O seu apogeu deu-se durante o reinado do processo inquisitivo. Em reação (e por razões eminentemente humanitárias), muitos passaram a pregar uma posição diametralmente oposta e radicalmente concebida: o desvalor absoluto da confissão, negando-se-lhe legitimidade como meio de prova, taxando-a de imoral e cruel, sob o argumento de que feria a própria natureza humana o admitir a própria culpa. Haveria, portanto, uma impossibilidade moral na confissão.

Hoje se valora relativamente tal prova, pois ainda que não possa ser considerada de forma incontestável, tampouco se pode concebê-la como meio de prova imprestável. Relativizou-se, portanto, o seu valor probatório. Esta tendência doutrinária consubstanciou-se no art. 197 do Código de Processo Penal. Pelo sistema do livre convencimento, o Juiz “deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância”.

Justificando a relatividade da confissão no Juízo penal, ao contrário do que ocorre, em regra, no cível, escreveu Malatesta: “A justiça penal não atinge seus fins, golpeando um bode expiatório qualquer; precisa do verdadeiro delinqüente, para que se torne legítima a sua ação. Sem a certeza da culpabilidade, mesmo havendo a aquiescência do acusado, a condenação seria sempre monstruosa, e perturbaria a consciência social mais que qualquer outro delito. Ora, desde que nem toda confissão inspira certeza da culpabilidade, segue-se que a máxima confessus pro judicato habetur, sempre boa no campo civil, deve ser rejeitada no do direito penal.”[44]

É importante assinalar que, ao contrário do Processo Civil, não há no Processo Penal a confissão ficta. Não existe no Código de Processo Penal disposição similar àquela contida no diploma processual civil, segundo a qual “não sendo contestada a ação, se presumirão aceitos pelo réu, como verdadeiros, os fatos articulados pelo autor”. (art. 285, in fine). No Juízo criminal dizer-se tal coisa representa uma verdadeira heresia, um descompasso doutrinário que beira à teratologia jurídica.

Como diz Mittermaier:“A confissão deve ser o produto da vontade livre do acusado; é preciso que ele tenha tido a intenção firme de dizer a verdade; é preciso que nem o temor, nem o constrangimento, nem alguma inspiração estranha pareça ditar-lhe os meios”.[45]

Ferrajoli adverte sobre a proibição: "No solo de arrancar la confesión con violência, sino también de obtenerla mediante manipulaciones de la psique, con drogas o con prácticas hipnóticas”.[46]

Importante, igualmente, analisar a natureza jurídica da ação penal. Como se sabe, a ação penal, sob o ponto de vista de uma classificação subjetiva, em que se leva em consideração o titular da ação, pode ser pública (condicionada ou incondicionada), de iniciativa privada ou mesmo popular (como veremos adiante). Por outro lado, as duas regras mais importantes que regem a ação penal pública são exatamente a da obrigatoriedade (ou como preferem outros, a da legalidade) e a da indisponibilidade. A primeira impõe ao titular da ação penal pública (privativamente o Ministério Público – art. 129, I, da Constituição) o oferecimento da denúncia, obviamente havendo justa causa (indícios suficientes da autoria e prova da existência de uma infração penal), não havendo para este órgão estatal qualquer espaço de discricionariedade, como em outros países onde se admite ao Ministério Público fazer um juízo de conveniência e oportunidade para iniciar a ação penal (por exemplo, na Alemanha, § 153, § 153a e § 153c da StPO). Tal princípio encontra-se consagrado no art. 24 do Código de Processo Penal.

Ora, sendo a ação um direito a ser exercido contra o Estado (ou um direito potestativo exercido contra o adversário, como queria Chiovenda), e sendo o direito uma “faculdade” que se pode livremente exercer ou não, (não sendo, portanto, algo obrigatório), não concebo que a ação penal pública (seja condicionada ou incondicionada) inclua-se nesta categoria. O Ministério Público, pelo menos na maioria dos sistemas jurídicos que adotam a regra da obrigatoriedade da ação penal pública, não tem esta “faculdade” de iniciar ou não a ação penal, com o oferecimento da peça acusatória, salvo, evidentemente se não houver justa causa ou não estiverem presentes as condições para o exercício da ação penal ou mesmo faltar algum pressuposto processual. Do contrário, resta um dever jurídico, um verdadeiro dever de Estado em acusar o suposto autor da ação penal (com algumas exceções).

Um dos poucos autores brasileiros a enfrentar esta questão foi José Antonio Paganella Boschi:“A ação penal pode ter natureza de direito subjetivo público nas ações de iniciativa privada ou de dever jurídico nas ações públicas, uma vez que, nas ações privadas, um dos requisitos é o próprio sujeito ou seu representante, e nas ações publicas é dever do Estado.”[47]

Ainda que a contragosto (pois era um fascista e advogado de Benito Mussolini) transcrevo a lição de Vicenzo Manzini, no sentido de que no Processo Penal o Ministério Público:“Nada pede em seu próprio nome, mas atua como órgão do Estado no exercício de uma função pública para a atuação do direito objetivo. A pretensão punitiva do Estado que o Ministério Público faz valer ante o juiz, não está vinculada a um direito subjetivo, senão ao poder-dever de atuar objetivamente a vontade soberana da lei.” (tradução minha).[48]

Por outro lado, como se falar em uma Teoria Geral do Processo se o Ministério Público não pode desistir da ação penal, segundo dispõem categoricamente os arts. 42 e 576 do Código de Processo Penal? Oferecida a peça acusatória ou interposto o recurso, não há falar-se em desistência do órgão público, o que destoa completamente das regras e dos princípios atinentes ao Processo Civil. É a chamada regra da indisponibilidade da ação penal pública (condicionada ou incondicionada). Vale ressaltar que, assim como ocorre com a regra da obrigatoriedade, alguns países adotam a regra da disponibilidade, ainda que se trate da ação penal pública (neste sentido, mais uma vez, veja-se o Código de Processo Penal Alemão - StPO).

É bem verdade que temos (ainda!) a ação penal de iniciativa privada, um esdrúxulo caso de substituição processual (contra Aury Lopes Jr.[49]). Efetivamente, nestes casos, podemos falar em direito de ação, pois aqui as regras orientadoras são outras: a da oportunidade ou conveniência (por meio da renúncia ao direito de queixa ou pela decadência) e a da disponibilidade (seja pelo perdão, seja pela perempção). De todo modo, a ação penal de iniciativa privada aos poucos vem sendo substituída pela ação penal pública condicionada (como ocorreu no Brasil, recentemente, nos crimes contra os costumes e na injúria com preconceito), além de ter sido completamente excluída no projeto de lei de reforma do Código de Processo Penal que ora tramita no Congresso Nacional (PSL 156). Ressalvo, obviamente, a ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública (art. 29 do Código de Processo Penal), pois cláusula pétrea (art. 5º., LIX c/c art. 60, § 4º., IV, da Constituição). A propósito, Jacinto Coutinho Miranda também concorda ser a ação penal de iniciativa privada um caso de substituição processual: “Temos assim, sempre, um conflito de interesses só solucionável pela jurisdição que o compõe através do processo, o freio utilizado para tanto, após ser acionada pelo Estado- administração (no caso de ação penal pública), ou um eventual substituto processual seu, em se tratando de ação penal de iniciativa privada.[50]

A ação penal de iniciativa privada segundo Jose-Manuel Martinez-Pereda Rodriguez teve sua origem “no primitivo Direito Romano”:“Já na Roma monárquica o processo era público ou privado segundo o rei procedesse ou esperasse a queixa da parte lesionada. No primeiro caso o rei abre o processo e depois de ouvir o parecer dos assessores pronuncia a sentença. Nos casos em que somente houve um atentado contra a paz privada procede a instancia de parte, incumbindo a esta fazer que compareça seu adversário perante o rei e podendo em certos casos empregar a força.” (tradução minha).[51]

Alguns processualistas penais, influenciados pelo Processo Civil e adeptos da Teoria Geral do Processo (como foi José Frederico Marques) querem adotar para o Processo Penal uma classificação na qual se leva em conta a tutela jurisdicional invocada ou objetivada. O próprio Frederico Marques cita três processualistas italianos que o influenciaram neste aspecto: Eduardo Massari (“quizás el procesalista penal sobre quien mayor influjo ejerció em su pátria el procesalismo civil”, nas palavras de Niceto Alcala-Zamora y Castillo e Ricardo Levene, Hijo)[52], Giovanni Leone e Vincenzo Spiezia.[53]

Assim, como no Processo Civil, teríamos a Ação Penal de Conhecimento (Declaratória – Positiva ou Negativa, Constitutiva e Condenatória), a Ação Penal Cautelar e a Ação Penal de Execução. Eis o problema!

Se não há dúvidas sobre a existência das ações penais condenatórias, a questão é adequar satisfatoriamente esta classificação do Processo Civil para o Processo Penal. Claro que existem no Processo Penal ações penais de natureza não condenatória, como as ações autônomas de impugnação (Habeas Corpus, a Revisão Criminal e o Mandado de Segurança contra ato jurisdicional penal) que podem perfeitamente se ajustar ao conceito de ações penais constitutivas. Porém, Frederico Marques, na obra citada, dá como exemplos de ações penais cautelares o art. 648, V, do Código de Processo Penal e o pedido de prisão preventiva (!). A ação de execução estaria prevista no art. 688, I do código processual (hoje já sem qualquer aplicação por força da Lei de Execução Penal – Lei nº. 7.210/84).

Com todas as vênias à memória do Mestre paulista, somente com um exercício hercúleo é que se pode adaptar perfeitamente (e sem percalços) tal classificação ao Processo Penal. Aliás, ele mesmo afirmava que: "Só se pode falar em ação quando, com o pedido, se instaura uma relação processual. Outras atividades postulatórias e são muitas – que qualquer dos sujeitos processuais exerça, refogem do conceito de ação (...) Se, com o pedido, instaurar-se uma nova instância, esse pedido será manifestação do exercício do direito de agir.”[54]

Niceto Alcala-Zamora y Castillo e Ricardo Levene, Hijo sobre esta classificação afirmam que: “No obstante, bueno será puntualizar que aún en el caso de que la mencionada clasificación fuese inobjetable en cuanto a los sectores en que se descompone, no sería en realidad, una catalogación de acciones, sino de pretensiones y, además, que si por acción se entiende, como generalmente sucede, la promovida por el actor, en lo penal ella es de condena, sin perjuicio de que el resultado del proceso (o sea la sentencia) puede no serlo, o de que pretensiones incidentales o ulteriores del acusado motiven provimientos de signo declarativo o constitutivo”.[55]

Encontrar no Processo Penal ações penais cautelares ou de execução é muito mais difícil do que um rico entrar no reino dos céus ou passar um camelo pelo fundo de uma agulha (plagiando Jesus, segundo disse Mateus 19:23-24).

Mesmo a Revisão Criminal, disciplinada nos arts. 621 a 631 do CPP difere completamente da Ação Rescisória, prevista nos arts. 485 a 495 do CPC. Dentre as inúmeras diferenças, poder-se-ia citar que não há prazo para o direito de propor a revisional; ademais, podemos aduzir sobre a questão da prova nova que pode ser alegada nas duas ações constitutivas: enquanto o art. 485, VII do CPC a prova nova, após a sentença, deve se referir a fato já posto no curso do processo original, aqui, no Processo Penal, para os mesmos fins, serve qualquer prova nova, diga respeito ou não a fato alegado na ação penal condenatória, fato, inclusive, que não foi sequer discutido no processo condenatório e mesmo aquele descoberto após a sentença condenatória ou absolutória imprópria (aplicação de medida de segurança ao inimputável).

O que Frederico Marques chamava de ações penais cautelares nada mais são que meros provimentos cautelares que podem ser requeridos ao Juiz, sejam antes do processo, durante e até na fase de execução penal (monitoramento eletrônico, por exemplo – arts. 146-B a 146-D da Lei nº. 7.210/84). Tampouco o Habeas Corpus tem esta natureza, nem mesmo o preventivo, pois se trata de uma tutela preventiva e não cautelar ou antecipatória. O Habeas Corpus preventivo não tem aquele caráter instrumental próprio das ações cautelares, mas, pelo contrário, tem um caráter de definitividade.[56] Neste mesmo sentido é a lição de Rogério Lauria Tucci, para quem no Processo Penal: “Só há lugar para a efetivação de medidas cautelares, desenroladas no curso da persecução ou da execução penal, e não para ação ou processo cautelar, que exigem , para sua realização, a concretização de procedimento formalmente estabelecido em lei.”[57]

Também Vicente Greco Filho: “Também inexiste ação ou processo cautelar. Há decisões ou medidas cautelares, como a prisão preventiva, o sequestro, e outras, mas sem que se promova uma ação ou se instaure um processo cautelar diferente da ação ou do processo de conhecimento. As providências cautelares são determinadas como incidentes do processo de conhecimento.”[58]

Aliás, antes mesmo do início da ação penal já se pode determinar a decretação de uma medida cautelar penal desde que haja requerimento ao Juiz (art. 282, § 2º., do Código de Processo Penal).

E quanto à ação penal de execução?[59] Tampouco existe no Processo Penal, pois, como explica Vicente Greco, a execução penal realiza-se: “Por força da própria sentença, que já tem carga executiva. Executa-se por ordem do Juiz, per officium iudicis, independentemente da instauração de nova relação processual”, Filho.[60]

O próprio Frederico Marques, após admitir que a execução penal inicia-se pelo exercício officium iudicis, independentemente de provocação do Ministério Público ou querelante, apontava (com razão, tendo em vista a época em que escreveu a respeito), um único caso em que se poderia falar-se em ação penal executória: o art. 688, I do Código de Processo Penal, mais tarde substituído pelo art. 164 da Lei de Execução Penal (Lei nº. 7.210/84).[61] Tratava-se da execução da sentença condenatória à pena de multa. Este exemplo, porém, não mais serve, pois com a promulgação da Lei n.º 9.268/96 foram modificados alguns dispositivos do Código Penal, especificamente os seus arts. 51, 78, 92 e 114 todos da Parte Geral, além de ter sido revogado expressamente o art. 182 da Lei de Execuções Penais. Com a inovação legislativa, o primeiro daqueles artigos passou a determinar que, “transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será considerada dívida de valor, aplicando-se-lhe as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição.”

Vejamos um outro aspecto: a Constituição Federal consagrou no art. 5º., LXXIII a Ação Popular que permite a “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.” Esta disposição está regulamentada na Lei nº. 4.717/65 (recepcionada pela Carta Magna), além de, subsidiariamente pelo Código de Defesa do Consumidor (Processo Penal Coletivo). Assim é no Processo Civil. E no Processo Penal é possível falar-se em Ação Penal Popular? Evidentemente que não, ao menos que se trate do Habeas Corpus (que não é, por óbvio, ação penal de natureza condenatória), pois, nos termos do art. 654 do Código de Processo Penal, pode ser “impetrado” por qualquer pessoa. Tampouco, pode-se falar em ação penal popular aquela tratada na Lei nº. 1.079/50, pois ali não se define crime nenhum, mas infrações político-administrativas a serem julgadas pelo Parlamento (Jurisdição Política).

É bem verdade que já houve no Brasil uma verdadeira ação penal popular de natureza condenatória, pois a Constituição Imperial de 1824 dispunha, no art. 157, que:“Por suborno, peita, peculato, e concussão haverá contra elles acção popular, que poderá ser intentada dentro de anno, e dia pelo proprio queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo estabelecida na Lei.”

Poucos anos depois, o Código de Processo Criminal de 1832, no art. 74, estabelecia que:“A denuncia compete ao Promotor Publico, e a qualquer do povo: § 1º Nos crimes, que não admitem fiança. § 2º Nos crimes de peculato, peita, concussão, suborno, ou qualquer outro de responsabilidade. § 3º Nos crimes contra o Imperador, Imperatriz, ou algum dos Príncipes, ou Princesas da Imperial Família, Regente, ou Regencia. § 4º Em todos os crimes públicos. § 5º Nos crimes de resistência ás autoridades, e seus oficiais no exercício de suas funções. § 6º Nos crimes em que o delinquente for preso em flagrante, não havendo parte que o acuse.”

Comentando especificamente este art. 74, escreveu Galdino Siqueira que:“Tecnicamente a denúncia é sempre a forma da proposição da ação penal publica, e nesse sentido é que a emprega o Código de Processo Criminal, referindo-se ao mesmo tempo ao promotor público e a qualquer do povo.”[62]

Também na Espanha, tem-se a ação penal popular, de natureza condenatória, pois a Ley de Enjuiciamiento Criminal dispõe que:“La acción penal es pública. Todos los ciudadanos españoles podrán ejercitarla con arreglo a las prescripciones de la Ley. (…) Todos los ciudadanos españoles, hayan sido o no ofendidos por el delito, pueden querellarse, ejercitando la acción popular establecida en el art. 101 de esta ley.” (arts. 101 e 270).

Outrossim, não esqueçamos que no Processo Penal, em regra, é imprescindível para a propositura da ação penal uma investigação preliminar de natureza criminal, não bastando meros documentos tal como exigido pelo art. 283 do Código de Processo Civil. É o que chamamos de justa causa para a ação penal (indícios suficientes da autoria e prova da existência de uma infração penal), sem a qual a denúncia ou a queixa não será recebida (art. 395, III, Código de Processo Penal). Via de regra, esta investigação preliminar, ao menos no Brasil, faz-se por meio do inquérito policial, que é, nas palavras de Michel Foucault: “Precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício do poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de auferir a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir.”[63]

É um procedimento preliminar, extrajudicial e preparatório para a ação penal, sendo por isso considerado como a primeira fase da persecutio criminis (que se completa com a fase em juízo). É instaurado pela polícia judiciária e tem como finalidade a apuração de infração penal e de sua respectiva autoria. No Código de Processo Penal está disciplinado entre os arts. 4º. e 23º.

Quanto aos elementos da ação penal, e ainda que no Processo Penal os elementos da ação penal sejam os mesmos do Processo Civil (as partes, o pedido e a causa de pedir), o tratamento dado a estas categorias no Direito Processual Penal é inteiramente diferente do Direito Processual Civil, como veremos a seguir.

Com efeito, o clássico conceito de parte no Processo Civil não encontra espaço no Processo Penal, primeiro porque não há falar-se em lide penal ou conflito de interesses no Processo Penal; segundo porque na ação penal pública cabe ao Ministério Público (até por sua feição constitucional), fiscalizar a execução da lei, isto é, atuar também e obrigatoriamente como custos legis (art. 257, II, Código de Processo Penal), inclusive pugnando sempre que necessário em favor do réu. Ainda que se trate de uma ação penal de iniciativa privada, o querelante pode perdoar o querelado (arts. 105 e 106, Código Penal) ou tornar perempta a ação penal (art. 60, Código de Processo Penal), extinguindo, por uma forma ou por outra e mesmo após iniciada a ação penal e instaurada a instância, a punibilidade, nos termos do art. 107, IV e V do Código Penal. Ademais, não esqueçamos que o querelante é um mero substituto processual, pois deduz atua em nome próprio um direito do Estado (jus puniendi).

Neste sentido, bem a propósito é a lição de Vicenzo Manzini (mais uma vez citado a contragosto): “O conceito de parte na causa não guarda no direito processual penal o valor que tem no direito processual civil, e sequer coincide necessariamente com o conceito de sujeito processual (o juiz, evidentemente, não é parte).”

Mesmo em relação ao acusado, Manzini não admite chamá-lo de parte: “Em sentido relativo, porque, afora outras coisas, pode renunciar à tutela de seus próprios interesses sem que por isto, como ocorreria, ao contrário, no juízo cível, deixe de ser processado ou de ser condenado necessariamente.” (tradução minha).[64]

Como se sabe, todo acusado deve obrigatoriamente ser defendido por um profissional do Direito, a fim de que se estabeleça íntegra a ampla defesa, observando-se que esta defesa técnica não é meramente formal, mas substancialmente consistente e potencialmente eficaz, pois, como já ensinava Frederico Marques: "Dá-se defensor ao réu, para que haja atuação efetiva daquele órgão em prol dos interesses do acusado. Certo é que se não pode traçar a priori a orientação a ser seguida por aquele a quem a Justiça confiou o patrocínio da defesa do réu. Mas se estiver evidente a inércia e desídia do defensor nomeado, o réu deve ser tido por indefeso e anulado o processo desde o momento em que deveria ter sido iniciado o patrocínio técnico no juízo penal. Abraçar entendimento diverso a respeito do assunto, além de constituir inaceitável posição diante da evidência ictu oculi de real ausência de defesa, é ainda orientação de todo censurável e errônea, mesmo porque pode legitimar situações verdadeiramente iníquas.”[65]

Porém, no Processo Penal, ao contrário do Processo Civil, a constituição de defensor independe de instrumento de mandato, conforme explicita o art. 266 do Código de Processo Penal: "A nomeação de defensor no interrogatório judicial do réu dispensa a juntada de instrumento de mandato (artigo 226 do CPP). Impondo-se seja conhecido o agravo de instrumento instruído com o termo de interrogatório. Ordem concedida” (Supremo Tribunal Federal – 2ª T- HC 92.822 – rel. Eros Grau – j. 09.09.2008 – DJU 14.11.2008).

Da mesma forma, ou seja, diferentemente do Direito Processual Civil (salvo raríssimas hipóteses), o acusado não somente tem legitimidade para recorrer (por óbvio), como tem capacidade postulatória (art. 577, Código de Processo Penal), de tal maneira que basta a sua afirmação que deseja recorrer, quando de sua intimação da sentença condenatória, que não há mais falar-se em trânsito em julgado (evidentemente que as razões recursais deverão ser obrigatoriamente feitas por um advogado, seja o dativo, ad hoc ou um Defensor Público), pois, como se sabe, o defensor exerce a chamada defesa técnica, específica, profissional ou processual, que exige a capacidade postulatória e o conhecimento técnico.

O acusado, por sua vez, exercita ao longo do processo (quando, por exemplo, é interrogado) a denominada autodefesa ou defesa material ou genérica. Ambas, juntas, compõem a ampla defesa. A propósito, veja-se a definição de Miguel Fenech:

“Se entiende por defensa genérica aquella que lleva a cabo la propia parte por sí mediante actos constituídos por acciones u omisiones, encaminados a hacer prosperar o a impedir que prospere la actuación de la pretensión.. No se halla regulada por el derecho con normas cogentes, sino con la concesión de determinados derechos inspirados en el conocimientode la naturaleza humana, mediante la prohibición del empleo de medios coactivos, tales como el juramento – cuando se trata de la parte acusada – y cualquier otro género de coacciones destinadas a obtener por fuerza y contra la voluntad del sujeto una declaración de conocimiento que ha de repercutir en contra suya.”

Para ele, diferencia-se esta autodefesa da defesa técnica, por ele chamada de específica, processual ou profissional´:

"Que se lleva a cabo no ya por la parte misma, sino por personas peritas que tienen como profesión el ejercicio de esta función técnico-jurídica de defensa de las partes que actuán en el processo penal para poner de relieve sus derechos y contribuir con su conocimiento a la orientación y dirección en orden a la consecusión de los fines que cada parte persigue en el proceso y, en definitiva, facilitar los fines del mismo”.[66]

Aliás, observa-se que a figura do Assistente no Processo Penal em nada lembra qualquer tipo de intervenção de terceiros do Processo Civil. É cediço qie o Estado, embora titular do jus puniendi, por vezes concede ao ofendido a faculdade de intervir na relação processual penal, seja na condição de titular da ação penal, como ocorre na ação penal de iniciativa privada, seja como assistente do Ministério Público. Na primeira hipótese o ofendido figura na relação como parte necessária, atuando como substituto processual, titular que é do jus accusationis; no outro caso, porém, a vítima não é parte necessária no processo sendo considerada sujeito secundário da relação processual, parte acessória, colateral, contingente ou adjunta. A falta do assistente, portanto, não inviabiliza o início nem a continuidade da relação processual.

Como assistente da acusação pode se habilitar a vítima ou seu representante legal, ou, na falta, o cônjuge, ascendente, descendente ou irmão. O art. 530-H do Código de Processo Penal dispõe que “as associações de titulares de direitos de autor e os que lhes são conexos poderão, em seu próprio nome, funcionar como assistente da acusação nos crimes previstos no art. 184 do Código Penal, quando praticado em detrimento de qualquer de seus associados.”

Ao assistente é permitido propor meios de prova que serão produzidos por decisão judicial, após a ouvida do Ministério Público, bem como requerer reperguntas às testemunhas, aditar os articulados (não a denúncia), participar do debate oral, arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público ou por ele próprio e contra-arrazoar os interpostos pela defesa (considerando-se as contra-razões como os referidos articulados), requerer o desaforamento (art. 427 do Código de Processo Penal), além de pedir a prisão preventiva do acusado (art. 311 do Código de Processo Penal). Em relação à possibilidade do assistente da acusação requerer a decretação da prisão preventiva, entendemos só ser possível por conveniência da instrução criminal ou quando for cabível a substituição de medida cautelar anteriormente decretada, especialmente aquelas indicadas no art. 319, IV e VIII.

Continuando, enquanto a causa de pedir no Processo Civil consubstancia-se, conforme dessume-se do art. 282, III do Código de Processo Civil, no Processo Penal constitui-se na exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, sob pena, inclusive e principalmente, de inépcia da petição inicial (arts. 41 e 395, I, Código de Processo Penal). Daí porque não se admite no processo penal uma denúncia genérica, no qual se descreva todos os atos executórios e a responsabilidade por eles de cada um dos acusados. Neste sentido, é copiosa a jurisprudência da Suprema Corte.

Já o pedido no Processo Penal é sempre genérico (ao menos nas ações penais condenatórias), não havendo espaço para aquelas possibilidades constantes do Código de Processo Civil (arts. 288 e 289). Aqui o que se pede é a aplicação de uma pena ou, excepcionalmente, de uma medida de segurança quando se trata de réu inimputável, nos termos do art. 26 do Código Penal (quando, então, diz-se que ele será absolvido impropriamente, nos termos do art. 386, parágrafo único, III do Código de Processo Penal).

Daí porque inadmissível a chamada imputação alternativa no Processo Penal. Na definição de Afrânio Silva Jardim:

“Diz-se imputação alternativa quando a peça acusatória vestibular atribui ao réu mais de uma conduta penalmente relevante, asseverando que apenas uma delas efetivamente terá sido praticada pelo imputado, embora todas se apresentem como prováveis, em face da prova do inquérito. Desta forma, fica expresso, na denúncia ou queixa, que a pretensão punitiva se lastreia nesta ou naquela ação narrada. Por outro lado, como veremos mais adiante, a alternatividade também pode referir-se ao sujeito ativo da infração penal, acarretando um litisconsórcio no pólo passivo da relação processual penal.”[67]

Para o autor carioca, a imputação alternativa, portanto, poderá ser real (objetiva) quando por mais de um fato delituoso é acusado alguém; ou pessoal (subjetiva) quando mais de uma pessoa é acusada, alternativamente. É a chamada cumulação imprópria de pedidos.[68] Entre nós poucos doutrinadores enfrentaram esta questão. Frederico Marques, ainda que sem muita fundamentação, admite-a, afirmando que não há nada que a impeça:“Pois que em face de uma situação concreta, que se apresenta equívoca, pode o acusador atribuir um ou outro fato ao réu. Não será motivo de escândalo – diz Pasquale Saraceno – a citação ‘de Tício como acusado de furto ou de receptação’. Também Luigi Sansò admite la imputazione alternativa, uma vez que se traduza em acusação explícita, dizendo, por isso, que é perfeitamente ‘concebível a imputação alternativa do fato delituoso’. E isto quer se trate de alternativa entre um aliud e um aliud, e de alternativa entre um majus e um minus, visto que em ambos os casos há fatos diversos imputados ao réu.”[69]

Evidentemente, até porque não estamos trabalhando com princípios e regras do Processo Civil, não admito qualquer imputação alternativa, pois estou convencido que toda acusação, seja pública, seja de iniciativa privada, deverá sempre ser determinada, especificando-se, inclusive, o mais possível, em que consistiu a conduta delituosa e a participação de cada um dos autores do fato, salvo absoluta impossibilidade. Se o “quadro probatório relativamente incerto constante do inquérito policial”[70] não permite uma imputação certa, que sejam devolvidos os autos para novas e esclarecedoras diligências.

O que não posso admitir é que o réu tenha que se defender não se sabe exatamente de que, ou que alguém tenha que enfrentar todos os percalços de um processo criminal sem que tenha sido imputado a ele, de uma maneira mais ou menos certa (a denúncia exige, no mínimo, indícios da autoria) um fato delituoso. Ademais, nos moldes em que se dá a imputação alternativa, não poderá o acusado defender-se satisfatoriamente, já que dois fatos lhe foram imputados não cumulativamente. O réu precisa (e tem o direito) de saber qual a infração penal que se lhe atribuem, a fim de que possa, com o seu advogado, exercer a defesa em sua plenitude.

Em relação às condições para o exercício da ação penal, e em apertada síntese, podemos afirmar que as condições para o exercício da ação são os elementos e requisitos necessários para que o julgador decida do mérito, uma vez que o objetivo é a aplicação do Direito positivo no caso concreto. Abstraindo-se as várias questões atinentes às condições da ação (inclusive e principalmente o fato que a possibilidade jurídica do pedido e o interesse de agir estão muito mais para mérito do que condições para o exercício da ação penal), o certo é que no Processo Penal o tratamento dado a este tema é substancialmente diferente do Processo Civil. Aliás, no Processo Penal, ao lado das condições genéricas, temos ainda as chamadas condições específicas de procedibilidade.

Assim, considero que a possibilidade jurídica do pedido constitui-se na existência de um fato típico, isto é, uma conduta relevante penalmente. Em muitos casos, por exemplo, afasta-se a própria tipicidade como no caso do consentimento do ofendido (em alguns casos), a aplicação do princípio da insignificância, etc., etc.

Fala-se em interesse de agir como uma relação havida entre a situação antijurídica denunciada e a tutela jurisdicional solicitada. A denúncia deve descrever um fato típico. Mas somente isso não basta, é preciso que o autor formule pedido idôneo, apto a provocar a movimentação da máquina judiciária. No Processo Civil fala-se em interesse-utilidade, interesse-necessidade e interesse-adequação. Ora, evidentemente que no Processo Penal, tanto o interesse-necessidade quanto o interesse-adequação estão ínsitos em qualquer ação penal condenatória, pois somente com o exercício da ação penal (seja ela pública seja de iniciativa privada) é possível a aplicação de uma pena (ou medida de segurança) a quem cometeu uma infração penal (ressalvando, como já referido supra a hipótese da transação penal – art. 76, Lei nº. 9.099/95). Logo, a ação penal será sempre adequada e necessária para um pedido de condenação. Apenas posso trabalhar com a ideia do interesse, do ponto de vista da utilidade, sempre que, por exemplo, nada obstante se tratar de um fato típico (portanto, pedido juridicamente possível), haja induvidosamente uma causa excludente de criminalidade ou culpabilidade (com exceção, obviamente, da inimputabilidade por doença mental), o que torna a conduta lícita ou não culpável, respectivamente, excluindo-se o crime. Outrossim, pode ocorrer que se tenha em mãos um fato típico, antijurídico e culpável que esbarre numa situação que impeça a propositura da ação como, por exemplo, uma causa de extinção de punibilidade que levará à rejeição da denúncia ou queixa. 

Considero esta a única condição para o exercício da ação penal. No Processo Penal, ao contrário do Processo Civil, a legitimidade passiva será sempre do suposto autor de uma infração penal, pessoa física maior de 18 anos (pouco importando se imputável ou inimputável), em relação ao qual haja indícios suficientes da autoria (justa causa). No polo ativo da relação processual, nas ações penais condenatórias públicas apenas o Ministério Público (art. 129, I, da Constituição) e, excepcionalmente, o particular (nas ações penais de iniciativa privada).  

Além das chamadas condições genéricas da ação penal, é possível falar-se no Processo Penal em condições específicas, pois exigidas em determinados e específicos casos, tais como o requerimento do ofendido ou a requisição do Ministro da Justiça (nas ações penais públicas condicionadas), além das hipóteses dos arts. 7º., § 2º. e 236 do Código Penal e art. 525 do Código de Processo Penal.

Da mesma maneira, as novas leis processuais civis aplicar-se-ão desde logo aos processos pendentes: é a repetida regra tempus regit actum (art. 1.211 do Código de Processo Civil). Será, porém, possível no Processo Penal aplicarmos esta mesma disposição, à luz de uma suposta Teoria Geral do Processo? Vejamos... Duas regras basilares regem o direito intertemporal das leis em matéria criminal. A primeira segundo a qual a lei penal não retroage salvo para beneficiar o réu (art. 2°., parágrafo único do Código Penal e art. 5°., XL da Constituição Federal). Se é certo que a regra é a da irretroatividade da lei penal, e isto ocorre por uma questão de segurança jurídico-social, não há de se olvidar a exceção de que se a lei penal for de qualquer modo mais benéfica para o seu destinatário, forçosamente deverá ser aplicada aos casos pretéritos, retroagindo. Insere-se no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais da nossa Carta Magna e tem aplicação imediata (§ 1°. do mesmo art. 5°.), além do que, como garantia e direito fundamentais, tem força vinculante, “no sólo a los poderes públicos, sino también a todos los ciudadanos”, como afirma Perez Luño[71], tendo também uma conotação imperativa, “porque dotada  de caráter jurídico-positivo”.[72] A segunda regra é a da aplicação imediata da lei processual penal, preconizada no art. 2°. do Código de Processo Penal e que proclama a sua aplicação imediata (tempus regit actum). Todavia, no Direito Processual Penal, nada obstante este dispositivo (e isto não se trata, evidentemente, de uma mera peculiaridade, mas, ao contrário, de uma imposição ditada pelas regras orientadoras deste ramo autônomo da Ciência Jurídica) é preciso que se distinga a natureza jurídica da respectiva norma processual. Pode se tratar de uma norma de natureza processual penal material, mista ou híbrida (penal e processual) ou de uma norma de caráter puramente processual, formal, instrumental, técnica. No primeiro caso, a retroatividade (ou ultratividade) impõe-se, pois, indiscutivelmente, sendo disposições mais benéficas devem excepcionar a regra da aplicação imediata da lei processual penal. No segundo, aplica-se o tempus regit actum.

Esta matéria relativa a normas híbridas ou mistas, apesar de combatida por alguns, mostra-se, a nosso ver, de fácil compreensão. Com efeito, o jurista lusitano e Professor da Faculdade de Direito do Porto, Taipa de Carvalho, após afirmar que: “Está em crescendo uma corrente que acolhe uma criteriosa perspectiva material - que distingue, dentro do direito processual penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais formais, dentro de uma visão de “hermenêutica teleológico-material determine-se que à sucessão de leis processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável. (...) Tais normas, embora processuais, são também plenamente materiais ou substantivas. (...) Klaus Tiedemann destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das normas processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e normas processuais substancialmente materiais.”[73]

A propósito, veja-se a lição de Carlos Maximiliano:

“Quanto aos institutos jurídicos de caráter misto, observam-se as regras atinentes ao critério indicado em espécie determinada. Sirva de exemplo a querela: direito de queixa é substantivo; processo da queixa é adjetivo; segundo uma e outra hipótese orienta-se a aplicação do Direito Intertemporal. O preceito sobre observância imediata refere-se a normas processuais no sentido próprio; não abrange casos de diplomas que, embora tenham feição formal, apresentam, entretanto, prevalentes os caracteres do Direito Penal Substantivo; nesta hipótese, predominam os postulados do Direito Transitório Material.”[74]

Comentando a respeito das normas de caráter misto, assim já se pronunciou Rogério Lauria Tucci:

“Daí porque deverão ser aplicadas, a propósito, consoante várias vezes também frisamos, e em face da conotação prevalecente de direito penal material das respectivas normas, as disposições legais mais favoráveis ao réu, ressalvando-se sempre, como em todos os sucessos ventilados, a possibilidade de temperança pelas regras de direito transitório, - estas excepcionais por natureza.”[75]

Outra não é a opinião de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho:

“Se a norma processual contém dispositivo que, de alguma forma, limita direitos fundamentais do cidadão, materialmente assegurados, já não se pode defini-la como norma puramente processual, mas como norma processual com conteúdo material ou norma mista. Sendo assim, a ela se aplica a regra de direito intertemporal penal e não processual.”[76]

Atente-se, ademais, “que a natureza processual de uma lei não depende do corpo de disposições em que esteja inserida, mas sim de seu conteúdo próprio”.[77] Aliás, não é apenas o fato de uma norma está contida em um diploma de Processo Penal que a sua natureza será estritamente processual (e dever ser aplicada a regra do tempus regit actum). Como afirmava Vicenzo Manzini[78]:“Estar uma norma comprendida en el Código de procedimiento penal o en el Código penal no basta para calificarla, respectivamente, como norma de derecho procesal o de derecho material.”[79]

Ressalva-se, apenas, a coisa julgada como limite lógico e natural de tudo quanto foi dito, pois é preciso que haja processo em curso ou na iminência de ser iniciado. Se já houve o trânsito em julgado, não pode se cogitar de retroatividade para o seu desfazimento, pois neste caso já há um processo findo, além do que, contendo a norma caráter também processual, só poderia atingir processo não encerrado, ao contrário do que ocorreria se se tratasse de lei puramente penal (lex nova que, por exemplo, diminuísse a pena ou deixasse de considerar determinado fato como criminoso), hipóteses em que seria atingido, inclusive, o trânsito em julgado, por força do art. 2º., parágrafo único do Código Penal.[80]

Muito a propósito, o ensinamento de Paulo de Souza Queiroz e Antônio Vieira: “É corrente dizer-se que a lei processual, diferentemente da lei penal, tem aplicação imediata, podendo retroagir mesmo em prejuízo do réu. Pensamos, no entanto, que a irretroatividade da lei penal deve também compreender, pelas mesmas razões, a lei processual penal, a despeito do que dispõe o art. 2º do Código de Processo Penal, que determina, como regra geral, a aplicação imediata da norma, uma vez que deve ser (re) interpretado à luz da Constituição Federal. Portanto, sempre que a nova lei processual for prejudicial ao réu, porque suprime ou relativiza garantias — v.g., adota critérios menos rígidos para a decretação de prisões cautelares ou amplia os seus respectivos prazos de duração, veda a liberdade provisória mediante fiança, restringe a participação do advogado ou a utilização de algum recurso, etc. —, limitar-se-á a reger os processos relativos às infrações penais consumadas após a sua entrada em vigor; afinal, também aqui — é dizer, não apenas na incriminação de condutas, mas também na forma e na organização do processo — a lei deve cumprir sua função de garantia, de sorte que, por norma processual menos benéfica, se há de entender toda disposição normativa que importe em diminuição de garantias, e, por mais benéfica, a que implique o contrário: aumento de garantias processuais.

Cumpre notar, por último, que nem sempre é fácil distinguir norma penal de norma processual penal, não sendo infrequentes confusões no particular, a exemplo do que sucedeu com o STJ que, contraditoriamente, já considerou ser a vedação da liberdade provisória da Lei de Crimes Hediondos norma processual (pelo que teria aplicação imediata)(10), e norma penal (entendendo não poder incidir em processos por crime perpetrado antes da Lei nº 8.072/90).Por tudo isso é que não se pode prescindir da irretroatividade da lei processual mais gravosa sempre que haja alteração político-criminal do processo em desfavor do acusado. No particular, é de todo irrelevante, portanto, a mui recorrente distinção entre lei penal e lei processual penal, uma vez que ambas cumprem a mesma função político-criminal, de garantia do mais débil (o acusado) frente ao mais forte (o Estado), além do que o Direito é uno, não podendo, por isso, ser garantista num momento (penal) e antigarantista noutro (processual). Dito de outro modo: no que toca ao tema da retroatividade da lei, o que importa, numa perspectiva garantista, não é a natureza jurídica da norma — se penal, se processual penal —, mas o grau de garantismo que encerra. Afinal, tanto a infração penal quanto o modo de comprovação de sua existência e aplicação da pena têm de vir previstos antes do fato que motivou a intervenção jurídico-penal, a fim de que o cidadão saiba claramente o que deve e o que não deve fazer, como também o que será sancionado, quais são as limitações do juiz e quais são suas garantais no processo penal. Ou seja: as "regras do jogo" hão de ser conhecidas antes mesmo de seu início, as quais não poderão, por isso, ser modificadas depois de iniciado, salvo, obviamente, para favorecer o réu.Contrariamente, sempre que a lei processual dispuser de modo mais favorável ao réu — v.g., passa a admitir a fiança, reduz o prazo de duração de prisão provisória, amplia a participação do advogado, aumenta os prazos de defesa, prevê novos recursos, etc. — terá aplicação efetivamente retroativa. E aqui se diz retroativa advertindo-se que, nestes casos, não deverá haver tão-somente a sua aplicação imediata, respeitando-se os atos validamente praticados, mas até mesmo a renovação de determinados atos processuais, a depender da fase em que o processo se achar. (...). Tratando-se de normas meramente procedimentais que não impliquem aumento ou diminuição de garantias, como sói ocorrer com regras que alteram tão-só o processamento dos recursos, a forma de expedição ou cumprimento de cartas rogatórias, etc. —, terão aplicação imediata (CPP, art. 2°), incidindo a regra geral, porquanto deverão alcançar o processo no estado em que se encontra e respeitar os atos validamente praticados.Finalmente, cuidando-se de normas de conteúdo misto — em parte favorável ao réu e em parte não — vale a mesma disciplina destinada à irretroatividade da lei penal, sendo também admitida a combinação entre as normas, desde que não sejam incompatíveis, de modo a assegurar a irretroatividade de normas mais severas e permitir a retroatividade das mais favoráveis. Assim, diante de norma processual que limitasse a decretação da prisão temporária aos réus acusados de integrar organização criminosa e, de outro lado, ampliasse seu prazo de duração, cumpriria aplicar imediatamente a primeira parte (pondo em liberdade todos os presos temporários não relacionados com o crime organizado) e irretroativamente a segunda (é dizer, havendo ultra-atividade da lei anterior).[81]

Vê-se, mais uma vez, que não há espaço para uma Teoria Geral do Processo...

E a garantia ao duplo garu de jurisdição? É evidente que a garantia ao duplo grau de jurisdição é decorrente do postulado Devido Processo Legal, garantindo, seja no Processo Civil, seja no Processo Penal, a possibilidade de revisão dos julgados. A falibilidade humana e o natural inconformismo de quem perde estão a exigir o reexame de uma matéria decidida em primeira instância, a ser feito por juízes coletivos e magistrados mais experientes.

A Constituição Federal prevê o duplo grau de jurisdição, não somente no art. 5º., LV, como também no seu art. 93, III (“acesso aos tribunais de segundo grau”). Em França, segundo Étienne Vergès: “L´article préliminaire du Code de procédure pénale dispose in fine que ´toute personne condamnée a le droit de faire examiner sa condamnation par une autre juridiction`.”[82]

Há mais de vinte anos, o jurista baiano Calmon de Passos mostrava a sua preocupação com:“A tendência, bem visível entre nós, em virtude da grave crise que atinge o Judiciário, de se restringir a admissibilidade de recursos, de modo assistemático e simplório, em detrimento do que entendemos como garantia do devido processo legal, incluída entre as que são asseguradas pela nossa Constituição. (...) O estudo do duplo grau como garantia constitucional desmereceu, da parte dos estudiosos, em nosso meio, considerações maiores. Ou ele é simplesmente negado como tal ou, embora considerado como ínsito ao sistema, fica sem fundamentação mais acurada, em que pese ao alto saber dos que o afirmam, certamente por força da larga admissibilidade dos recursos em nosso sistema processual, tradicionalmente, sem esquecer sua multiplicidade.”[83]

Não esqueçamos que:“A adoção do duplo grau de jurisdição deixa de ser uma escolha eminentemente técnica e jurídica e passa a ser, num primeiro instante, uma opção política do legislador.”[84]

O duplo grau de jurisdição tem caráter de norma materialmente constitucional, mormente porque o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) que prevê em seu art. 8º., 2, h, que todo acusado de delito tem “direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior”, e tendo-se em vista o estatuído no § 2º., do art. 5º., da CF/88, segundo o qual “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Ratificamos, também, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque que no seu art. 14, 5, estatui que “toda pessoa declarada culpada por um delito terá o direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei.”

É bem verdade que a doutrina se debate a respeito da posição hierárquica que ocupam as normas advindas de tratado internacional. Parte dela entende que caso a norma internacional trate de garantia individual, terá ela status constitucional, até por força do referido § 2º.

Fábio Comparato, por exemplo, afirma:“A tendência predominante, hoje, é no sentido de se considerar que as normas internacionais de direitos humanos, pelo fato de expressarem de certa forma a consciência ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado. (...) Seja como for, vai-se afirmando hoje na doutrina a tese de que, na hipótese de conflitos entre regras internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há de prevalecer sempre a regra mais favorável ao sujeito de direito, pois a proteção da dignidade da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico”[85]: é o chamado princípio da prevalência da norma mais favorável.[86]    

Ada, Dinamarco e Araújo Cintra, após admitirem a indiscutível natureza política do princípio do duplo grau de jurisdição (“nenhum ato estatal pode ficar imune aos necessários controles”) e que ele “não é garantido constitucionalmente de modo expresso, entre nós, desde a República”, lembram, no entanto, que a atual Constituição:“Incumbe-se de atribuir a competência recursal a vários órgãos da jurisdição (art. 102, II; art. 105, II; art. 108, II), prevendo expressamente, sob a denominação de tribunais, órgãos judiciários de segundo grau (v.g., art. 93, III).”[87]

Com a Emenda Constitucional nº. 45, temos uma nova disposição constitucional, contida no art. 5º., § 3º., da Constituição Federal, segundo a qual “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”    

Aliás, segundo Luiz Flávio Gomes, em razão:

“Do pensamento do Estado Moderno, da Revolução Francesa, do código napoleônico, onde reside a origem da confusão entre lei e Direito; os direitos e a vida dos direitos valeriam (exclusivamente) pelo que está escrito na lei; quando o correto é reconhecer que a lei é só o ponto de partida de toda interpretação (que deve sempre ser conforme a Constituição). A lei pode até ser, também, o ponto de chegada, mas sempre que conflita com a Carta Magna, perde sua relevância e primazia, porque, nesse caso, devem ter incidência (prioritária) as normas e os princípios constitucionais. A lei, como se percebe, foi destronada. Mesmo porque, ao contrário do que pensava Rousseau, o legislador não é Deus e nem sempre representa a vontade geral, ao contrário, com freqüência atua em favor de interesses particulares (ou mesmo escusos). Lei vigente, como se vê, não é lei válida. Sua validez decorre da coerência com o texto constitucional.”[88]

Vejamos, outrossim, estas observações de Dante Bruno D’Aquino:

“Como sua própria designação denota, a interpretação conforme a Constituição pressupõe um trabalho de exegese da norma infraconstitucional. Fundamenta-se, em primeiro plano, na superioridade hierárquica das normas constitucionais. Ou seja, no princípio pelo qual todas as normas devem se compatibilizar com a Constituição, encontrando nela, como já ressaltado por Kelsen, o seu fundamento de validade. Ao lado do primado da superioridade hierárquica das normas constitucionais está a presunção de legalidade da atividade legiferante do poder público. Esta presunção de legalidade, que, ressalte-se, admite prova em contrário, é o outro alicerce de alçada da interpretação conforme a Constituição. Noutro dizer, a superioridade hierárquica da Constituição Federal e a presunção de legalidade das leis demandam que, no exercício da atividade interpretativa, dê-se preferência ao sentido normativo que esteja consentâneo com a Carta Constitucional. (...) Importante constatar que a interpretação conforme a constituição, para além de uma categoria interpretativa distinta das modalidades clássicas, constitui um eficaz mecanismo de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos. Ao identificar a interpretação mais harmônica com a Constituição, afasta da norma a possibilidade de interpretações que surtam efeitos inconstitucionais.”[89]

E no Direito Processual Penal esta garantia constitucional guarda as mesmas características, as mesmas regras do Processo Civil. Obviamente que não. Aqui também nada que se falar em uma Teoria Geral.

Em primeiro lugar é preciso atentar que no Direito Processual Penal, em razão de seus próprios princípios, esta garantia constitucional transcende o mero interesse do réu, pois:“En interés del hallazgo de la verdad y de una defensa efectiva, puede, sin duda, actuar también en contra de la voluntad del inculpado, por ejemplo, interponer una solicitud para que se examine su estado mental”.[90]

Segundo Étienne Vergès:“Le défenseur (le plus souvent un avocat), occupe une place primordiale dans l´exercice des droits de la défense, Ainsi, l´article 6§3-c Conv. EDH permet à l´accusé (au sens large) de se defender lui-même ou d´avoir l´assistance d´un défenseur de son choix.”[91]

Também no Processo Penal, diferentemente do Processo Civil, admite-se a interposição de recurso mesmo contra a vontade do réu, pois:“Deve, como regra geral, prevalecer a vontade de recorrer, só se admitindo solução diversa quando, por ausência do interesse-utilidade, não seja possível vislumbrar, em face de circunstâncias do caso, vantagem prática para o acusado. (...) A regra da disponibilidade dos recursos sofre exceções no processo penal, em que a relação jurídica de direito material controvertida é de natureza indisponível, havendo limitações à disponibilidade dos recursos quando estejam em jogo os direitos de acusar e de defender. (...) Havendo conflito de vontades entre o réu e o advogado, a opinião mais coerente com as garantias da defesa é a de que deve prevalecer a vontade do defensor, que recorreu, não só em razão de seus conhecimentos técnicos, mas sobretudo para melhor garantia do direito de defesa.”[92]

Óbvio, pois:“para que haya un proceso penal propio de un Estado de Derecho es irrenunciable que el inculpado pueda tomar posición frente a los reproches formulados en su contra, y que se considere en la obtención de la sentencia los puntos de vista sometidos a discusión”.[93]

Ademais, diferentemente do Processo Civil, no Processo Penal o Ministério Público não pode desistir de recurso que haja interposto, conforme norma contida no art. 576 do Código de Processo Penal. Aliás, tal proibição, absolutamente estranha aos postulados do Direito Processual Civil, decorre exatamente da regra da indisponibilidade da ação penal pública, regra já referida e constante do art. 42 do Código de Processo Penal. Por outro lado, se o querelante desistir da ação penal, configurar-se-á um caso típico de perempção, ensejando a extinção da punibilidade (arts. 60, Código de Processo Penal e 107, IV, Código Penal). A propósito, confira-se os Enunciados 705 e 708 do Supremo Tribunal Federal.

De se ressaltar que a coisa julgada no Processo Penal, tratando-se de uma sentença condenatória ou absolutória imprópria (aquela na qual se aplica uma medida de segurança ao réu inimputável)[94], é sempre relativizada, em razão da figura da Revisão Criminal, cuja similitude com a Ação Rescisória Cível só tem a sua natureza jurídica (ações de natureza constitutiva). E só! Legitimidade, prazos, procedimento, condições da ação, etc., tudo é diferente.

A legitimidade para agir é muito, mas muito mais ampla que no Processo Civil, além do que o próprio condenado tem, além da legitimidade, óbvio, capacidade postulatória para o exercício da referida ação (art. 623, Código de Processo Penal). O interesse de agir é a coisa julgada e a possibilidade jurídica do pedido é uma sentença condenatória ou absolutória imprópria.

Podemos ainda identificar a possibilidade jurídica da causa de pedir, que são as três hipóteses legais de cabimento da ação revisional (art. 621, I, II e III), sendo possível a dilação probatória. É também cabível em relação às decisões proferidas no Tribunal do Júri, tanto o juízo revidente/rescindente quanto o juízo rescisório/revisório (neste sentido, ver Habeas Corpus nº 19.419 - DF – Superior Tribunal de Justiça - RT 811/557).

Não é necessário o recolhimento à prisão (Enunciado 393 da súmula do Supremo Tribunal Federal).

O respectivo procedimento está previsto no Código de Processo Penal e a competência na Constituição Federal e nas Constituições estaduais, sendo perfeitamente possível o julgamento extra ou ultra petita, desde que seja para, evidentemente, favorecer o autor, pois não se admite a reformatio in pejus, inclusive a indireta.

Permite-se, ademais, a reiteração da ação (com os mesmos elementos), desde que haja novas provas (ainda que haja identidade de ações), nos termos do art. 622.

Também é possível na Revisão Criminal um pedido de natureza cível, sendo, neste caso, indispensável a citação da Fazenda Pública, pois arcará com eventual pagamento (art. 630).

Como se sabe a Lei nº. 11.719/2008 alterou alguns dispositivos do Código de Processo Penal relativos à suspensão do processo, emendatio libelli, mutatio libelli e aos procedimentos. A grande novidade foi a possibilidade de na própria sentença condenatória penal o juiz fixar “valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido” (art. 387, IV).

Assim, além de aplicar a sanção penal, o Juiz criminal deverá também estabelecer a sanção civil correspondente ao dano causado pelo delito, algo semelhante ao que ocorre em alguns países, como no México onde, na lição de Bustamante, se:“Establece que la reparación del daño forma parte integrante de la pena y que debe reclamarse de oficio por el órgano encargado de promover la acción (o sea, que es parte integrante de la acción penal), aun cuando no la demande el ofendido.”[95]

Trata-se, evidentemente, de um julgamento extra petita autorizado (e mesmo imposto) pela lei, pois a decisão refere-se a algo que não foi pedido pelo autor na peça vestibular. Não cremos ser necessário ao acusador requerer nada neste sentido ao Juiz (ele o fará de ofício). Os elementos da peça acusatória continuam a ser aqueles do art. 41 do Código de Processo Penal. Neste sentido, por unanimidade, os Ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram não fixar valor mínimo para reparação dos danos causados pelas infrações cometidas pelos réus da Ação Penal (AP) 470.  O relator, Ministro Joaquim Barbosa, lembrou que não houve pedido formal nesse sentido, tanto por parte das pessoas que sofreram o prejuízo quando por parte do Ministério Público, que só o fez em alegações finais. Ao votar pela não fixação desse valor, o Ministro afirmou que o caso da AP 470 tem algumas singularidades: “A extrema complexidade dos fatos e a intensa imbricação dos crimes tornam inviável a fixação de forma segura de um valor, ainda que mínimo, para reparação dos danos causados pelos delitos praticados por cada um dos réus”.

Inteiramente contrário ao Código de Processo Civil, o Código de Processo Penal estabelece no art. 366 que se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva (art. 312):“Em respeito à garantia do devido processo legal e seus corolários da ampla defesa e do contraditório, na hipótese do imputado, procurado, não ser encontrado para a constituição de defensor e apresentação da defesa prévia, resta ao magistrado, por analogia, a aplicação do art. 366, do CPP, com a determinação de notificação editalícia. Escoado o prazo, sem o comparecimento em juízo do averiguado ou constituição por este de defensor, deve ser suspenso o feito, bem como o curso da prescrição.” (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro - HC 2009.059.00366 – rel. Desembargador Gilmar Augusto Teixeira).

A propósito deste dispositivo, e após entendimentos jurisprudenciais e doutrinários diversos, tentando resolver a questão, o Superior Tribunal de Justiça, equivocadamente, editou o Enunciado 455.

A intimação das partes: eis outra matéria cujo tratamento é inteiramente diverso do Processo Civil. Com efeito, dispõe o Enunciado nº. 710 da súmula do Supremo Tribunal Federal que “no processo penal, contam-se os prazos da data da intimação, e não da juntada aos autos do mandado ou da carta precatória ou de ordem.”

Quanto ao Júri, merece atenção neste trabalho, pois é o procedimento a ser observado no Processo Penal em relação ao crimes dolosos contra a vida (e os que lhe forem conexos), absolutamente inaceitável no Processo Penal.

Com efeito, em tal procedimento, é possível a recusa de até três juízes (jurados) com uma simples palavra: “recuso”! O motivo? O mais ignóbil que seja: racismo, homofobia, gênero, classe social, instrução, etc. (art. 468 do Código). É possível tal coisa no Processo Civil? Seria uma simples peculiaridade?

E o sigilo das votações, o que dizer, à luz do Princípio da Publicidade? E a motivação das decisões judiciais, também à luz do Princípio do Livre Convencimento Motivado? E possibilidade expressamente prevista pelo Código de uma decisão manifestamente contrária à prova dos autos (art. 593, III, D)? Como explicar tais “peculiaridades” sob a ótica de uma Teoria Geral?

Questões fundamentais a serem enfrentadas é a existência no Processo Penal da lide e da pretensão. Neste aspecto, é conhecida lição de Francesco Carnelutti:“Lide é conflito que deflagra em um contraste de vontades, portanto, um modo de ser do conflito de interesses (...) e pretensão é a exigência da prevalência de um interesse próprio sobre um interesse alheio.”[96]                                       

Se tais conceitos, repetidos ao longo de décadas, adequam-se ao Processo Civil, por outro lado, nada mais impróprio que se falar em lide no processo penal e mesmo, ao menos do ponto de vista carneluttiano, em pretensão. Até admito a chamada pretensão acusatória (não punitiva) no Processo Penal, desde o momento em que é oferecida uma peça acusatória (denúncia ou queixa), mas nunca como uma “a exigência da prevalência de um interesse próprio sobre um interesse alheio”, mesmo porque não há falar-se em interesse próprio do acusador, seja o Ministério Público, seja o querelante, muito menos em interesse prevalente. Qual interesse? A descoberta da verdade? Que verdade? Descobrir a verdade é algo impossível! Sobre o tema, um dos primeiros doutrinadores pátrios a se pronunciar com precisão sobre o tema foi Rogério Lauria Tucci, adjetivando como “inaceitável” o conceito civilístico de pretensão para o processo penal:“Apresentando-se ela (a pretensão) como elemento caracterizador da ocorrência de lide – seja pela resistência oposta pelo sujeito passivo da relação jurídica, cuja definição constitui a meta do processo extrapenal de conhecimento; seja pela insatisfação do direito neste reconhecido, ou reconhecível, dada a omissão ou, mesmo, atuação da parte vencida ou demandada -, é, igualmente, irrelevante no âmbito do processo penal, para cuja existência se mostra suficiente a ocorrência (suposta que seja) de infração, por membro da comunidade, a norma penal material. (...).”[97]

Daí porque Tucci, na obra citada, não admitir o nomen juris de litispendência no Processo Penal, mas de “causa pendente”, “dada a proclamada irrelevância do conceito de lide”.Veja-se, por exemplo, não ser:“Incomum haver consenso entre as partes e o processo ser necessário por imposição da própria lei (...) O desejo do réu de submeter-se à pena é irrelevante (...). Não se pode negar que o processo é uma das formas mais comuns de composição do conflito de interesses. Entretanto, urge admitir que a lide não lhe é essencial, podendo o processo ser concebido sem uma efetiva oposição do réu à pretensão do autor”, como afirma Afrânio Silva Jardim (que, sei, é um dos processualistas penais brasileiros adeptos da Teoria Geral do Processo).[98]

Também Eugenio Florian critica a existência da lide no Processo Penal. Para ele, não haveria conflito de interesses e sim um possível embate entre as partes, mas não de interesses, já que estes não seriam suscetíveis de disposição no processo. Vejamos o que ele escreveu, em tradução minha:

“A realidade é que no processo penal não há debate sobre dois interesses, pois o interesse é um só: a determinação da verdade, em torno da qual pode surgir ou não a controvérsia. Em todo caso, pode dar-se, se se quer contenda entre as partes; mas não de interesses, já que estes (à exceção dos patrimoniais da vítima) não são susceptíveis  de disposição no processo penal. (...) Se houvesse lide, só poderia ser entre o Ministério Público e o acusado. Mas, ainda assim, o conceito de lide repugna a estrutura e os fins do moderno processo penal e suas tendências atuais.”[99]

Exatamente por isso, Jacinto Miranda Coutinho afirma ser inaceitável no processo penal a lide para referir o conteúdo do processo penal, que deve ser apresentado pela expressão caso penal.[100] Outros preferem “controvérsia penal” (como Florian) ou “caso penal”.

José Carlos Teixeira Giorgis, citando Giulio Paoli, adverte que:“No processo penal o Ministério Público tem interesse na condenação do culpado, mas não do acusado, pois se este é inocente a instituição estatal tem interesse em sua absolvição. Daí, quando o juiz absolve, não sacrifica em nada o interesse do Ministério Público ou seja, do Estado-acusador, havendo então uma coincidência entre os interesses do estado e do inocente. A sentença absolutória, pois, não compõe um conflito, mas antes o exclui!”[101]

Giovanni Leone, no mesmo sentido:“Lide, no processo penal, não deve significar conflito de atividade, conflito aparente de interesses (...), ao contrário, no processo penal significa conflito permanente e indisponível de interesses e por isso mais vital, enquanto transcende cada reflexo particular e contingente.”[102]

A Teoria Geral do Processo não “é um excerto da Teoria Geral do Direito”. O Direito Processual Penal é sim “uma disciplina filosófica, especificamente epistemológica.” Tampouco “é o ramo da Epistemologia do Processo dedicado às elaboração, organização e articulação dos conceitos jurídicos processuais fundamentais (concei­tos lógico jurídicos processuais)”, mesmo porque tais conceitos são completamente diferentes quando se trata de Processo Penal e Processo Civil, razão pela qual processo não é um “conceito jurídico fundamental primário da Te­oria Geral do Processo.” A Teoria Geral do Processo, muito menos, serve como “repertório conceitual à compreensão” do Processo Penal, nem é “metalinguagem doutrinária” ou “linguagem sobre a Ciência do Direito Processual”. Este papel sempre coube, na verdade, à Teoria Geral do Direito.

Por outro lado, exatamente porque não se pode confundir “as Teorias Individuais ou Particulares do Processo, que são constru­ções doutrinárias elaboradas para a compreensão de determinado Direito positivo ou de um grupo de ordenamentos jurídicos, respectivamente” é que não se pode admitir a Teoria Geral do Processo.

Ademais, o fato inconteste de ter havido “transformações na metodologia jurídica, que caracterizam uma fase histórica já denominada de neopositivismo ou neoprocessualismo”, não é razão plausível para sustentar uma suposta reconstrução da Teoria Geral do Processo (que nunca foi construída em verdade), muito menos pela necessidade (que não existe) de uma “revisão de conceitos inadequados ou obsoletos e a incorporação de novos concei­tos jurídicos fundamentais processuais.” Não há nenhuma necessidade de ensinar, “no curso de graduação em Direito, a Teoria Geral do Processo”, muito menos na pós-graduação, mesmo porque não se trata de uma “enciclopédia jurídica propedêutica.”[103] (!) Parece-me uma pretensão um tanto quanto exagerada.

É preciso afirmar e reafirmar que o Processo Penal funciona em um Estado Democrático de Direito como um meio necessário e inafastável de garantia dos direitos do acusado. Não é um mero instrumento de efetivação do Direito Penal (como o Processo Civil é um mero instrumento de efetivação do direito material extra penal), mas, verdadeiramente, um instrumento de satisfação de direitos humanos fundamentais e, sobretudo, uma garantia contra o arbítrio do Estado.

Certamente sem um processo penal efetivamente garantidor, não podemos imaginar vivermos em uma verdadeira democracia[104]. Um texto processual penal deve trazer ínsita a certeza de que ao acusado, apesar do crime supostamente praticado, deve ser garantida a fruição de seus direitos previstos especialmente na Constituição do Estado Democrático de Direito. Como afirma Ada Pelegrini Grinover: “o processo penal não pode ser entendido, apenas, como instrumento de persecução do réu. O processo penal se faz também – e até primacialmente – para a garantia do acusado. (...) Por isso é que no Estado de direito o processo penal não pode deixar de representar tutela da liberdade pessoal; e no tocante à persecução criminal deve constituir-se na antítese do despotismo, abandonando todo e qualquer aviltamento da personalidade humana. O processo é uma expressão de civilização e de cultura e consequentemente se submete aos limites impostos pelo reconhecimento dos valores da dignidade do homem.”[105]

O Processo Penal é antes de tudo “um sistema de garantias face ao uso do poder do Estado.” Para Alberto Binder, por meio do Processo Penal: “procura-se evitar que o uso deste poder converta-se em um fato arbitrário. Seu objetivo é, essencialmente, proteger a liberdade e a dignidade da pessoa”[106]

Norberto Bobbio afirmava que:

“Os direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais. (...) Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.”[107]

Assim, a norma processual, ao lado de sua função de aplicação do Direito Penal (que é indiscutível), tem a principal missão de tutelar aqueles direitos previstos nas constituições e nos tratados internacionais. Exatamente por isso, o processo penal de um País o identifica como uma democracia ou como um Estado totalitário. Hélio Tornaghi com muitíssima propriedade já afirmava que: “a lei de processo é o prolongamento e a efetivação do capítulo constitucional sobre os direitos e as garantias individuais”, protegendo “os que são acusados da prática de infrações penais, impondo normas que devem ser seguidas nos processos contra eles instaurados e impedindo que eles sejam entregues ao arbítrio das autoridades processantes.”[108]

Evidentemente que não podemos confundir o Direito Processual Penal com um Código de Processo Penal (é óbvio!). O nosso, por exemplo, surgiu em pleno Estado-Novo[109] e traduzia a ideologia de então, mesmo porque: “las leyes son e deben ser la expresión más exacta de las necesidades actuales del pueblo, habida consideración del conjunto de las contingencias históricas, en medio de las cuales fueron promulgadas” (grifo nosso).[110]

À época tínhamos em cada Estado da Federação um Código de Processo Penal, pois desde a Constituição Republicana a unidade do sistema processual penal brasileiro fora cindida, cabendo a cada Estado da Federação a competência para legislar sobre processo, civil e penal, além da sua organização judiciária.

Como já referimos: “a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório.”[111]

Como notara José Frederico Marques:

“O golpe dado na unidade processual não trouxe vantagem alguma para nossas instituições jurídicas; ao contrário, essa fragmentação contribuiu para que se estabelecesse acentuada diversidade de sistemas, o que, sem dúvida alguma, prejudicou a aplicação da lei penal (...) Este Código, elaborado, portanto, sob a égide e “os influxos autoritários do Estado Novo”, decididamente não é, como já não era “um estatuto moderno, à altura das reais necessidades de nossa Justiça Criminal (...) Continuamos presos, na esfera do processo penal, aos arcaicos princípios procedimentalistas do sistema escrito (...) O resultado de trabalho legislativo tão defeituoso e arcaico está na crise tremenda por que atravessa hoje a Justiça Criminal, em todos os Estados Brasileiros. (...) A exemplo do que se fizera na Itália fascista, esqueceram os nossos legisladores do papel relevante das formas procedimentais no processo penal e, sob o pretexto de por cobro a formalismos prejudiciais, estruturou as nulidades sob princípios não condizentes com as garantias necessárias ao acusado, além de o ter feito com um lamentável confusionismo e absoluta falta de técnica.”[112]

Assim, se o velho Código de Processo Penal teve a vantagem de proporcionar a homogeneidade do processo penal brasileiro, trouxe consigo, até por questões históricas, o ranço de um regime totalitário e contaminado pelo fascismo, ao contrário do que escreveu na exposição de motivos o Dr. Francisco Campos, in verbis: “Se ele (o Código) não transige com as sistemáticas restrições ao poder público, não o inspira, entretanto, o espírito de um incondicional autoritarismo do Estado ou de uma sistemática prevenção contra os direitos e garantias individuais.”

Para finalizar, vejamos a conhecida Fábula da Cinderela, de Francesco Carnelutti:

“Havia uma vez três irmãs que tinham em comum , pelo menos, um dos seus pais. Elas se chamavam a ciência do direito penal, a ciência do processo penal e a ciência do processo civil. Ocorreu que a segunda, em comparação com as outras duas irmãs (que eram mais belas e prósperas), havia tido uma infância e uma adolescência desafortunadas, sofridas. Com a primeira das irmãs, esta segunda dividiu durante muito tempo o mesmo quarto; e aquele teve para si tudo de bom e do melhor ”. (Tradução minha).[113]

Sobre o autor
Rômulo de Andrade Moreira

Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos do Ministério Público do Estado da Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador - UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG) e IELF (SP). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Rômulo Andrade. Breve esboço a respeito da inexistência de uma teoria geral do processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4102, 24 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32202. Acesso em: 18 dez. 2024.

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