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A atuação dos magistrados no julgamento das bruxas:

uma análise histórica do processo e da perseguição às mulheres nos séculos XVI e XVII

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Agenda 21/10/2014 às 11:22

4. O processo inquisitorial infalível contra a bruxaria:

Os demonólogos dos séculos XV e XVI eram unânimes e não se cansavam de repetir que os juízes eram invulneráveis a qualquer ataque do demônio e sua missão estava colocada sobre a proteção de Deus, não tendo nada a temer.

A propósito, para Kramer e Sprenger (2004, p. 198), existiam três classes de homens abençoados por Deus, a quem as feiticeiras não teriam o poder de injuriar com suas bruxarias. E “na primeira estão os que administram a justiça pública contra suas obras e as levam a julgamento pelos seus crimes”. E prosseguem os demonólogos, “se todo o poder emana de Deus e de Deus é a espada para a vingança dos injustiçados e para o castigo dos perversos, não admira que os demônios se sintam acuados quando se faz justiça para vingar tais crimes horríveis”.

É dentro desse contexto e, com respaldo no Sistema Inquisitivo, cujas características já foram descritas neste estudo, é que os magistrados, instruídos pela propagação das obras de demonologia, fortaleciam-se para conduzir com punhos de ferro os processos e o julgamento das mulheres acusadas de feitiçaria.

Os magistrados deviam perseguir as feiticeiras, constrangindo-as a confessar seu pacto com o Diabo e a renunciar sobre a fogueira a esta traição. Procedendo dessa maneira, os julgadores asseguravam a salvação dessas criaturas transviadas pelo demônio, o que dava àquela função judiciária a conotação de uma missão superior. (Mandrou, 1968, p. 88)

Nas palavras de Robert Mandrou (1968, p. 88-89):

... a Igreja delegou-lhes um encargo de perseguição que deverá purificar o mundo do demônio satânico, salvar as criaturas arrastadas pelo Demônio, e limpar as aldeias, as comunidades infectadas pelas desordens desses sequazes do Diabo.

Penetrados dessa convicção, os juízes dificilmente deixam escapar o menor sinal de cumplicidade com o Diabo; examinando e reexaminando as palavras e os gestos dos acusados, terminam por encontrar esses sinais em cada atitude. Mesmo a piedade lhes é proibida: dizem-no incidentalmente Bodin e Lancre no auge da crise do fim do século XVI.

E logo a seguir conclui:

Deixar-se apiedar pelas lágrimas, pelas súplicas, seria correr o risco de entrar em cumplicidade com Satã, e até de dar a uma de suas criaturas uma nova oportunidade de praticar atos nefastos. Essas lágrimas poderiam muito bem ter sido suscitadas pelo próprio Diabo...

A lógica formal desta atitude, extravio místico comum aos juízes e às vítimas, é inabalável. Ao fim do inquérito, o juiz completa tais e tais indícios convergentes pela confissão: o processo está acabado. A fogueira não está longe.

Diante desse dever divino outorgado à magistratura para reprimir a bruxaria, o juiz inquisidor poderia iniciar o processo de várias formas, inclusive por iniciativa própria, não poupando esforços para obter provas que confirmassem a sua convicção já previamente formada acerca da culpabilidade do acusado.

4.1. Do início do processo contra a bruxaria:

A instauração do processo contra o crime de bruxaria poderia ocorrer, segundo o manual de demonologia de Kramer e Sprenger (2004, p. 396-399), de três métodos diferentes.

De acordo com o primeiro método – muito pouco utilizado em razão das suas conseqüências para o denunciante, o processo poderia se iniciar mediante a acusação de uma pessoa por outra perante o juiz, seja do crime de heresia, seja do de dar proteção a algum outro herege, sendo que o acusador deveria provar o crime, sob pena de se submeter à lei de talião caso não o consiga.

Pelo segundo método, o processo se iniciaria a partir de uma denúncia anônima. A pessoa não se comprometia a provar o crime e se recusava a envolver-se diretamente na acusação. O denunciante agia de forma sigilosa e prestava informações em nome do zelo à fé e a Deus, ou para evitar castigos, como a excomunhão.

O referido método exigia mais cautela dos juízes de modo que os depoimentos deviam ser colhidos de forma escrita na presença de testemunhas idôneas.

 O terceiro método seria o mais usual. Não se teria a presença de um acusador ou um informante, apenas uma denúncia geral de que haveria bruxas em determinada aldeia ou cidade. O juiz, por sua vez, deveria proceder à investigação não por solicitação de qualquer das partes, mas apenas pela obrigação que lhe seria imposta pelo seu ofício consagrado pela vontade divina.

As pequenas querelas e tagarelices da aldeia podiam servir de base para denúncias contra mulheres suspeitas de bruxaria, tais como: a aparência pouco atraente e as roupas do suspeito, as extravagâncias do comportamento social e as práticas sexuais incomuns ou não recomendadas, os dramas conjugais acerca da impotência e infertilidade, os eventos da natureza (tempestades, granizos sobre as vinhas, etc...). (Mandrou, 1968, p. 80)

Enfim, tudo poderia tornar-se sinal de uma intervenção satânica para quem vivia naquele temor cotidiano – ameaças, violências e maledicências justificavam a onda de denúncias, iniciando-se o processo inquisitivo para investigação e punição dos suspeitos da prática de bruxaria.

Assim, a partir da denúncia ou mesmo por iniciativa própria, o juiz inquisidor dava início a um procedimento investigató­rio secreto para carrear elementos no intuito de ratificar a acusação por ele próprio elaborada e admitida.

Com efeito, “a prova (no Sistema Penal Inquisitivo) não era fator de convencimento do juiz, mas instrumento para este convencer os outros do acerto da acusação que apresentara liminarmente”.  (JARDIM, 2001, p. 24-25.)

Passa-se, então, ao estudo da produção das provas e do julgamento pelos magistrados.

4.2. O interrogatório do acusado e a tortura como meio de prova para se obter a confissão:

Submetidos à justiça, os acusados de bruxaria deviam suportar um longo “combate”, na maioria das vezes, sem qualquer defesa, e do qual raramente saiam vencedores.

Aliás, sobre a possibilidade da dúvida acerca da culpabilidade das acusadas de bruxaria, Kramer e Sprenger (2004, p. 277) afirmavam: “não é de nosso conhecimento que alguma pessoa inocente já tenha sido punida por mera suspeita de bruxaria: Deus nunca há de permitir que isso aconteça”.

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A ausência da dúvida sobre a culpabilidade decorria da infalibilidade do método de interrogatório empregado no processo contra as mulheres acusadas de bruxaria.

Isso porque os interrogatórios dos acusados eram conduzidos pelos juízes com “mãos de ferro” para a obtenção da confissão espontânea ou mediante tortura.

Os juízes, imbuídos de recursos de sua erudição formada pelas obras de demonologia então difundidas na classe culta da sociedade, desfrutavam de uma enorme vantagem nos interrogatórios, pois já admitiam pré-concepções irrefutáveis sobre a bruxaria e partiam das mesmas para obter as confirmações dos atos e malefícios praticados pelos acusados.

Para mostrar contradições e induzir os acusados, os juízes também relatavam os fatos já confirmados por outras pessoas da comunidade e fatos comprovados contra outras feiticeiras já condenadas em processos semelhantes ou oriundos do mesmo local, da mesma aldeia. Era a famosa jurisprudência da época. O acusado ficava sempre acuado, perturbado e perseguido, às vezes por semanas.

Aliás, o fato de os acusados relatarem inúmeras vezes o que os magistrados acreditavam que eles realmente haviam perpetrado pode se dever à corriqueira prática dos interrogatórios sugestivos. Por meio dessa técnica minuciosamente ensinada nos tratados de demonologia, os juízes efetuavam perguntas que orientavam as respostas dos suspeitos, impossibilitando qualquer defesa substancial.

Como relata Mandrou, após exaustiva pesquisa de arquivos judiciais na França dos séculos XVI e XVII, “... a maior parte dos interrogatórios põem com efeito o acusado no caminho, lembrando-lhe os fatos antigos que pertencem à crônica da comunidade; ou então fornecendo-lhe os elementos da resposta”. (1968, p. 82)

Por meio do interrogatório, portanto, os juízes perquiriam a verdade real do processo inquisitivo obtida, na sua essência, através da confissão. A consolidação da confissão como a rainha das provas contou com os influxos religiosos que lhe conferiam a condição de um possível arrependimento do acusado, o que poderia propiciar uma reconciliação com Deus.

Com poderes delegados por Deus para punir as bruxas, os juízes agiam de forma obstinada para obter a confissão do acusado e, com isso, a reconciliação daqueles traidores com Deus, rompendo o pacto com o diabo.

Evidentemente que a confissão não livrava as bruxas da condenação e, por conseguinte, da pena de morte na fogueira, mas assegurava a salvação da alma, segundo a demonologia.  

Todavia, se o acusado se mostrasse reticente, negando e recusando todos os depoimentos e fatos relatados contra ele, os juízes procederiam à busca da verdade real por meio de tor­mentos, ou seja, da tortura.

A propósito da utilização legítima da tortura no processo inquisitivo, destaca-se a lição do professor Felipe Pinto (2010, p. 200-201):

A difusão da tortura como método de apuração acompanhou o incremento do movimento da Igreja de combate aos hereges. Inicialmente, expediu-se o decreto Licet ad capiendos de Gregório IX (1233), arregimentado por uma formulação inequívoca na Bula Ad extirpanda (1252) da autoria de Inocêncio IV, a partir de quando a aplicação da tortura, prevista para todos os processos contra os suspeitos de heresia, foi delegada a juízes civis. Mais tarde, com a bula Multorum querela de Clemente V, a tortura alcançou também os tribunais do Santo Ofício.

Em 1487, publicava-se o Malleus Malleficarum, de autoria de dois monges dominicanos Heinrich Kramer e James Sprenger, posteriormente reconhecido pela bula papal Summis desiderantes affectibus e que consistia numa espécie de manual para diagnóstico de feitiçarias, inclusive com descrições requintadas dos meios e modos de inflição dos suplícios aos acusados de bruxaria.

De fato, as instruções de tortura, muito mais do que um regramento, serviram como divulgação do método e estímulo para os inquisidores que, em razão do sucesso da técnica de apuração, passavam a acreditar que o “abençoado” método gozava de uma providencial infalibilidade.

Qualquer que fosse a resistência, física ou moral dos acusados, a tortura alcançava o seu desiderato na maior parte dos casos, já que muitos preferiam a morte rápida, assegurada a todos que confessassem prontamente todos os crimes e malefícios praticados, à continuação das longas sessões de sofrimento.

Importante ressaltar que a estrutura do processo inquisitório era corroborada pelos estudos de filósofos e teólogos de notória erudição que utilizaram um conveniente discurso de superação das tentações para a manutenção do corpo puro e, ainda, a exaltação do sofrimento como maneira de se alcançar a purificação da alma e a reconciliação com Deus.

A partir de tais discursos legitimadores das barbáries autorizadas pelos juízes, a tortura teria adquirido um caráter medicinal para a alma, pois a submissão do acusado à tortura, enquanto forma de sua salvação para livrar-se dos pecados, o aproximaria de Deus e, dessa forma, todo o sofrimento e as marcas deixadas no corpo passariam a gozar de uma conotação benéfica de reconciliação divina. (Pinto, 2010, p. 202)

Dentro desse contexto, o interrogatório se tornou um ato processual de extrema relevância no processo contra as mulheres acusadas de bruxaria, uma vez que consistia na formalização da obtenção da prova mais valiosa (a confissão) e que, por essa razão, correspondia à verdade real e absoluta, mesmo se obtida mediante tortura.

4.3. A prova testemunhal – sigilosa:

Quanto à prova testemunhal, a regra era que aquilo que fosse declarado sob juramento por duas ou três pessoas seria considerado a verdade.

Vigia àquela época o sistema da prova tarifada ou prova legal, pelo qual existia uma hierarquia objetiva entre os meios de prova. A confissão era a rainha das provas e demonstrava a verdade absoluta. Duas ou mais testemunhas também demonstravam o fato, mas valiam menos que a confissão.

Havendo divergências entre os depoimentos das testemunhas ou quando as testemunhas prestavam declarações confusas ou contraditórias, ou quando pareciam ter ocultado algum fato, o juiz poderia inquiri-las quantas vezes lhe aprouvesse até o esclarecimento integral.

Cumpria ao juiz inquirir também sobre qualquer inimizade pessoal manifestada ou sentida pelas testemunhas para com a prisioneira (acusada), sendo que nestes casos tais testemunhas poderiam não ser admitidas ou levadas em conta no julgamento.

No entanto, se a própria acusada negava a existência de inimigos ou quando dava o nome de suposto inimigo que não havia prestado depoimento naquele caso, mesmo que outras testemunhas tivessem declarado que uma determinada pessoa havia prestado depoimento por motivo de inimizade ou ódio contra a acusada, o juiz estava autorizado a não rejeitar as evidências demonstradas pelo depoimento, incluindo-o junto com as outras provas. (Kramer, 2004, p. 405)

Além disso, na falta de outras provas, por mais absurdo que possa parecer, admitia-se o depoimento de outras bruxas, dos cúmplices, parentes, notórios criminosos e malfeitores desde que para demonstrar os fatos imputados pela acusação. Tais pessoas não poderiam ser admitidas, contudo, como testemunhas em favor da defesa.

Isso mostra o tratamento prejudicial conferido ao acusado, considerado mero objeto do processo.

Nesse sentido, destacam-se algumas regras processuais instituídas por Kramer e Sprenger (2004, p. 403):

Reparar que as pessoas sob sentença de excomunhão, os sócios e os cúmplices, ou servos que prestam depoimento contra os seus amos são aceitos como testemunhas em causas relacionadas à Fé. Assim como um herege pode depor contra outro herege, uma bruxa pode depor contra outra bruxa. (...) O mesmo se há de dizer do depoimento da esposa, dos filhos e dos parentes da pessoa acusada. Pois que evidência dessa natureza tem mais valia em provar uma acusação do que em refutá-la.

Em razão da gravidade do crime de bruxaria e dos supostos riscos para as testemunhas, seus nomes eram mantidos em sigilo, de modo que a acusada não ficaria sabendo quem teria prestado o depoimento.

Conforme instruía Kramer no Malleus Malleficarum (2004, p. 417):

... o Juiz diligente atentará para os poderes dos acusados; os quais são de três tipos, a saber, o poder do berço e da família, o poder das riquezas e o poder da malícia. O último há de ser mais temido do que os outros dois, já que acarreta um maior perigo para os acusadores caso o seu nome se torne conhecido. A razão para isso é que é mais perigoso tornar conhecidos da acusada os nomes das testemunhas quando a acusada é pobre, porque é pessoa que tem muitos cúmplices malignos, como bandidos e homicidas, a ela associados, que nada têm a perder, além da própria vida, o que não é o caso com os que são de berço nobre ou ricos, com abundância de posses temporais. E a espécie de perigo que se há de temer é explicada pelo Papa João XXII, é o da morte ou supressão, própria ou da prole, ou da família ou o consumo da própria substância, o alguma coisa dessa natureza.

Os nomes das testemunhas raramente eram divulgados e isso somente ocorria quando não havia riscos, o que era muito difícil nos casos de crime de bruxaria.

Mais uma vez percebe-se o direcionamento da condução das provas à procura de evidências para a confirmação das acusações, não havendo verdadeira imparcialidade do juiz inquisidor nos processos contra as mulheres acusadas de bruxaria.

4.4. A busca da marca do Diabo:

Mesmo que nenhuma outra prova superasse a confissão, o juiz dispunha, ainda, de outros meios probatórios para confirmar suas convicções acerca das acusações de bruxaria.

Isso porque o Diabo marcava suas criaturas.

Robert Mandrou (1968, p. 83) narra que, segundo os demonólogos, a marca imposta pelo diabo às bruxas, como forma de revelar objetivamente o pacto existente, era constantemente procurada pelos juízes nos processos contra a bruxaria, mesmo que os acusados não tivessem dificuldades para confessar seus crimes.

Conforme reiterados processos da França do século XVI e XVII, o juízes se valiam da ajuda de cirurgiões que, nos intervalos dos interrogatórios, encarregavam-se de raspar totalmente o acusado e de picá-lo com uma agulha à procura da marca de insensibilidade reveladora do pacto com o diabo, in verbis:

... nos melhores casos, a vítima não sente nada quando a agulha é enfiada em sua carne, e o sangue não corre quando ela é retirada. Esta insensibilidade estreitamente localizada representa uma prova tão boa, que é procurada com muita perseverança pelos barbeiros: em 1964, próximo de Vesoul, uma infeliz foi picada tão fortemente que o operador não pôde recuperar sua agulha...

O exame do corpo inteiro pode necessitar de um largo tempo, várias horas durante as quais o juiz espera pacientemente que cada cicatriz devidamente sondada seja avaliada pelo cirurgião. (Mandrou, 1968, p. 84)

Essa prova exterior, objetivamente constatada, se somava aos demais elementos de convicção praticamente irrefutáveis que os interrogatórios e os testemunhos forneciam ao juiz.

4.5. Da possibilidade de deduções tautológicas contrárias às evidências do processo:

Como se não bastasse toda a forma inquisitória e tendenciosa de condução da produção das provas, sem qualquer chance de defesa aos acusados, os magistrados ainda eram munidos pelas obras teóricas de demonologia de uma interpretação peculiar nos processos contra as mulheres acusadas de bruxaria.

Os juízes não consideravam o seu interlocutor naquele tipo de processo como um acusado comum, havendo sempre o fundado receio de serem enganados pelas mentiras satânicas. Em razão disso, desconfiavam de tudo que era dito em resposta às perguntas, concluindo pela presença diabólica em todas as declarações, e até mesmo desconfiavam das pesquisas objetivas das provas, como, por exemplo, da busca da marca quando as evidências não confirmavam em sua inteireza os fatos da denúncia.

Ou seja, o acusado poderia ser considerado culpado mesmo quando resistia às sessões de tortura, negando os fatos lhe atribuídos, o que já era quase impossível de ocorrer, ou quando não se localizava nenhuma marca do demônio.

Segundo Mandrou, no século XVII, vários juízes na França concluíram, ao fim de uma procura vã das marcas insensíveis, que o demônio teria atuado no caso para apagá-las momentaneamente e enganar a Justiça em prol de um de seus cúmplices. (1968, p. 86)

Ou seja, os juízes estavam munidos de uma ciência erudita demonológica e, por isso, possuíam uma convicção íntima e arraigada de que teriam de tratar com um verdadeiro inimigo (e não um suspeito), cujas dissimulações e mentiras poderiam ultrapassar tudo o que se podia imaginar.

A partir daí os juízes extraiam legitimamente inúmeras deduções tautológicas, corroboradas pelas obras de demonologia:

Quando a feiticeira se recusa a responder, negando em bloco o que lhe é imputado, ela manifesta o endurecimento suscitado por Satã, o pacto de silêncio que ele lhe recomenda para manter em xeque os justiceiros. Quando ela se desfaz em lamentos amargos sobre as infelicidades que sofreu, sobre a maldade dos vizinhos, trai a angústia que os atos nefastos por ela cometidos lhe suscitam, em um momento em que o seu protetor a abandonou. Da mesma forma, as lágrimas vertidas durante a tortura ou ao fim de um interrogatório extenuante traem a culpabilidade reconhecida: ao passo que um olho desesperadamente seco exprime a perseverança na cumplicidade diabólica.

Os juízes possuem assim uma resposta unívoca para todas as atitudes de seus adversários... (Mandrou, 1968, p. 87)

O automatismo e a lógica formal dessas deduções eram inabaláveis naquela época e o final do processo já estava próximo, sendo praticamente inevitável a condenação da acusada das práticas de bruxaria.

 

4.6. A sentença condenatória:

 A partir dos estudos das provas e da sua peculiar condução pelos magistrados, não é difícil perceber que a condenação da acusada era inevitável.

Certamente também ocorriam casos de absolvição, mas era recomendado pelas obras de demonologia que não fosse declarado em nenhum trecho da sentença que a acusada seria inocente ou imune, mas apenas que nada contra ela havia sido provado no processo.

Isso porque, se depois de algum tempo fosse trazida de novo a julgamento e a acusação fosse legalmente comprovada, a pessoa acusada poderia ser condenada por aquele crime, não obstante a prévia sentença de absolvição. (Kramer, 2004, p. 458)

A sentença de condenação, por sua vez, estava relacionada diretamente com a confissão alcançada nos processos mediante tortura. As demais provas vinham apenas para corroborá-la. O juiz venceu o diabo, retomando-lhe a presa e cumprindo bem o seu dever outorgado por Deus.

As formalidades da sentença condenatória eram muito simples: poderia haver previsão de interrogatório suplementar a fim de obter denúncias de cúmplices ou de outros partidários do Satã; estipular cláusula de confisco dos bens da feiticeira a fim de prover as despesas do processo; determinar os preparativos da execução sobre o cadafalso ou nos lugares do sabá, nas horas seguintes à proclamação do julgamento imediatamente executável, salvo nos casos de processo de apelo que os condenados, humildes e pobres na maior parte, não assistidos de defesa jurídica, não tinham condições de iniciar. (Mandrou, 1968, p. 89 e 92)

A repercussão financeira da sentença condenatória estava relacionada com a multa e o confisco de todos os bens necessários para as despesas do processo, do aprisionamento e da execução. Os deslocamentos do juiz e dos cirurgiões que examinavam as marcas, o trabalho dos auxiliares encarregados da tortura, as despesas de instalação do patíbulo e da fogueira, a retribuição, inclusive, do carrasco generosamente pago com os bens da bruxa.

Freqüentemente os juízes determinavam a incineração do processo juntamente com o acusado para que não restasse mais nenhum traço de seus crimes, mesmo nos arquivos da Justiça. Da mesma forma, os juízes mandavam ao fogo os instrumentos da magia encontrados no domicílio da bruxa. (Mandrou, 1968, p. 95)

Nas palavras conclusivas de Robert Mandrou (1968, p. 89): “uma vez “lançadas as cinzas ao vento”, que arrasta os últimos traços dos culpados (e freqüentemente até mesmo de seu processo jogado na fogueira após a última leitura da sentença), os juízes retornam a outros afazeres e, certamente, a novas perseguições de feiticeiras”.

Sobre o autor
Daniel Carneiro Machado

Juiz Federal da 21ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais. Doutor em Direito Processual pela UFMG (2016) e Mestre em Direito Processual pela PUC Minas (2004). Professor titular do curso de graduação em direito do Centro Universitário Newton Paiva, em Belo Horizonte, além de professor de cursos de pós-graduação e preparação para concursos públicos na área jurídica. Ex-Advogado da União e ex-Procurador da Fazenda Nacional em Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Daniel Carneiro. A atuação dos magistrados no julgamento das bruxas:: uma análise histórica do processo e da perseguição às mulheres nos séculos XVI e XVII . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4129, 21 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33000. Acesso em: 22 dez. 2024.

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