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A biologização da lei

Agenda 01/11/2002 às 00:00

I – Introdução

Não há como fechar os olhos diante do progresso da tecnologia e medicina. Avanços importantíssimos para toda a sociedade humana. Avanços que tomam uma velocidade impressionante ao compararmos a evolução de outros campos científicos, sobretudo a ciência do direito.

Um erro grave, um atraso, um descaso que acarretará inúmeros transtornos futuros, já que todos os atos humanos clamam por regras, normas e penas, caso contrário, o que seria da sociedade moderna caso não existissem as leis que tipificam os crimes e determinam as penas a serem cumpridas pelos deliquentes? Um caos generalizado onde cada indivíduo estipularia suas leis.

Absurdo imaginarmos tal retrocesso nos dias de hoje, no entanto, ele existe. O biodireito não evolui de acordo com as evoluções da biomedicina, por exemplo. Poucos doutrinadores tratam de assuntos relevantes como a fertilização in vitro, bioprostituição, etc. A Bioética avança, carregada de interesses econômicos e atropelando a dignidade humana, enquanto o direito aguarda cauteloso.


II – A necessária biologização da lei

Em artigo anterior, publicado neste site, tratou-se da Bioprostituição e suas consequências, uma realidade camuflada e que vem causando danos sem nenhuma proteção jurídica.

Em recente reportagem publicada no mundo inteiro, noticiou-se a morte de uma jovem de 24 anos chamada Ellen Roche, que se submetera a testes de um medicamento experimental contra asma, o hexamethonium, o qual, segundo estudos científicos, apresenta efeitos tóxicos sobre os pulmões.

No entanto, a saudável cobaia humana, após inalar o remédio, teve suas vias pulmonares constritas, falecendo no dia 02 de junho de 2001, após três semanas de agonia e várias paradas respiratórias graves. O preço de sua vida? Sedutores US$ 365,00.

Um erro na composição de um medicamento contra asma. Talvez alguma substância invertida ou aplicada em excesso. Erros acontecem, agora é só tentar novamente. No entanto, o referido erro ocasionou na morte de um ser humano.

Casos como este resultam da falta de controle sobre esses experimentos aliados à precária informação dirigida aos voluntários de pesquisa, que, distantes do real esclarecimento das possíveis conseqüências dessa prática, cedem à indefectível combinação do dinheiro fácil e do sentimento de "contribuição à humanidade".

O caso gerou polêmica, fazendo com que a famosa Universidade Johns Hopkins dos Estados Unidos, responsável pelo trágico experimento científico, suspendesse os testes em cobaias humanas financiados com verbas federais. Diante de tal fato. Que lei aplicar? Até quando esperar pela conscientização dos legisladores acerca de um fato concreto e atual? Os tempos mudaram e o direito deve acompanhar essas evoluções!

Conforme mencionado em artigo anterior, as leis norte-americanas tornam obrigatório o consentimento por escrito dos voluntários, após uma "cristalina" discussão sobre os perigos em potencial dos testes. No Brasil, somente a Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 196/96, serve de base para tais ocorrências.

Mas tais pesquisas ocorrem no Brasil? Recentemente, a área médica da UNICAMP, um dos maiores centros de pesquisa do país, caiu sobre o escrutínio da mídia e das autoridades devido a supostos problemas éticos em seus experimentos com seres humanos, desrespeitando-se as regras determinadas pelo Ministério da Saúde e pelo Conselho Federal de Medicina.

Demonstra-se, portanto, a proximidade do assunto e a extrema necessidade da biologização da lei e a evolução do biodireito. Ora, o próprio pai da medicina, Hipócrates, formulou o famoso princípio "primum non nocere" (em primeiro lugar, não causar dano).

Em sua Obra "Direito Civil" de 1988 o Mestre Silvio Rodrigues já tratava da questão da disposição do próprio corpo, abordando o tema sob a égide do art. 13 do Novo Código Civil sobre o qual proclama: "Alguns problemas seríssimos podem ser enquadrados no dispositivo, entre os quais a venda de órgãos, as intervenções em transexuais, a questão do aborto e da inseminação artificial. Em todos eles, como é óbvio, trata-se da disposição do próprio corpo, enquanto vivo o paciente".

A Profa. Maria Helena Diniz, em seu recente livro "O Estado Atual do Biodireito" (Ed. Saraiva, 2001), corporifica de forma significativa a Quarta geração do direito, ressaltando-se o seguinte trecho de sua Obra: "Como o direito não pode furtar-se aos desafios pela biomedicina, surge uma nova disciplina, o biodireito, estudo jurídico que, tomando por fontes mediatas a bioética e a biogenética, teria a vida por objeto principal, salientando que a verdade científica não poderá sobrepor-se à ética e ao direito, assim como o progresso científico não poderá acobertar crimes contra a dignidade humana, nem traçar, sem limites jurídicos, os destinos da humanidade".

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Mais a frente a Eminente Jurista clama pela " biologização" da lei:"...a bioética e o biodireito caminham pari passu na difícil tarefa de separar o joio do trigo, na colheita dos frutos plantados pela engenharia genética,pela embriologia e pela biologia molecular, e de determinar, com prudência objetiva, até onde as ‘ciências da vida’ poderão avançar sem que haja agressões à dignidade da pessoa humana, pois é preciso evitar que o mundo deságüe numa crescente e temível ‘confusão diabólica’, em que os problemas da humanidade sejam ‘solucionados’ pelo progresso tecnológico".

Nada mais fabuloso e contemporâneo!


III- O amparo nos direitos da personalidade

Enquanto não ocorre a biologização da lei, o Biodireito Brasileiro, no que tange aos experimentos realizados em seres humanos, pode lançar mão da Constituição Federal Brasileira de 1988 que, ao longo de seu art. 5º, trata de diversos direitos da personalidade, entre eles o direito à honra, à vida privada, à intimidade e à imagem.

Quando tratamos do aspecto agressivo em relação ao corpo humano, devemos enxergar não só os danos físicos e visíveis causados à matéria, mas também o profundo abalo moral e psicológico por qual passam as "vítimas" envolvidas em experimentos medicinais, por exemplo.

Ora, todos os seres humanos são detentores de direitos que, segundo o Mestre Civilista Sílvio Rodrigues "são inerentes à pessoa humana e portanto a ela ligados de maneira perpétua e permanente, não se podendo mesmo conceber um indivíduo que não tenha direito à vida, à liberdade física ou intelectual, ao seu nome, ao seu corpo, à sua imagem e àquilo que ele crê ser sua honra".

Portanto, a ninguém cabe rejeitar o seu direito a personalidade. A dignidade de um ser humano é inviolável, é a base de todos os outros direitos, o direito à vida, por exemplo, acompanha o homem desde o seu nascimento.

Observa-se com muita freqüência as decisões dos Tribunais sobre indenizações por danos morais, ou seja, após várias discussões doutrinárias, entendeu-se que o abalo a qualquer um dos direitos da personalidade não só pode como deve ser indenizado, tendo em vista a importância de tais direitos.

Ora, a livre disposição do próprio corpo é um direito pessoal que delimita-se com a fronteira da licitude, da dignidade humana. O uso do corpo humano deve estar condicionado à moral da época, sendo extremamente vedada a autolesão, o aborto, a mutilação fraudulenta para receber seguros, e, os contratos de empréstimo do corpo para pesquisas científicas, quando não observadas as normas de atividades lícitas.

Ignora-se também os arts. 146 e 148 do Código Penal que tratam sobre os crimes contra a liberdade pessoal.

Além disso, o Código Civil determina em seu art. 1.550 que "A indenização por ofensa a liberdade pessoal consistirá no pagamento de perdas e danos e que sobrevierem ao ofendido, e no de uma soma calculada nos termos do parágrafo único do art. 1.547".


VI – Conclusão

Cristalina, portanto, a extrema necessidade de adaptação da nossa lei pátria aos avanços tecnológicos e medicinais, para que todas as ciências, dentro de sua importância, possam progredir de forma uniforme e sem choques entre si, sobretudo na esfera do biodireito.

O que se espera na realidade é que nossos legisladores atuem de acordo com os anseios sociais atuais, suprindo dessa forma a lacuna na esfera do biodireito, já que o Brasil tem obtido grandes avanços na área da biomedicina e biotecnologia, sugerindo-se inclusive, a criminalização de práticas como a bioprostituição, tema a ser tratado oportunamente.

Sobre a autora
Leila da Costa Loureiro

advogada em São Paulo (SP), pós-graduanda em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOUREIRO, Leila Costa. A biologização da lei. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3367. Acesso em: 24 nov. 2024.

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