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O direito de nascer do ventre de mãe morta e demais questões afins:

o caso Marion Ploch

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Agenda 01/10/2002 às 00:00

4. O DIREITO DE NASCER E O ABORTO

Já foi visto e revisto neste trabalho que a inviolabilidade da vida é um direito também oferecido ao nascituro.

Ora, se há tutela à vida, por óbvio, resguarda-se ao ser intra-uterino o direito de nascer, mesmo em detrimento da integridade física da genitora.

No conflito de interesses e entrechoque de valores da personalidade, escolhe-se a todo instante a vida, até mesmo porque o feto não faz parte do corpo da mãe (pars viscerum matris).

O bem maior do ser humano supera qualquer direito da mulher sobre seu próprio corpo, além do que, reitere-se, o nascituro não o integra.

Merece destaque mais uma decisão do sempre lúcido Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, in verbis:

"Pedido de aborto. Estupro. Violência indemonstrada. Direito do feto à vida. Proteção constitucional. Direito natural. Diante da ausência de elementos seguros de convicção acerca da ocorrência de violência sexual, não se mostra recomendável nem indicada a interrupção da gravidez pretendida, vsito que maiores seriam os malefícios. Destaco que merece maior proteção o interesse do nascituro em viver, conforme o art. 227 da CF. O fato de existir e de permanecer vivo, enquanto as funções biológicas permitirem, constitui direito natural inalienável de todo ser humano e, em si mesmo, o ponto de partida para todos os demais direitos que o ordenamento jurídico possa conceber. Recurso desprovido (grifo nosso)". (TJRS, 7ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 70001010446, rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, j. 03.05.00).

A Declaração dos Direitos da Criança, de 20 de novembro de 1959, determinava que, in verbis:

"A criança, dada a sua imaturidade física e mental, precisa de proteção legal apropriada, tanto antes como depois do nascimento".

O direito à vida não exige nenhum pressuposto, sendo integralmente tutelado desde a concepção, inclusive para o nascituro.

Fica cada vez mais claro, portanto, que o bebê de Marion Ploch deveria realmente nascer, independente dela estar morta. A perda de uma vida jamais poderá justificar a retirada de outra.

Ao contrário, é missão do Direito e da Medicina priorizar a vida como valor maior.

Com esse intuito, inclusive, os médicos poderiam suprir a vontade contrária dos pais da paciente através de um alvará judicial, o qual isentaria os profissionais de qualquer responsabilidade.

Apesar de clareza tão meridiana, registre-se que Maria Helena Diniz [29] tem posição contrária, in verbis:

"Poderá também haver responsabilidade médica por dano moral ao nascituro na cesárea ‘post mortem’, para resgatar feto vivo do cadáver de sua mãe, mas, para tanto, será necessário que o médico esteja certo do óbito da gestante, que deverá ser confirmado por outro médico, ante o direito de viver do novo ser, sob pena de omissão de socorro. Tal intervenção não poderá ser feita em gestante agonizante".

Inobstante o douto entendimento, concessa venia, nem mesmo o dano à moral do feto é obstáculo para que ele venha a nascer.

Nesse trilhar é que decorre a punição, na ordem jurídica brasileira, do aborto, considerado ilícito civil e penal.

Damásio E. de Jesus [30] define aborto como uma interrupção da gravidez com a consequente morte do feto (produto da concepção).

Etimologicamente, aborto é a junção de ab (privação) e ortus (nascimento), ou seja, privação de nascimento.

Tomando-se como critério a causa, há três diferentes espécies de aborto.

A primeira é o aborto natural ou espontâneo. Não é considerado crime nem mesmo ilícito civil porque a gravidez foi interrompida de forma não intencional (ausência de dolo ou culpa), em razão de doenças da mãe por exemplo.

Outra espécie é o aborto acidental, decorrente, em regra, de um trauma físico (exemplo: queda) ou psicológico (exemplo: susto). Também não configura tipo penal e, desde que não haja imprudência, negligência ou imperícia, inexiste o ilícito civil.

Já o provocado pode configurar crime e/ou ilícito civil. São duas as suas subespécies: o criminoso e o permitido.

O aborto criminoso constitui tipo penal, conforme as hipóteses previstas nos artigos 124 a 127 do Código Penal. Por força do artigo 91, I, do mesmo estatuto e do art. 63 do CPP, há caracterização, na mesma medida, do ilícito civil.

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O aborto permitido não é crime, ao contrário, são hipóteses trazidas no bojo do artigo 128 do Código Penal que excluem a ilicitude do ato.

Excluído o ilícito, a maioria da doutrina e jurisprudência entende que nenhuma consequência permanecerá na seara cível.

No episódio de Marion Ploch, restou delineada a primeira espécie de aborto, qual seja, o espontâneo ou natural. Logo, não haverá qualquer responsabilização cível ou criminal dos médicos nem dos pais da falecida.


5. A PROTEÇÃO À INTEGRIDADE FÍSICA E A DOAÇÃO DE ÓRGÃOS

Os primeiros médicos que atenderam Marion Ploch pretendiam obter da família a permissão para a doação de órgãos, posto que não acreditavam na sobrevivência do feto. Entretanto, os pais recusaram o pedido.

Indaga-se: é possível a doação de órgãos neste caso e, se afirmativa a resposta, em quais termos?

O direito ao próprio corpo como um todo e em separado (órgãos e tecidos) integra o rol dos ditos direitos da personalidade.

Como tal, é bem indisponível, coisa fora do comércio, nos termos do artigo 69 do Código Civil, enfim, guarda tom eminentemente extrapatrimonial.

Destarte, em um conflito com outro valor da personalidade de maior importância ou abrangência, de acordo com o princípio da proporcionalidade, o direito ao corpo próprio pode ser relevado a segundo plano.

Isso acontece quando a integridade física cede espaço a um estado de necessidade. Assim, admite-se a disponibilidade para salvaguardar a saúde do interessado ou de terceiro ou para fins científicos ou terapêuticos.

Portanto, com o escopo nobre e ímpar, o titular pode dispor do seu direito. Mas são impostos limites pela Lei nº 9.434/97, regulamentada pelo Decreto nº 2.268/97.

Os médicos que pretendiam conseguir a doação de órgãos fizeram a proposta antes mesmo do diagnóstico de morte encefálica [31] da paciente.

Assim, necessário é verificar, em apertada síntese, se estavam presentes os principais requisitos exigidos no artigo 9º para a doação inter vivos.

Ab initio, a disposição, qualquer que seja a espécie, só é autorizada quando realizada de forma gratuita. É norma que visa o combate ao mercado de órgãos e tecidos humanos.

Além disso, a finalidade da doação é terapêutica ou para transplantes em cônjuge ou parentes consaguíneos até o quarto grau ou, ainda, para qualquer pessoa desde que haja autorização judicial.

Ademais, o órgão ou tecido não deve ser essencial para a vida ou saúde do doador.

Requer, ainda, a expressa e voluntária autorização do proprietário dos bens ou, se incapaz, dos seus representantes legais.

Em tese, preenchidos todos os requisitos supra, seria cabível a doação de órgãos desde que os pais de Marion Ploch consentissem.

Contudo, em virtude da gravidez, em nenhuma hipótese os médicos poderiam lograr êxito na sua pretensão, como esclarece o parágrafo 7º do artigo em debate, in verbis:

"§ 7º. É vedado à gestante dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido para ser utilizado em transplante de medula óssea e o ato não oferecer risco à sua saúde ou ao feto (grifo nosso)".

É de clareza solar que o dispositivo transcrito é aplicação do princípio da inviolabilidade da vida humana. Mais uma vez ela (a vida) prevalece sobre outro bem jurídico.

E é correta a vedação. Os fins a que a doação se destina não superam o direito de nascer.

Isto posto, mesmo que os pais de Marion Ploch aceitassem, impossível a doação de órgãos face a existência do nascituro.

Confirmada a morte cerebral (encefálica) da genitora em 8 de outubro de 1992, haveria alguma alteração na solução apresentada?

A doação post mortem tem requisitos semelhantes à inter vivos, quais sejam, a gratuidade (art. 1º) e a finalidade terapêutica ou humanitária (art. 3º).

Só que se verifica um terceiro pressuposto, o consentimento dos parentes apontados no artigo 4º. In casu, a proibição dos pais da falecida impede a doação.

E, da mesma forma, a vida do nascituro desautoriza o quanto postulado pelos médicos.

Concluindo, os médicos não poderiam obter a doação de órgãos de Marion Ploch, seja em vida, seja após a morte, face a vontade contrária dos pais da paciente e, especialmente, a inviolabilidade da vida do nascituro.


6. O DIREITO À MORTE DIGNA. QUESTÕES POLÊMICAS

Falecidos mãe e filho, não foi realizada a autópsia para apurar a causa do evento por ordem dos parentes que sobreviveram.

O respeito à integridade física, mesmo do corpo morto, por si só já sustenta a posição dos pais de Marion Ploch.

Entretanto, além disso, também é garantido o direito a uma morte digna, o que será visto neste Capítulo.

No fato sub occulis, jamais se olvidou acerca da irreversibilidade do quadro de Marion. Todos os médicos diagnosticaram como impossível a sobrevivência da paciente.

Todavia, os aparelhos que permitiam o funcionamento das funções vitais em nenhum momento foram desligados, mesmo após a morte encefálica.

Pode-se afirmar, então, que houve violação do direito à morte digna? Em caso afirmativo, de que espécie?

Novamente é imperioso fazer alusão à inviolabilidade (art. 5º, caput, CF) e à dignidade (art. 1º, III, CF) da vida humana.

Desses princípios é que decorre, ontologicamente, o direito à morte digna. É mais um dos direitos da personalidade.

Discute-se a possibilidade do titular escolher o momento da sua morte e qual a melhor forma de esperá-la.

Apura-se o debate em época que cada vez mais as técnicas científicas avançam em duas frentes opostas e com limites tênues. Tanto percorrem o caminho da garantia de melhor qualidade de vida (durante maior tempo) aos pacientes como podem, de forma abusiva, tão-somente com fins de experimentos terapêuticos, prolongar o sofrimento de quem não possui qualquer perspectiva de sobrevida.

Nesse contexto, questões polêmicas afligem juristas, médicos, pacientes e familiares, tais como a eutanásia, a mistanásia, o suicídio assistido, a distanásia e a ortotanásia.

A eutanásia é o chamado homicídio por piedade: encurta-se a vida de quem sofre por estar acometido por doença incurável.

É permitida na Holanda. Em alguns países latinos, a exemplo do Paraguai, Uruguai e Colômbia, constitui crime de homicídio privilegiado.

No Brasil, a depender do caso, caracteriza homicídio simples (art. 121, caput, CP) ou privilegiado (art. 121, § 1º - "relevante valor social ou moral") ou até qualificado (art. 121, § 2º, II – "motivo fútil).

A conduta comissiva (não se define a eutanásia por omissão) do profissional de saúde que abrevia a vida do paciente a seu pedido ou por piedade viola um direito tratado como indisponível.

O Código de Ética Médica, por isso, no seu artigo 6º, obriga o médico a promover, sempre e de forma absoluta, a vida.

E o art. 61, § 2º desse diploma assevera, in verbis:

"Art. 61. § 2º. Salvo por justa causa, comunicada ao paciente ou ao a seus familiares, o médico não pode abandonar o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou incurável, mas deve continuar a assisti-lo ainda que apenas para mitigar o sofrimento físico ou psíquico".

A mistanásia é a dita eutanásia social. Frequente em países pobres como o Brasil, se dá, por exemplo, em hospitais públicos na insuficiência de leitos e médicos, obrigando o profissional a optar entre salvar pacientes com muitas chances de sobreviver ou manter aquele ali instalado mas em estado vegetativo.

Não deve o médico ser responsabilizado e sim o Estado pela sua omissão na prestação de serviço público.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, tratando a mistanásia como eutanásia indireta, condenou o município a indenizar os prejuízos decorrentes da falta de leitos, in verbis:

" ASSUNTO: 1. Ação Civil Pública. Ação proposta contra o município. 2. Hospital. Compra de vagas. Leito em UTI pediátrica. Obrigação do município. Tutela antecipada. Cabimento. 3. Saúde Pública. 4. Eutanásia indireta". (TJRS, 4ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento nº 598293223, rel. Des. Wellington Pacheco Barros, j. 17.3.99).

Ocorre o suicídio assitido quando a parte quer se matar e o médico presta auxílio para tanto. Permitido na Holanda e na Suíça, é conduta tipificada como crime no Código Penal nacional (art. 122).

Já a distanásia e a ortotanásia precisam ser analisadas em conjunto, pois são as duas faces de uma mesma moeda.

Deixemos a Professora Roxana Cardoso Brasileiro Borges [32] defini-las com brilhantismo, in verbis:

"Chama-se de distanásia o prolongamento artificial do processo de morte, com sofrimento do doente. É uma ocasião em que se prolonga a agonia, artificialmente, mesmo que os conhecimentos médicos, no momento, não prevejam possibilidade de cura ou de melhoria. É expressão da obstinação terapêutica pelo tratamento e pela tecnologia, sem a devida atenção em relação ao ser humano".

"Etimologicamente, ortotanásia significa morte correta: ‘orto’: certo, ‘thanatos’:morte. Significa o não prolongamento artificial do processo de morte, além do que seria o processo natural, feito pelo médico... A ortotanásia serviria, então, para evitar a distanásia. Em vez de se prolongar artificialmente o processo de morte (distanásia), deixa-se que este se desenvolva naturalmente (ortotanásia)".

A distanásia é fato típico (o Código de Ética Médica veda, no art. 130, a realização de "experiências com novos tratamentos clínicos ou cirúrgicos em paciente com afecção incurável ou terminal sem que haja esperança razoável de utilidade para o mesmo, não lhe impondo sofrimentos adicionais"), enquanto que a ortotanásia, para a maioria da doutrina, é atípico, apesar de respeitáveis posições em contrário que se baseiam nas constantes descobertas científicas de métodos que venham a reverter um quadro de saúde até então tido com perdido e na falibilidade humana.

Do exposto, voltemos ao caso de Marion Ploch. Face a completa impossibilidade de sobrevida da paciente, por que os médicos insistiram em conservar os aparelhos ligados?

Primeiro porque se tivesse ocorrido esta ação, mesmo a pedido dos pais, restaria delineada a eutanásia. Acertaram, pois, quando não desligaram os aparelhos.

Por outro lado, caso fosse mantido o tratamento terapêutico, sem qualquer perspectiva de êxito, configurar-se-ia a distanásia e os profissionais liberais seriam punidos?

A resposta é negativa diante da peculiaridade do caso. Apesar de, em tese, o incentivo ao tratamento de Marion ser condenável (distanásia), já que a sua morte era apenas uma questão de tempo, também agiram corretamente os médicos ao tentarem, a todo custo, sustentar qualquer suspiro da enferma em razão de um escopo maior, a proteção à vida do nascituro.

Entre a cruz e a espada, a solução escolhida foi correta: entre um moribundo e um ser intra-uterino prestes a nascer, inequivocadamente, privilegia-se o feto.

Não se vislumbra, portanto, erro médico in casu.

Sobre o autor
Leonardo Barreto Moreira Alves

Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Especialista em Direito Civil pela PUC/MG Mestre em Direito Privado pela PUC/MG Professor de Direito Processual Penal de cursos preparatórios Professor de Direito Processual Penal da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais (FESMPMG) Membro do Conselho Editorial do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Membro do Conselho Editorial da Revista de Doutrina e Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Leonardo Barreto Moreira. O direito de nascer do ventre de mãe morta e demais questões afins:: o caso Marion Ploch. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3276. Acesso em: 22 nov. 2024.

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