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O direito de nascer do ventre de mãe morta e demais questões afins:

o caso Marion Ploch

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"Rede de surfistas no mar, ligados no computador, novas maravilhas pra se admirar, não me venha com a velha dor. O trem da juventude é veloz, quando foi olhar já passou, os trilhos do destino cruzando entre nós pela vida trazendo o novo" – Herbert Vianna

"A vida tem prioridade sobre todas as coisas, uma vez que a dinâmica do mundo nela se contém e sem ela nada terá sentido" – Maria Helena Diniz


SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1. A PROTEÇÃO À VIDA E À DIGNIDADE HUMANA COMO LIMITE AOS AVANÇOS CIENTÍFICOS; 2. A PERSONALIDADE JURÍDICA; 3. O INÍCIO DA PERSONALIDADE JURÍDICA; 3.1. Breves noções acerca do nascituro; 3.2. Teorias acerca do início da personalidade jurídica; 3.3. A teoria adotada pelo Código Civil; 3.4. Crítica à teoria adotada pelo CC; 3.5. Definição de conceitos necessários à adoção da teoria concepcionista; 3.5.1. Conceito de "concepção"; 3.5.2. A representação processual como forma de suprir a incapacidade do nascituro; 3.5.3. Aplicação da teoria concepcionista ao caso Marion; 4. O DIREITO DE NASCER E O ABORTO; 5. A PROTEÇÃO À INTEGRIDADE FÍSICA E A DOAÇÃO DE ÓRGÃOS; 6. O DIREITO À MORTE DIGNA. QUESTÕES POLÊMICAS; CONCLUSÃO; BIBLIOGRAFIA.


INTRODUÇÃO

O presente artigo tem a pretensão de responder à indagação um tanto quanto tormentosa e que interessa à toda a sociedade, especialmente aqueles preocupados no progresso científico da Humanidade sem prejuízo da vida e do bem estar de cada indivíduo: é juridicamente possível ser mãe depois de morta?

Para tanto, parte-se da análise de um caso verídico bastante conhecido no meio acadêmico e que instigou os juristas a apresentarem uma solução pacífica para o litígio em jogo, o que acabou não acontecendo.

Em 5 de outubro de 1992, Marion Ploch, grávida de 13 semanas, sofreu um grave acidente de carro, o que provocou fratura de crânio. Seus pais receberam a notícia de que não havia chances de sobrevivência.

Em um primeiro momento, os médicos pretendiam obter da família a permissão para a doação de órgãos, posto que não acreditavam na sobrevivência do feto. Entretanto, os pais recusaram o pedido.

Em seguida, outro grupo de médicos não confiava na recuperação de Marion, mas apontava chances de sobrevivência para o feto.

Estes médicos conseguiram o consentimento dos pais da paciente para mantê-la com os aparelhos que permitiriam o funcionamento de suas funções vitais.

Em 8 de outubro, foi confirmada a morte cerebral, mas o respirador não foi desligado.

Com todo o esforço possível, os médicos tentaram manter o feto vivo. Em virtude disso, o nascimento, por meio de operação cesariana, foi planejado para março de 1993.

Destarte, em 16 de novembro de 1992, um aborto espontâneo aconteceu a Marion Ploch e o feto nasceu morto.

Os pais recusaram a autópsia da mãe e do feto. Caso fosse realizada, esclareceria os motivos do aborto espontâneo.

Inicialmente, devem ser feitos esclarecimentos acerca dos conceitos básicos para a discussão da matéria, tais como personalidade jurídica, nascituro, direito ao nascimento, à vida digna e à integridade física, à morte digna, o aborto e a doação de órgãos.

A seguir, os bens jurídicos em questão são postos em conflito para que se conclua qual aquele de maior relevância e que, por isso, merece prevalecer.

Assim, por exemplo, já há de se indagar: é preponderante a integridade física do cadáver materno, seu direito à morte digna, ou a vida de um ser que está pronto para nascer?

Inúmeras outras questões incidentais vão surgir ao longo deste trabalho, todas ligadas, direta ou indiretamente, ao tema principal.

Põe-se em discussão, nesse contexto, se é cabível a doação de órgãos ou mesmo a prática da eutanásia da genitora com morte cerebral enquanto o seu filho persiste com chances de ser gerado com vida.

Ressalte-se, ainda, que todas as considerações aqui explicitadas têm como base o ordenamento jurídico brasileiro, independente do local de ocorrência do fato.

A verdade é, sem dúvidas, historicamente relativa. Feliz daquele que consegue enxergar o maior número de faces deste objeto cultural, mas inexiste quem tenha conseguido mapear todas as suas vertentes.

Desse modo, não há como apontar aqui a verdade absoluta, a solução única para todos os males, especialmente em se tratando de matéria de Bioética e Biodireito.

Porém todos nós procuramos uma resposta provisória aos problemas que nos afligem. Nesse sentido, a caminhada é longa e árdua, mas só pode ser concluída depois de traçados todos os passos em direção à reta de chegada.

Que mais um passo seja dado com as sugestões oferecidas na presente pesquisa, ainda que ele seja lento e periclitante. A sorte está lançada.


1. A PROTEÇÃO À VIDA E À DIGNIDADE HUMANA COMO LIMITE AOS AVANÇOS CIENTÍFICOS

A sociedade industrial, descendente da máquina, produtora de artigos em série padronizados, celebra as núpcias da Ciência com a liberdade individual do burguês capitalista para gerar o progresso, a expansão, a explosão, o boom, e cria o chamado projeto iluminista da modernidade: o desenvolvimento material e moral do homem pelo conhecimento [1].

A essa dama pode ser creditado o imenso progresso das nações capitalistas, fundado nas grandes fábricas, ferrovias, navegação e exploração.

Com ela vieram o automóvel, o avião, o telégrafo, o telefone, o rádio, a televisão, a TV a cabo, o computador doméstico, o petróleo, a eletrecidade, o crédito ao consumidor, a publicidade, a cibernética, a robótica industrial, a astronáutica, as terapias psicológicas, a climatização, técnicas de embelezamento, trânsito computadorizado, Internet, videogame etc.

No campo das ciências biológicas, as inúmeras inovações revolucionaram o cenário mundial, merecendo destaque a tecnologia dos alimentos (incluindo os transgênicos), a medicina nuclear e a biologia molecular (a descoberta do DNA, o projeto Genoma, as inseminações artificiais, a fertilização in vitro e a clonagem).

A perspectiva de alcançar novos horizontes (cada vez mais próximos) através da ciência faz o homem sonhar com um mundo perfeito, sem sofrimentos ou doenças, onde até mesmo a morte está posta em xeque [2].

Provoca a celebração máxima e sublime da existência humana neste planeta, um otimismo incomensurável e ilimitado a ponto de cada indivíduo realmente acreditar em um final feliz e eterno da História, idéia tão bem ilustrada nas telas do cinema, como na obra prima de Stanley Kubrick, 2001 – Uma Odisséia no Espaço.

Para que estes sonhos e utopias sejam concretizadas, entretanto, muitas vezes privilegia-se o resultado, o fim, em detrimento dos meios utilizados, o que mais denota uma prática de cunho maquiavélica.

Com a intenção de freiar certas práticas de consequências perenes e deletérias ao homem, indaga-se: há limite para os avanços científicos? Há réquiem para estes sonhos?

Os avanços que os diversos ramos da ciência promovem são todos do homem, pelo homem e para o homem. Ilógico é tratar o ser humano como meio e não como fim desta atividade.

Nada pode estar além dele, tudo deve voltar-se para ele. Que sentido existirá em uma inovação que viole a condição humana? Não é admissível que a criatura vença o criador.

Por isso, indubitável que o limite aos avanços científicos é a própria vida humana. O primado da Bioética e do Biodireito é a realização do máximo direito da personalidade, o início e a razão de ser de tudo que há neste mundo.

O ponto de partida para o estudo de qualquer outro direito é a inviolabilidade da vida. É o primeiro direito que todos nós adquirimos com o nascimento, com a obtenção da personalidade jurídica; é a fonte originária de todas as outras faculdades subjetivas.

Bastante elucidativa, neste contexto, é a lição de Gebler [3] ao estatuir que o direito deve aceitar as descobertas científicas cuja utilização não se demonstre contrária à natureza do homem e de sua dignidade. Devem ignorar as ciências tudo que estiver em detrimento do homem.

De nada adiantaria a proteção a direitos fundamentais como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana em um desses direitos [4].

Somente nesse contexto é que se compreende a proibição e punição ao aborto, à eutanásia, ao erro ou imprudência terapêutica, à pena de morte e a não aceitação do suicídio.

No dizer de Jacques Robert [5], o respeito à vida humana é a um tempo uma das maiores idéias de nossa civilização e o primeiro princípio da moral médica.

Como direito da personalidade, trata-se de direito absoluto, cogente, indisponível, irrenunciável e intransmissível que, nas palavras de Pontes de Miranda [6], se manifesta desde a concepção – ainda que artificialmente – até a morte.

Além disso, possui nítido caráter negativo, ou seja, em semelhança aos direitos reais, é oponível erga omnes, toda a coletividade está obrigada a respeitá-lo.

Nem mesmo o próprio titular da faculdade sub occulis pode desrespeitá-la, pois é cediço que não se vive apenas para si mesmo, mas também para a sociedade.

O direito à vida é protegido por normas jurídicas de todo o mundo em razão de ser comum a todo e qualquer ser humano.

A Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, em 04 de julho de 1776, já proclamava, in verbis:

"Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade (grifo nosso)".

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, datada de 10 de dezembro de 1948, no seu Preâmbulo, assevera, in verbis:

"Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, e na igualdade de direitos do homem e da mulher, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla... (grifo nosso)".

E, no artigo III, assim dispõe, in verbis:

"Artigo III. Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal (grifo nosso)".

A Declaração sobre a Utilização do Progresso Científico e Tecnológico no Interesse da Paz e em Benefício da Humanidade, de autoria da ONU em 10 de novembro de 1975, no seu artigo 6º, esclarece, in verbis:

"Todos os Estados adotarão medidas tendentes a estender a todos os estratos da população os benefícios da ciência e da tecnologia e a protegê-los, tanto nos aspectos sociais quanto morais, das possíveis consequências negativas do uso indevido do progresso científico e tecnológico, inclusive sua utilização indevida para infringir os direitos do indivíduo ou do grupo, em particular relativamente ao respeito à vida privada e à proteção da pessoa humana e de sua integridade física e intelectual (grifo nosso)".

A Convenção sobre Direitos Humanos e Biomedicina, no seu artigo 2º, reitera, in verbis:

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"Os interesses e o bem-estar do ser humano devem prevalecer sobre o interesse isolado da sociedade ou da ciência".

No Brasil, a Carta Magna estabelece, no artigo 5º, caput, a inviolabilidade do direito à vida como garantia fundamental de todo cidadão, in verbis:

"Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes... (grifo nosso)".

Por força do artigo 60, § 4º, IV, do Texto Constitucional, não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a matéria ora em discussão.

Trata-se, pois, de cláusula pétrea, só podendo ser alterada pela feitura de uma nova Constituição.

A Carta Magna vai além da proteção à vida e estipula, como princípio vetor da República Federativa do Brasil, no seu artigo 1º, III, o direito a uma vida digna (dignidade da pessoa humana).

Assim, não se tutela tão-somente a existência do indivíduo, mas também a ele será assegurado o direito de viver dignamente, respeitando sua condição de ser humano.

Não se pode admitir, em virtude deste princípio, que o homem seja tratado como res, objeto de direito. Em verdade, a todo e qualquer instante ele é sempre sujeito de direito, titular de faculdades subjetivas.

A dignidade da pessoa humana vem a caracterizar aquilo que Noberto Bobbio [7] denominou de verdadeira personalização do Direito.

É com fulcro nos princípios insculpidos no art. 1º, III, e 5º, caput, que a Constituição, ao longo do seu corpo, elenca diversos outros, os quais também servirão como limites aos avanços científicos, tais como a prestação de alimentos (arts. 5º, LXVII, e 229), a tutela da saúde (arts 194 e 196), da ciência e tecnologia (art. 218), do patrimônio genético (art. 225, § 1º, II), dos deficientes físicos (arts. 203, IV, e 227, § 1º, II), do nascituro, da criança e do adolescente (art. 227) e do idoso (art. 230).

E mais, estabeleceu como um dos pilares de sustentação da ordem econômica nacional a valorização do trabalho, com a finalidade de propiciar existência digna e distribuir justiça social, através da redução das desigualdades sociais (art. 170).

Um dos objetivos fundamentais da República Federativa é construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, CF), bem como promover o bem-estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV).

Há, ainda, a prevalência dos direitos humanos e cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (art. 4º, II e IX) e a não submissão a tratamento desumano ou degradante, inviolabilidade da consciência e livre expressão da atividade científica (art. 5º, III, VI e IX).

No plano infraconstitucional, há consideráveis aplicações dos princípios supra mencionados.

No Código Civil de 1917, pertinente ressaltar a proteção ao nascituro (art. 4º) e à existência (arts. 396 a 405, 1537 e 1539).

As Leis 5.478/68, 8.971/94 (art. 1º e parágrafo único) e 9.278/96 (art. 7º) reforçam o direito à existência.

A Lei nº 8.974/95, no art. 13 e parágrafos, também é nesse sentido.

O Novo Código Civil protege o nascituro (art. 2º), além de regulamentar os direitos da personalidade (arts. 11 a 21).

O Código Penal elenca, do artigo 121 ao 128, os crimes contra a vida, incluindo as formas específicas do aborto.

O Código de Ética Médica (Resolução CFM nº. 1.246/88), no artigo 6º, estatui que o médico deve sempre garantir respeito absoluto à vida humana, in verbis:

"Art. 6º. O médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando sempre em benefício do paciente. Jamais utilizará seus conhecimentos para gerar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano, ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade (grifo nosso)".

Assim, sempre que estiverem em jogo a vida e qualquer outro direito, aplicando-se o princípio da proporcionalidade, prevalecerá aquela. Dessa forma ensina Maria Helena Diniz [8], in verbis:

"A vida tem prioridade sobre todas as coisas, uma vez que a dinâmica do mundo nela se contém e sem ela nada terá sentido. Consequentemente, o direito à vida prevalecerá sobre qualquer outro, seja ele o de liberdade religiosa, de integridade física ou mental etc. Havendo conflito entre dois direitos, incidirá o princípio do primado do mais relevante. Assim, por exemplo, se se precisar mutilar alguém para salvar sua vida, ofendendo sua integridade física, mesmo que não haja seu consenso, não haverá ilícito nem responsabilidade penal médica".

Apesar desta comprovação cabal da primazia absoluta do direito à vida, no caso Marion a opinião pública entendeu não ser possível o nascimento do bebê ao fundamento de que a mãe deveria prevalecer sobre seu próprio filho, pois este seria parte do corpo daquela, além do que o feto não seria, ainda, titular de direitos face à inexistência de vida, a qual só estaria configurada com o nascimento.

O raciocínio é recheado de equívocos e para mitigá-los fundamental é obter a resposta a uma nova questão: juridicamente, quando se inicia a vida humana?

Em outros termos: em que momento o homem adquire personalidade para titularizar direitos e obrigações?

É o que será visto a seguir.

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Sobre o autor
Leonardo Barreto Moreira Alves

Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Especialista em Direito Civil pela PUC/MG Mestre em Direito Privado pela PUC/MG Professor de Direito Processual Penal de cursos preparatórios Professor de Direito Processual Penal da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais (FESMPMG) Membro do Conselho Editorial do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Membro do Conselho Editorial da Revista de Doutrina e Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Leonardo Barreto Moreira. O direito de nascer do ventre de mãe morta e demais questões afins:: o caso Marion Ploch. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3276. Acesso em: 24 abr. 2024.

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