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Obrigação e crédito tributário.

Crítica terceira ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho

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Agenda 01/10/2002 às 00:00

2. Processo de positivação do direito: os chamados "deveres instrumentais".

Insistamos, por ser azado, na tese central da teoria carvalhiana: a facticidade jurídica é sempre normativa, expressa em linguagem competente (que é sempre documental e escrita). Mais ainda: a norma geral e abstrata, para que viesse a alcançar o inteiro teor de sua juridicidade, reivindicaria, incisivamente, a edição de norma individual e concreta [34]. Essa a razão do repto lançado por Paulo de Barros Carvalho, no prefácio à segunda edição do seu livro [35], vazado nos seguintes termos: "A título de salutar e respeitoso desafio científico, espero com vivo interesse que alguém, em qualquer dos múltiplos segmentos dogmáticos do direito, me aponte apenas um fato jurídico sem linguagem, o que serviria para comprovar a possibilidade de incidência jurídica sem os expedientes humanos da aplicação". Para que esse salutar desafio científico tenha sentido, é evidente que o fato jurídico sem linguagem, cuja existência haveria de ser demonstrada para impugnar a teoria proposta pelo ilustre professor da USP e da PUC/SP, há de ser o "fato jurídico sem linguagem escrita", ou seja, sem que haja a edição de uma norma individual e concreta que documente a incidência jurídica. Não bastaria a linguagem corporal, a mensagem verbal sem os requisitos procedimentais exigidos: afinal, tudo é linguagem! A comunicação entre vizinhos do nascimento com vida de uma criança não teria percussão jurídica, para a teoria carvalhiana, ficando no plano dos fatos sociais. Quando Paulo de Barros Carvalho reivindica que alguém lhe apresente um único fato jurídico sem linguagem, o faz com esteio nos postulados de sua teoria. O mesmo se diga também sobre a relação jurídica, havida igualmente como fato (o fato-efeito) [36], que para nascer precisaria imprescindivelmente da expedição de uma norma individual e concreta: "Somente com o enunciado do conseqüente da norma individual e concreta é que aparecerá o fato da relação jurídica, na sua integridade constitutiva, atrelando dois sujeitos (ativo e passivo), em torno de uma prestação submetida ao operador deôntico modalizado (O, V, P)".

Todavia, para se demonstrar a existência desse fato jurídico e desse fato-efeito, sem que haja a edição de uma norma individual e concreta, não se precisa ir muito longe: a própria teoria carvalhiana cuida em demonstrar as suas aporias e contradições internas, apontando esses fatos jurídicos sem linguagem.

Grosso modo, além da obrigação tributária principal, há a obrigação tributária acessória, consistente em deveres do contribuinte ou de terceiros perante o fisco, para dar efetividade ao recolhimento ao erário dos tributos (dinheiro). A obrigação acessória é chamada de deveres instrumentais pela teoria carvalhiana, os quais visam estimular certas condutas em benefício da atividade arrecadadora. São eles fixados por normas gerais e abstratas, dirigindo-se diretamente ao sujeito passivo do tributo ou a terceiros. Muito bem. Para que a teoria carvalhiana tenha coerência, necessário se faz que os deveres instrumentais, prescritos na norma geral e abstrata, para incidirem nas condutas dos sujeitos passivos, sejam objeto de uma enunciação protocolar e denotativa, cujo sentido é a norma individual e concreta. Sim, porque os deveres instrumentais estão fixados em enunciados conotativos, sem referência a eventos concretamente ocorridos e a efeitos especificamente determinados para ocorrem na esfera jurídica de um sujeito passivo real. Para que os deveres instrumentais incidissem, necessário seria a emissão de uma norma individual e concreta. Todavia, a teoria carvalhiana frustra a sua pretensão de verdade, quando nega o seu mais basilar postulado: os deveres instrumentais, em sua esmagadora maioria, não necessitam de expedição de uma norma individual e concreta.

Consoante afirma Paulo de Barros Carvalho [37], "(...) Quando o diploma normativo indicar o conteúdo do comportamento a ser seguido, precisando o objeto da prestação, tornar-se-á despicienda a edição de norma individual e concreta, por parte do fisco, deixando-se ao bom juízo do administrado o implemento da conduta e reservando-se às autoridades tributárias atuarem somente em caso de descumprimento". E adiante, o próprio Paulo de Barros Carvalho põe uma pá de cal no postulado nuclear de sua construção teórica [38]: "Traçando o paralelo com a regra-matriz de incidência, notaremos a presença de deveres instrumentais que não se perfazem em normas individuais e concretas, consistindo, antes, em condutas de caráter omissivo, como o dever de tolerar ou de suportar fiscalização. A linguagem aparecerá aqui tão-somente em caso de inadimplemento da conduta atribuída ao administrado, ensejo em que o fisco expedirá norma concreta (‘auto de embaraço à fiscalização’, por exemplo), em que o evento será relatado na forma competente. Essa peculiaridade exibe outra diferença do dever instrumental em face da prestação tributária, que não pode existir, em hipótese alguma, sem norma individual e concreta".

Eis aqui, apontado às mancheias, conforme desejado por Paulo de Barros Carvalho, "um fato jurídico sem linguagem, o que serviria para comprovar a possibilidade de incidência jurídica sem os expedientes humanos da aplicação" (sic).

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Reflitamos um pouco mais sobre esse ponto, dado o seu relevo. A teoria carvalhiana tem como tese central que a incidência não ocorreria por força própria, requerendo sempre o ato humano de aplicação. Nesse sentido, incidência e aplicação seriam a mesma coisa. Para que uma determinada conduta ganhasse o timbre de juridicidade, seria necessário – ainda de acordo com os postulados dessa teoria glosada – que houvesse a expedição de uma norma individual e concreta que relatasse aquele evento em linguagem competente, transformando-o em fato jurídico. Os efeitos jurídicos desse fato também seriam produtos da norma individual e concreta. Assim, direitos subjetivos, deveres, pretensões, obrigações, ações, ônus, sujeições etc., apenas ingressariam na esfera jurídica de alguém mediante a emissão de uma norma individual e concreta, que adentrariam no sistema jurídico num determinado ponto do processo de positivação do direito.

Quando, nas passagens acima citadas, Paulo de Barros Carvalho versa sobre os deveres instrumentais, está tratando daqueles previstos nas normas gerais e abstratas, os quais incidiriam na zona material da conduta humana sem necessidade de verificação de uma norma individual e concreta. Para que eles se transformem em deveres instrumentais concretos e individualizados, ou seja, para que eles incidam na esfera jurídica dos sujeitos passivos, não há – segundo professa o próprio Paulo de Barros Carvalho – a necessidade da expedição de uma norma individual e concreta, nascendo, esse direito subjetivo do fisco de realizar a fiscalização, diretamente da norma geral. Noutro giro, a norma geral e abstrata incide, no plano do pensamento, e faz nascer o fato jurídico acessório [39], do qual dimana o direito subjetivo do fisco de fiscalizar e o dever do sujeito passivo de se omitir, suportando a fiscalização (relação jurídica conversa).

Eis, por conseguinte, a demonstração ad rem da existência de fatos jurídicos sem linguagem competente (escrita e documental), na seara do direito tributário.

É bem verdade, todavia, que a teoria carvalhiana tenta ainda salvar sua lógica interna em uma outra oportunidade. De fato, Paulo de Barros Carvalho, premido pela constatação de que os deveres instrumentais incidem, na esfera jurídica de um concreto contribuinte, diretamente de uma norma geral e abstrata, sem necessidade da veiculação de uma norma individual e concreta, termina por propor uma insustentável solução para ultrapassar essa aporia: afirma que, em muitas circunstâncias, a observância das normas gerais e abstratas ocorre "no domínio dos meros fatos sociais, sem o mesmo timbre de juridicidade" [40]. Desse modo, para salvar a sua construção teórica, faz as seguintes afirmações: "Recaindo sobre a conduta lícita, no direito tributário brasileiro, além da prestação pecuniária, grande parte dos deveres formais são estabelecidos mediante normas individuais e concretas. Ao lado deles, dos deveres, há prescrições genéricas cuja efetivação, no caso protocolar, assumirá relevância apenas e tão-somente em caso de descumprimento. O exemplo clássico está no dever de suportar os procedimentos de fiscalização, como está, também, no dever de assegurar publicidade aos documentos que ele, sujeito passivo, tiver a incumbência de produzir". E adiante arremata [41]: "De fato, pensemos no dever de manter os livros e documentos fiscais à disposição das autoridades tributárias. São tantos os modos diferentes de fazer cumprir esse dever instrumental que o legislador, certamente consultando à racionalidade que inspira sua tarefa, desloca a atenção para o campo da ilicitude, fazendo expedir, pelo funcionário competente, a norma individual e concreta que constitua a não-prestação do dever (no antecedente) e prescreva a providência sancionatória (no conseqüente)".

Ora, com o perdão da afirmação acaciana, para que o sujeito passivo descumpra um dever instrumental, faz-se necessário que ele tenha que observar esse mesmo dever instrumental. Pois bem. A questão, que Paulo de Barros Carvalho não enfrentou aqui, é saber de onde proviria o dever instrumental que o sujeito passivo tem de observar. Se ele afirmasse que esse dever instrumental adviria da norma geral e abstrata, incidindo na esfera jurídica do sujeito passivo, restaria clara a desnecessidade de expedição de uma norma individual e concreta; todavia, se ele afirmasse que esse dever resultaria de uma norma individual, teria o ônus de apontá-la. Como essa norma individual não existe, senão em caso de descumprimento do dever (quando incide a norma geral sancionatória), restou a tentativa de afirmar que a observância de tais deveres instrumentais ocorreria no domínio dos meros fatos sociais.

A incoerência da teoria carvalhiana ressalta. E ressalta ainda mais porque a observância ou inobservância de um dever não se confunde com o próprio dever incumprindo ou observado. O problema, que se tentou obviar, continuou intocado: se há deveres instrumentais a serem observados ou descumpridos, de onde eles provêem? Afirmo eu: da norma geral e abstrata, que incide infalivelmente, sem necessidade de norma individual e concreta. Paulo de Barros Carvalho, nessa parte do seu livro, não responde a questão, desviando o problema para o plano da observância, que é posterius à existência mesma do dever, na esfera individual do sujeito passivo. Se há deveres a serem cumpridos ou descumpridos, é porque eles são prius, nascidos da incidência da norma geral e abstrata, no plano do pensamento.

Aqui reside a grande deficiência explicativa da teoria carvalhiana: quando os seus postulados não conseguem dar conta da juridicidade de uma determinada situação, porque a realidade não se submete ao postulado da facticidade normativa do direito (os fatos jurídicos como produtos de enunciados), logo se afirma que aquela situação não seria jurídica, mercê de não necessitar ser veiculada em linguagem competente. Desse modo, afirma-se arbitrariamente que só é jurídico o que for enunciado em linguagem escrita de uma autoridade; o que não se enquadrar nesse pressuposto, resta fora do direito. Assim, até mesmo o ato jurídico de cumprimento de um dever instrumental passa a ser mero fato social e, tanto pior, deixa a teoria carvalhiana de explicar como nasce, para um sujeito passivo determinado, o dever instrumental de se sujeitar à fiscalização do fisco, de lavrar livros fiscais etc. Doutra banda, não explica de onde adviria o direito subjetivo público do fisco fiscalizar o contribuinte, mercê da inexistência de uma norma individual e concreta que o faça nascer.

Esquematização da teoria carvalhiana:

NGA

¯

NIC (fj à f.relacional)

Esquematização da teoria ponteana:

NGA

¯ Sa à direito subjetivo

SF à fj à rj

Sp à dever

Para a teoria carvalhiana, a incidência (¯ ) da norma geral e abstrata (NGA) apenas ocorreria através da veiculação de uma norma individual e concreta (NIC), que veicularia o fato jurídico (fj) e o fato-relacional. Todavia, no caso dos deveres instrumentais, não há a emissão de norma individual e concreta para o seu surgimento na esfera jurídica do sujeito passivo (Sp). Na teoria ponteana, o raciocínio é diverso: a norma geral e abstrata (NGA) incide (¯ ) nos fatos previstos em seu antecedente (SF), nascendo o fato jurídico (fj), do qual dimana a relação jurídica (rj) entre dois sujeitos de direito: o sujeito ativo (Sa) e o sujeito passivo (Sp). Na esfera jurídica do sujeito ativo (fisco) nasce o direito subjetivo pública de fiscalizar, tendo por seu correlato, na esfera jurídica do sujeito passivo (contribuinte), o dever instrumental de manter os livros e documentos fiscais à disposição das autoridades tributárias. Aliás, o próprio professor paulista atribui à norma geral e abstrata a função atributiva de competência ao contribuinte para veicular a norma individual e concreta [42]: "(...) a lei dá competência ao contribuinte para constituir o fato jurídico e a obrigação tributária que dele decorre, pelo fundamento da causalidade jurídica (Lourival Vilanova)". Ora, se a norma geral e abstrata atribui competência ao contribuinte, pela causalidade jurídica, faz nascer para ele deveres que não decorrem de nenhuma norma individual e concreta. Afinal, a causalidade jurídica nada mais é do que a incidência da norma sobre o seu suporte fáctico concretizado, no plano do pensamento.

Cabe à teoria carvalhiana o ônus de explicar como nasceriam os deveres instrumentais sem expedição de uma norma individual e concreta, ou de como esses deveres instrumentais não teriam juridicidade, sendo um mero dever social (como a etiqueta, as obrigações dos filhos para com os pais etc.). Ao admitir que o sujeito passivo tem deveres instrumentais, concorda que eles surgem na mundo jurídico sem necessidade da linguagem protocolar e denotativa; ao admitir, contrariamente, que eles são apenas deveres sociais, nega sua juridicidade e, desse modo, também a juridicidade do seu descumprimento, que não haveria porque ser sancionado. Qualquer das duas opções impugna a teoria carvalhiana.

Sobre o autor
Adriano Soares da Costa

Advogado. Presidente da IBDPub - Instituição Brasileira de Direito Público. Conferencista. Parecerista. Contato: asc@adrianosoares.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Adriano Soares. Obrigação e crédito tributário.: Crítica terceira ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3289. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Esse artigo é a terceira e última parte de uma série publicada no Jus Navigandi, bem como em outras revistas. As duas primeiras partes foram: "Incidência e aplicação da norma jurídica tributária: uma crítica ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho" (Revista Tributária, São Paulo: RT, 2001, (9) 38: 19-35), e "Notas sobre o fato jurídico tributário: crítica segunda ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho" (Revista Tributária, São Paulo: RT, 2001).

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