IV - AS CONSEQÜÊNCIAS DO DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL.
Para que um imóvel rural esteja cumprindo a sua função social é obrigatória, além da produtividade agrícola, a observância também dos demais requisitos constitucionais do art. 186. Este tópico irá apresentar as conseqüências que decorrerão na hipótese de não cumprimento simultâneo dessas condições para o suposto proprietário, a saber: 1) a negativa da tutela jurisdicional na proteção da posse pelo Estado em caso de conflitos agrários e 2) a permissão para arrecadação do bem pelo Estado, sendo o “proprietário” indenizado apenas pelas benfeitorias acrescidas ao imóvel.
A) PERDA DA TUTELA JURISDICIONAL NA PROTEÇÃO POSSESSÓRIA
Já há muito Rodotà percebia que a eventual inatividade do proprietário, quando gravada sua propriedade com uma obrigação ou ônus, determinaria uma superveniente carência de legitimação à titularidade ou ao exercício do direito de propriedade. [xxiv]
A questão se agrava no caso de mau uso da propriedade, imóvel rural ou urbano, quando o proprietário deixa de adotar condutas positivas de utilização social do bem. Basta pensar, por exemplo, nas hipóteses comuns de estoque de imóveis urbanos adquiridos por determinado empreendedor para fins especulativos, sem que se lhes dê devida utilização. Ou, então, da propriedade rural mantida pelo titular ociosa e improdutiva, ou, pior, vulnerando o meio ambiente ou afrontando regras cogentes que disciplinam as relações de trabalho. [xxv]
O Professor Luiz Edson Fachin afirma que “a função social da propriedade corresponde a uma formulação contemporânea de legitimação do título que encerra a dominialidade”.[xxvi] Assim como Fábio Konder Comparato que defende o descumprimento do dever social imposto ao proprietário como elemento que afasta as garantias ligadas normalmente à propriedade, notadamente a exclusão das pretensões possessórias de outrem, de tal modo que não poderia invocar a proteção judicial da posse e nem usar o desforço privado imediato.[xxvii]
Nesse sentido, o Professor Ruy Rubem Ruschel, defende que o art. 1.228 do Código Civil de 2003 (correspondente ao que o art. 524 do Código de 1916), que dispõe: “A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua”, merece uma releitura, a qual por conseqüência, projeta-se na definição de posse do art. 1.196 do Novo Código Civil (correspondente ao art. 485 do C.C. de 1916)[xxviii], onde para alguém ter de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio, é preciso que esteja a usar ou gozar do bem secundum beneficium societatis, ou, no mínimo, ter a coisa à disposição para o mesmo fim. Exemplifica o Professor que aquele que cerca um imóvel adequado à produção e deixa-o ao léu, esperando que se valorize para revendê-lo não pode alegar que dele dispõe para a sua função social. Certamente não está exercendo o uso ou o gozo do bem; não o dispondo nem para os objetivos sociais, atentos apenas ao seu interesse próprio e egoístico. Com efeito, não é possuidor do imóvel, pois nesta hipótese estaria presente o corpus, a detenção da coisa, mas faltaria o animus, caracterizado como a vontade de ter a coisa segundo seu aproveitamento social.[xxix]
Ora, como lecionava Pressburger, o julgamento das causas possessórias agrárias por normas processuais civis irremediavelmente conduz à incerteza jurídica, pois a lei processual civil, fruto de um modelo liberal individualista, refere-se a direitos materiais enunciados em um Código datado de 1916 e não aponta, e nem pode, solução para a contradição presente: proteção possessória versus a punição pelo descumprimento da função social. Desse modo, a lei processual deve ser interpretada em conformidade à Constituição Federal, devendo-se dar novo entendimento ao art. 926 do CPC, que trata da petição inicial devidamente instruída e a exigência do art. 282 do CPC. Porque a petição inicial devidamente instruída deve ser compreendida como trazendo a prova, concludente e insofismável, do cumprimento da função social da propriedade. Tal prova poderá ser feita por certidão atualizada do INCRA, por prova pericial prevista no art. 850 do CPC, ou a inspeção prevista no art. 126, parágrafo único, da Constituição Federal, e regulada no art. 400 e seguinte do CPC. A ausência dessa prova é vício insanável, não tocando ao juízo outra alternativa que não a de indeferir de plano o pedido de liminar e a condução do feito pela via ordinária.[xxx]
Exemplo desse entendimento na prática foi a decisão do Juiz da Comarca Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, Luís Christiano Enger Aires, de 17 de outubro de 2001, em uma Ação de Reintegração de Posse ajuizada por Plínio Formighieri contra famílias sem terra, que pela coragem e sensatez foi confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado, tendo como relator o Desembargador Carlos Rafael dos Santos Júnior. Apesar de extenso é extremamente relevante a transcrição de trecho desse despacho, como feito a seguir.
DESPACHO INICIAL:
... Em primeiro lugar, necessário deixar frisado que, apesar da sua insuficiência - se analisados solidariamente - os autores deveriam ter acostado aos autos a chamada Declaração de Propriedade (Estatuto da Terra, art. 49), onde conste o grau de utilização da terra e o grau de eficiência 'obtido nas diferentes explorações' (Lei n.º 8.629/93, arts. 2º e 9º, em especial). Tais índices, por essas regras, são considerados como graus capazes de orientar o operador do direito na análise e no juízo da produtividade e do cumprimento da função social da propriedade em questão.
De qualquer forma, desaguando o litígio - que é apenas parte do conflito - em demanda judicial, impõe se seja apresentada uma solução. E esta solução, como em toda atividade jurídica, passa pela interpretação do direito que, por sua vez, vai transformar as disposições legais na norma do caso concreto...
... Com efeito, a Constituição da República - através de cuja ótica deve ser interpretado todo o direito posto - estabeleceu um projeto emancipatório que deve ser perseguido pelo poder público - em todas as suas esferas de expressão - e pela sociedade, inclusive pelos juízes no exercício de suas tarefas, visando estabelecer uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I). Tal regra a toda evidência, faz repousar o direito brasileiro na idéia de justiça e de solidariedade, razão de ter sido expressamente funcionalizada a propriedade (art. 5º, XXII e XXIII), dentre outros aspectos que não vem ao caso examinar nos limites desta decisão.
Portanto, para alguém exigir a cautela judicial de proteção à sua posse ou propriedade, necessita fazer prova adequada de que esteja usando ou gozando desse bem 'secundum beneficium societatis', ou seja, do acordo com os interesses da sociedade e não apenas seus próprios interesses ou de sua família, principalmente, quando o grau de comprometimento desse exercício é diminuto como na hipótese, já que ocupados apenas três hectares no universo da propriedade...
... Nessas circunstâncias vê-se logo ter se instalado um conflito entre direitos - o direito de propriedade dos autores e o direito fundamental à vida digna dos requeridos -, o qual deve ser solvido, mesmo que provisoriamente (como é a natureza dessa decisão) através da justa ponderação acerca dos interesses em conflito.
Para tanto, desde logo é necessário reconhecer a total ineficácia dos mecanismos jurídico-processuais tradicionais para a solução adequada e razoável de conflitos coletivos, pois a individualização e atomização do conflito não permitem seja esse efetivamente resolvido, mas apenas afastado, até porque normalmente refletem demandas sociais decorrentes de problemas estruturais e supra-individuais. Em outras palavras: político.
Desaparecendo o direito de propriedade, consoante afirmação de PIETRO PERLINGIERI, plenamente assimilável no direito brasileiro como visto acima. Assim, tem-se que a função social passa a ser elemento constitutivo do direito de propriedade, como reconhecido por JOSÉ AFONSO DA SILVA, ao afirmar que é ela "elemento da estrutura e do regime Jurídico da propriedade".
Por isso a importância da demonstração - inito litis - de que os autores observam efetivamente a funcionalização da propriedade se impunha, já que do contrário correr-se-ia de reintegrar na posse, aquele que já não tem mais direito à propriedade.
Ademais, não se pode esquecer que o conflito trazido a exame deste magistrado traduz colisão entre direitos, cuja solução implica - como já dito - em ponderação dos interesses em jogos, inclusive mediante a observação da necessária proporcionalidade.
Assim, de um lado, temos o direito de propriedade e o conseqüente prejuízo patrimonial que eventualmente seja causado aos autores pela ação dos requeridos; e, de outro, o direito à vida digna dos requeridos, que buscam obrigar o Estado brasileiro a cumprir - com urgência - as tarefas que lhe foram impostas constitucionalmente e que tem sido historicamente postergadas.
Não tenho dúvida de que, havendo necessidade de um desses direitos ser sacrificado, deve ele ser o patrimonial, considerando que a Constituição da República (art. 1º, II e III, e art. 3º) reconheceu aquilo que a doutrina e a jurisprudência alemãs chamam de 'garantia estatal do mínimo existencial' ou 'garantia positiva dos recursos mínimos para uma existência digna'. E como garantir esse mínimo sem atentar para a necessidade de preservar os bens fundamentais (trabalho, moradia, educação, saúde) que correspondem à qualidade humana, sem os quais sequer se poderia falar de pessoa, consoante afirmado por RICARDO LUIS LORENZETTI [xxxi]?
O faço, assim, tendo em vista que admitir a reintegração de posse nessas circunstâncias implicaria em desconsiderar qualquer critério de razoabilidade e em literalmente jogar os requeridos na estrada, submetendo-os aos riscos daí decorrentes, inclusive a sua sobrevivência. Ademais, não se afiguraria proporcional exigir dos requeridos que deixassem o imóvel - desde logo - sem que tivesse sido comprovado satisfatoriamente o cumprimento da função social da propriedade em questão e considerando a mínima parcela do imóvel que ocupam, o que certamente não inviabiliza a atividade produtiva dos autores e nem coloca em risco sua segurança ou de seus empregados.
Por fim, não é demais considerar que a manifestação dos requerimentos encontra raízes no exercício da cidadania - como universalidade abstrata reconhecida pelo Estado moderno - contra a insuficiência das ações estatais destinadas a corrigir a grave chaga social da exclusão.
Tal conduta, à evidência, implica em tensionamento entre os fatores sociais e políticos, de um lado, e as normas jurídicas, de outro, no sentido de estimular demandas sobre o poder público. E tal ação, novamente considerando as tarefas constitucionais impostas tanto ao poder público como à própria sociedade e constantemente negligenciadas, implica que diante do conflito concreto aqui examinando, se consideram as partes com absoluta igualdade, pois 'Se o conceito de homem, ou de cidadão, contém em si um valor, então do juízo de igualdade entre os homens, ou entre os cidadãos (dois, alguns ou todos), deriva a prescrição de tratá-los como iguais, ou seja, de considerar e respeitar em cada homem ou cidadão o valor (ou valores) que leva consigo qualquer outro homem ou cidadão'[xxxii]
Para considerá-las como tal, impossível agregar à pretensão dos autores qualquer presunção decorrente do título de propriedade, sacrificando-a - mesmo que parcial e provisoriamente - em favor do 'mínimo existencial' reconhecido pelo Estado em favor dos requeridos, como decorrência do princípio de solidariedade social albergado pela Constituição da República (art. 3º, I).
Isso posto, INDEFIRO a liminar postulada o DETERMINO a citação dos requeridos, para que contestem, querendo, a presente ação no prazo legal.
A densidade constitucional e infraconstitucional do entendimento de não conceder arbitrariamente a tutela jurisdicional ao proprietário de extensas áreas rurais que não comprovem o cumprimento da obrigação funcional de seu imóvel é bastante explícita. O descumprimento do dever social do proprietário significa uma lesão ao direito fundamental de acesso à propriedade de função individual dos demais sujeitos privados, reconhecidos doravante, pelo sistema constitucional.
Por fim, nessa hipótese, as garantias ligadas normalmente à propriedade, notadamente a de exclusão das pretensões possessórias de outrem, devem ser afastadas,[xxxiii] tudo conforme o entendimento do direito de propriedade como uma situação jurídica complexa, diretamente relacionada com a posse, que é o seu exercício extrínseco e deve observar o seu escopo social. Entendimento, ainda tímido, mas já presente no Judiciário brasileiro como se verificam nos julgados a seguir expostos:
A função social da propriedade relaciona-se diretamente com posse. Ter a propriedade função social significa o efetivo exercício fático de uma ação (=função) social. Exercer faticamente alguma ação sobre a propriedade nada mais é do que o próprio conceito de posse. Logo, a função social da propriedade é a própria posse como o fato socialmente relevante exercido sobre a propriedade.[xxxiv]
Como estamos em sede de proteção judicial da posse, temos que, quando o inciso III do art. 282 do CPC fala em “fundamentos jurídicos”, na verdade está a se referir ao requisito da função social que a Constituição Federal (nos incisos já referidos – XXII e XXIII do art.5º) traz para possibilitar o exercício do direito de propriedade. Em outras palavras, não basta afirmar na petição inicial como “fundamento jurídico” apenas a propriedade. Pois “jurídico” é o fundamento que – de acordo com a Constituição Federal – se assenta na função social da propriedade. Fora disso se estará – indevidamente sonegando, impedindo, silenciando e afastando a incidência da Constituição Federal no processo civil. A Constituição obriga o juiz a enfrentar ainda que sem requerimento da parte, o tema pertinente à função social da propriedade.[xxxv]
B) A ARRECADAÇÃO DAS TERRAS ABANDONADAS
Observa-se na lição do Professor Celso Antonio Bandeira de Mello, ao tratar do instituto da desapropriação, orientado pelo Ordenamento Jurídico brasileiro e com fundamento em julgados do TFR e do STF, que seria um procedimento, pelo qual o Poder Público, com fundamento em necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, despoja alguém de um bem, compulsoriamente, adquirindo-o para si, em caráter originário, mediante indenização prévia, justa e pagável em dinheiro. Ressalvando que em alguns casos de imóveis urbanos ou rurais, descumpridores da função social, a indenização far-se-á em títulos da dívida pública, resgatáveis em parcelas anuais e sucessivas, preservando seu valor real.[xxxvi] Nas desapropriações por interesse social com fins de reforma agrária, a indenização de benfeitorias úteis e necessárias é paga em dinheiro, enquanto o valor da terra nua é pago com Títulos da Dívida Agrária, conforme o art 5º, parágrafo 1º da lei 8629/93.
A desapropriação por interesse social é o instrumento clássico para a realização da política de redistribuição de propriedade privada. É um tipo de expropriação que não representa o sacrifício de um direito individual às exigências de necessidade ou utilidade pública-patrimonial. O que ela é na verdade, é uma imposição administrativa de uma sanção, pelo descumprimento do dever, que incumbe a todo proprietário, de dar a certos e determinados bens uma destinação social.[xxxvii]
O interesse social está relacionado à necessidade de que exista uma melhor distribuição e condicionamento da propriedade privada. Então se a propriedade está sendo sub-aproveitada, o interesse social recomenda que a desapropriação aconteça para dar um uso adequado, mais racional àquela propriedade. Toda desapropriação relacionada à Reforma Agrária é uma desapropriação motivada por interesse social e não por necessidade ou utilidade pública, porque é o interesse social que determina que haja uma redistribuição da propriedade, desconcentração fundiária e uma melhor utilização do imóvel.
Todavia, o que se pretende é propor a possibilidade de uma nova forma de arrecadação de terras para assentamentos de trabalhadores rurais sem terra, como uma forma de se tentar atender a demanda de famílias camponesas por terra, apesar das sérias barreiras orçamentária para a promoção da Reforma Agrária, principalmente pelo alto custo dos valores das indenizações pagas aos supostos proprietários que não cumprem com sua obrigação constitucional, nos casos de desapropriação por interesse social.
A proposta surge norteada pelo interessante entendimento do Professor Eros Roberto Grau, o qual desenvolve que não há na hipótese de propriedade que não cumprir a sua função social, “propriedade” desapropriável. Pois é evidente que só se pode desapropriar a propriedade, onde ela não existe não há o que desapropriar. O pagamento dessa indenização consubstancia pagamento indevido, ao qual corresponderá enriquecimento sem causa do “proprietário”.[xxxviii]
A grande questão a ser tratada aqui é como o latifundiário perderia a propriedade do imóvel rural que não cumprisse com a sua função social, para a partir de então justificar a indenização apenas das benfeitorias acrescidas ao imóvel, mas não da terra nua, esta arrecadada pelo Estado.
Tentando responder a isso, Lênio Streck disserta que a figura jurídica do abandono, prevista como causa de perda da posse no art. aos artigos 1.223[xxxix] e perda da propriedade no art. 1.275, III do vigente Código Civil (correspondentes, respectivamente, aos art. 520, I e art. 589, III do Código de 1916), precisam passar por um processo de filtragem hermenêutica-constitucional, não mais valendo, como bem lembra o Professor Ruschel, a lição do Conselheiro Lafayette, segundo o qual ao titular é lícito deixar a coisa deserta ou ao desamparo e não obstante conserva-lhe a propriedade. Devendo o abandono ser interpretado como consumado sempre que o dono deixe de destinar o imóvel a sua vocação social.[xl]
O que se pretende é uma analogia da figura do abandono, interpretado em consonância com a carta de 88, com a figura do “devoluto”, vigente ao tempo do antigo regime no Brasil. Com efeito, a coroa portuguesa concedia as sesmarias, fazia doações de lotes menores e capitanias hereditárias, sendo que todas essas formas de distribuir terras impunham obrigações para os beneficiários. Em não havendo o cumprimento, implicava na devolução das terras, de onde deriva a expressão “terras devolutas”. Assim, conforme discutido nos itens anteriores, é possível afirmar que a propriedade que não cumpre a sua função social não está de acordo com uma das condições-de-ser-propriedade e de continuar-a-ser-propriedade, impostas na Constituição da República. Como conseqüência, a falta de cumprimento dessa condição básica deve gerar ônus e sanções, sob pena da ineficácia do comando da norma constitucional que estabelece a função social como condição essencial para a manutenção dominial. Desse modo, se no tempo do Império a penalidade era a sua devolução à Coroa, agora passa a ser a de que a terra fique à disposição para a reforma agrária, cabendo ao Estado, legal e constitucionalmente, arrecadá-la, nos exatos termos do art. 1.275, inciso III do Novo Código Civil. Dito de outro modo, as terras abandonadas de hoje são, mutatis mutandis, uma espécie de terras “neodevolutas”.[xli]
Com efeito, quanto à indenização, aos que argumentam que o art. 184 da CF induziria a interpretação de que, se está determinada a indenização, é porque a propriedade, mesmo não cumprindo a função social, estaria de qualquer modo reconhecida, é relevante dizer que é necessário dar outro sentido a essa indenização prevista no art.184, pois não se trata de pagar o valor atualizado do imóvel “abandonado”, passível de arrecadação, e sim, de indenizar o ex-proprietário (porque a não função social implicou na arrecadação pelo abandono) pelos seus investimentos (as benfeitorias voluptuárias, em títulos; as benfeitorias úteis e necessárias, em dinheiro). Afinal, se o titular abandonou o imóvel rural, deixando-o sem função social, perdeu sua propriedade antes da desapropriação; o ato expropriatório terá objetivo tão somente integrá-lo de imediato no domínio da União e indenizar os custos acaso investidos pelo ex-dono, isto porque existe uma diferença de natureza entre indenização que cabe nas desapropriações por necessidade e utilidade pública (art.590, CC de 1916) e aquela das desapropriações de imóveis rurais por interesse social.[xlii]
O Novo Código Civil reza, em seu art. 1.276 (antigo 589, §2º), que “o imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições” e em seu § 1o, ao tratar da propriedade rural, reza que “o imóvel situado na zona rural, abandonado nas mesmas circunstâncias, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade da União, onde quer que ele se localize”. Desse modo, o atual Código torna ainda mais factível à tese aqui defendida, prevendo ainda no § 2o do mesmo artigo a presunção de abandono do imóvel com a cessação da prática de atos de posse e a não satisfação das obrigações fiscais.
Por se tratar de um tema eivado de preconceitos por ser comum a concepção romana de propriedade no senso dos operadores do direito, faz-se necessário observar outros exemplos para melhor compreender a plausibilidade da proposta. Assim, interessante observar o caso de uma obra de arte, na qual se constata, primeiramente, que sua importância social está já valorada pela Constituição, não podendo nem o legislador ordinário negá-la, nem o possuidor subtraí-la à função social que a grava. Agora, se algum proprietário de obra de arte que integre nosso patrimônio artístico e cultural furta-se à satisfação da função social de preservá-la, seria cabível uma ação judicial de um particular ou mesmo do Poder Público para efetivá-la, obrigando o proprietário a preservá-la. Todavia, se o escopo da ação fosse apropriar-se dela, o ato seria igualmente procedente se fosse a única forma de exigir o cumprimento daquela função social que grava a referida obra, visto que a garantia da propriedade privada do dono da obra só vai até os limites fronteiriços do interesse social, e a destruição dela, apresentando ou não qualquer interesse para o dono, estaria em conflito com o interesse da coletividade, que se quer ver protegido e que conflita com o interesse do particular.[xliii]
Desse modo, a função social da propriedade deve ganhar força na compreensão dos juristas diante de conflitos agrários, para perceber o choque entre a defesa do direito de propriedade e o dever de respeito aos direitos humanos, constitucionalmente garantidos, como se observa no sensível julgado transcrito abaixo:
Constituição Federal, ao garantir o direito de propriedade e o possessório que lhe é inerente, em seu art. 5º, XXII e XXIII, condicionou seu exercício ao atendimento de uma garantia maior, qual seja, a de que este exercício, do poder dominial em toda sua amplitude, fica limitado, ao atendimento de sua função social. Respeitante à terra, mãe provedora de todos nós, já que a extração de nossa subsistência a ela se liga diretamente, deve atender não apenas ao sentido funcional direto, de ser produtiva, senão, também, a um sentido oblíquo, considerado o tempo e o lugar em que os fatores se dão, de garantir o abrigo seguro, a casa, a moradia e o sustento do povo, que, em exame mais teleológico, é seu verdadeiro senhor. Escusa insistir no fato de que os direitos fundamentais protegem a dignidade da pessoa humana e representam a contraposição da justiça ao poder, em qualquer de suas espécies. Quando a propriedade não se apresenta, concretamente, como garantia de liberdade humana, mas, bem ao contrário, serve de instrumento ao exercício de poder sobre outrem, seria rematado absurdo que se reconhecesse o estatuto de direito humano, com todas garantias inerentes a essa condição, notadamente a de uma indenização reforçada na hipótese de desapropriação. É preciso, enfim, reconhecer que a propriedade-poder, por não ter natureza de direito humano, pode ser uma fonte de deveres fundamentais, ou seja, o lado passivo de direitos humanos alheios.[xliv]
Também contribui para a aceitação dessa proposta o exame da função social dos bens de serviços como hospitais e escolas, por exemplo, em que seria inadmissível que o proprietário de um empreendimento dessa natureza tivesse apenas o lucro como principal objetivo. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu no sentido de prevalência da função social sobre o direito do proprietário que não a respeita, como na decisão abaixo transcrita:
Médico. Direito de internar e assistir seus pacientes. (...) Decisão que reconheceu o direito do médico (...) de internar e assistir seus pacientes em hospitais privados com ou sem caráter filantrópico, ainda que não faça parte de seu corpo clínico, respeitadas as normas técnicas da instituição, não ofendeu o direito de propriedade, estabelecido no art. 524 do Código Civil. Função social da propriedade, ou direito do proprietário sujeito a limitações (...).[xlv]
Esse tratamento da função social pelo Superior Tribunal de Justiça é usada em julgados que envolvem conflitos agrários como se vê na decisão exposta:
Na espécie constatou-se que, inobstante pudesse vir a ser produtiva, do ponto de vista dos resultados econômicos, a Fazenda Primavera não cumpria sua função social, o que se extrai da existência de débitos fiscais em favor da União. De fato, não cumpre sua função social a propriedade cujo titular, embora granjeando lucros, esquiva-se de suas obrigações fiscais, as quais se destinam justamente a interesses sociais de grande repercussão, depauperando-se o erário e retirando do Estado os instrumentos para a consecução de políticas públicas.
Gize-se que, ainda que a área seja produtiva, se não obstante tal produção, seus proprietários não vêm atendendo aos impostos, incidentes ou não sobre a área discutida, a função social da propriedade não está sendo atendida. Ocorre que a produção singelamente considerada tem função direta de lucro ao produtor, que a vende pelo preço melhor possível, e somente secundária, de alimentação do povo. A função social direta da empresa produtiva é o recolhimento de impostos, taxas públicas, encargos sociais, e a geração de empregos.”
Esta tem sido, de resto, a tendência do Superior Tribunal de Justiça, em diversas hipóteses. A título exemplificativo, no conflito entre o interesse do proprietário de hospital particular e o “direito do médico ao livre exercício de sua arte”, a Corte considerou prevalente este último, negando-se alegada ofensa ao direito de propriedade por médico que, mesmo não integrando os quadros de determinada clínica particular, se vale de suas instalações para atender a cliente seu, que necessitava de cuidados. Entendeu que a propriedade desempenhava, em tal caso, específica função social.[xlvi]
Por fim o comentário do Professor Dalmo de Abreu Dallari coaduna-se com o que aqui é defendido, ou seja, o não reconhecimento da propriedade quando não houver função social sendo cumprida:
Uma conseqüência da aplicação dessa norma constitucional é que não existe direito de propriedade quando não estiver satisfeita a exigência da função social. Essa foi a conclusão a que chegou a Terceira Câmara do Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, quando, em decisão referida por José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, 2ª edição, p. 497), não reconheceu o direito do titulo formal do domínio que havia mantido uma área em desuso, dando ganho de causa ao posseiro que havia ocupado a terra, tornando-a produtiva com seu trabalho, dando-lhe função social..[xlvii]
Desse modo, demonstra-se que é possível no atual ordenamento jurídico, com o escopo de reduzir os custos das desapropriações de interesse social com fins de reforma agrária, e de fato praticar justiça, sancionar na medida certa o proprietário que não impõe uma destinação social ao seu bem de produção.