~~ O ideal é um farol, que ilumina ou cega. Quando se critica o idealismo do Estado Democrático de Direito Social (CF/88) faz-se uso de outros ideais: mais à esquerda, reclama-se da falta de aparatos do Estado Socialista ou radicaliza-se com o “fim do Estado; mais à direita, reclama-se pelo Estado Mínimo. Pouco importa, todos repartem ideias ou ideais voltados contra o idealismo constitucional. Portanto, todo Estado Real é um Estado Ideal – mesmo aquele poder que ainda não se forjou como forma-Estado. Afinal, a humanidade nos diz que o Estado é, talvez, o nosso ideal mais longínquo – ainda que não haja demonstração científica de que se trata de “um ideal” a ser perseguido. Mas, é ideal, exatamente porque a forma-Estado sempre é realizada aquém das projeções e das expectativas do homem médio em sua vida comum. Ou vai além, como nas ditaduras, para o martírio do povo. Em todo caso, o Estado é ideal para aqueles que detêm o poder de mando em determinado momento – ou para os mais iludidos com as promessas feitas. Os bolcheviques da Rússia de 1917 formularam o Capitalismo de Estado para o povo, mas os Gulags de Stalin não estavam insculpidos no manual O Estado e a Revolução, de Lênin.
O Estado de Direito (presente desde o século XIX), o Estado Liberal ou Gendarme (explicado exclusivamente pela segurança), o Estado Constitucional (embrião do Estado Ocidental), ou o Estado Jurídico (como requeria o filósofo Imannuel Kant), todos têm ideias e ideais inatingíveis pelo realismo político. Da mesma forma o Estado Absolutista desenhado pelo filósofo Thomas Hobbes (O Leviatã), o Estado de Justiça - nazista e calibrado pelo jurista Carl Schmitt - e o Estado de Exceção Permanente e Global (da nossa atualidade), sempre estarão aquém do que o poder promete. Em um exemplo simples, a Lei de Plenos Poderes editada por Hitler trazia mais poderes do que a loucura do III Reich conseguiu implementar.
Apenas índios e aborígenes não conheceram a forma-Estado, como ensina Pierre Clastres (A sociedade contra o Estado: pesquisas de Antropologia política). Quanto aos Astecas, no México, restam muitas dúvidas. Mesmo comunidades tribais da África, antes da colonização do Estado Moderno europeu, já se dispunham – projetivamente – à organização e centralização do Poder Político; com populações submetidas que chegavam aos milhares (Georges Balandier, em Antropologia Política).
Por sua vez, as lendas e os mitos são inquestionáveis. Há uma peça arqueológica comprovando a existência da cidade-Estado de Troia, a mesma retratada no clássico Ilíada, de Homero (Poema Completo. Lisboa : Edições Cotovia, 2007). Em 1961, foi encontrado um jarro, um vaso de Mikanós datado de época próxima a da guerra, que traz um Cavalo de Troia. Athene é o espírito do povo e o Estado é seu espírito objetivo, ensina Hegel no clássico Princípios da Filosofia do Direito. Outro filósofo, Francis Bacon, citando Ifícrates, relata o juramento do Estige: “há então perigo de ser-se expelido dos banquetes dos deuses. Com esse nome os antigos significavam os Direitos, prerrogativas, riqueza e felicidade do Estado” (na coletânea A Sabedoria dos Antigos). Também não convém desconhecer Ernst Cassirer, quando descreve O Mito do Estado.
Pois bem, além dos casos duvidosos, o pensador Karl Marx retomou as premissas históricas do Estado Antigo, Oriental ou Teocrático: “As formas oriental (e eslava) são, historicamente, mais próximas das origens do homem, uma vez que conservam a comunidade primitiva (aldeia)” - na introdução que o historiador Eric Hobsbawm faz ao livro Formações Econômicas Pré-Capitalistas. Desse retrato também se valeu o filósofo francês Gilles Deleuze, no consagrado “Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia”, para diagnosticar o Estado Primordial, neolítico ou imemorial.
Então, todo Estado é ideal. É mito. É ilusão (necessária?). Mesmo quando se advoga o “fim do Estado”, trata-se de um ideal. No único contrato desse tipo, a famosa Comuna de Paris, de 1871, que durou somente 40 dias, foi o ideal do não-Estado que levou à execução sumária de mais de vinte mil franceses sitiados. Assim, o Estado é um ideal, ainda que outro ideal seja requisitado para desconstruí-lo. O ideal do não-Estado é o avatar do Estado Real; pois, esteja mais ou menos próximo da realidade, o Estado real sempre é um ideal. Estranha não é a explicação, mas sim os ideais humanos, com destaque para o Estado. Daqui a 200 anos alguém dirá que tudo isso estava errado, que o Poder Político não é como antigamente. Neste caso, bem ou mal, falar-se-á do Estado.
Todo Estado Real é um Estado Ideal.
Vinício Carrilho Martinez
Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).
Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi