I – DA EXPOSIÇÃO INICIAL.
O parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal afirma de forma peremptória: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Trata-se da declaração expressa do princípio da soberania popular e do direito fundamental de qualquer cidadão de participar dos processos deliberativos diretamente, ou através dos seus representantes.
Por mais que alguns setores do pensamento jurídico tentem limitar a participação direta no processo político aos instrumentos previstos no art.14, tal interpretação não tem base de sustentação, pois o primeiro fundamento do nosso Estado Democrático de Direito é a soberania (art. 1º, I, CF/88), e o titular da soberania, como afirma o próprio texto constitucional, é povo.
Como lembra Fábio Konder Comparato, o conceito de povo é conhecido deste a antiguidade, mas foi somente com a Revolução Americana que este passou a ser considerado como titular da soberania:
“Quando se tornou patente a inadequação da forma confederativa para a organização política dos diferentes Estados americanos, o recurso à idéia de povo como titular da soberania, mesmo num Estado federal e não unitário, tornou-se inevitável. Na Convenção de Filadélfia, no entanto, essa questão foi debatida de forma indireta, por ocasião das discussões a respeito do poder legislativo”[1]. [sic]
Desde então, o titular da soberania foi sempre foi o povo, detentor do Poder Constituinte Originário. Mas não é uma ideia de uma soberania absoluta, como instrumento totalitário, capaz de esmagar minorias, mas como o reconhecimento do direito fundamental à participação, ao envolvimento nos processos deliberativos da administração pública.
Jean Jacques Rousseau, no seu “Contrato Social”, falava em “povo incorporado”, um agente coletivo, uma comunidade de cidadãos e cidadãs que expressa a sua “vontade geral” por meio de assembleias com a participação de todas as formas de pensamento.
Na nossa Constitucional, a soberania é colocada em igualdade de condições com a cidadania, com a dignidade da pessoa humana, com os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e com o pluralismo político, todos considerados como fundamentos da República.
A própria ideia de cidadania vai muito além da mera limitação ao direito de votar e ser votado. Envolve uma gama de direitos fundamentais que se instruem na garantia absoluta à participação. Qualquer cidadão ou cidadã, numa sociedade realmente democrática, deve ser visto como o pilar básico de sua construção, e a castração de direitos não combina com este entendimento.
Nesse sentido, a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos[2], no seu art. 21º, item “1”, adotada e proclamada pela Resolução nº 217-A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, data em que o Brasil se tornou signatário do documento:
Artigo 21º. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direcção dos negócios públicos do seu país, quer directamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos.
E aqui temos um ponto de corte. Não aceitável que representes do povo coloquem a sua condição de representação em oposição à participação direta. O Parlamentar é um mandatário, um representante, e os seus poderes não ultrapassam os do mandante. A ação do mandatário é limitada pelos direitos fundamentais do mandante.
Logo, os argumentos sustentados pelos críticos da Política Nacional de Participação Social, não encontram guarida nas sociedades democráticas desde o século XVIII. A participação direta da sociedade é um dos pontos basilares das Democracias Modernas, um direito fundamental consagrado pela Assembleia das Nações Unidas, e não combina com a apropriação privada do poder.
Quando o parlamentar, mandatário de poder, passa a ter precedência sobre o mandante, temos patrimonialismo, a privatização do poder, herança do período colonial, e não uma democracia plena, como a prevista na Carta Régia de 05 de outubro de 1988.
A defesa da participação ativa da sociedade política não é apenas um anseio de países em desenvolvimento, posto que as “democracias avançadas” do centro, também demonstram a mesma preocupação, na medida em que é evidente o esgotamento dos modelos “formalísticos schumpeterianos de Democracia”[3].
Friedrich Müller, Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Heidelberg, na Alemanha, também é crítico da visão tradicional da democracia “formal-burguesa”, que resume a compreensão de democracia popular ao exercício período do voto pelos “cidadãos-eleitores”. Para Müller, este sistema causa o que chama de “fastio da política”[4], perda de interesse da população sobre os processos políticos.
Particularmente entendo que o “fastio da política”, a perda do interesse da sociedade pelas decisões tomadas por governantes e parlamentares é muito mais perigosa a qualquer Democracia, do que o exercício ativo da cidadania.
O cidadão ativo, interessado, criticamente comprometido, é uma fonte de arejamento dos processos políticos, e um freio para arroubos personalistas e ditatoriais dos ocupantes do poder. Já o ser apático, desinteressado, aprisionado à hiper-realidade dos meios de comunicação de massa, é presa fácil das ditaduras, dos arroubos totalitários. Atende apenas ao chamamento da máquina de propaganda para enfrentar inimigos imaginários que, muitas vezes, sequer compreende. Foi assim no fascismo, no nazismo, e em qualquer modelo totalitário.
Deste modo, a restrição da participação social é a maior inimiga da sociedade, pois restringe a cidadania ativa, a organização coletiva, a compreensão do funcionamento da máquina do estado, e a verdadeira concretização de direitos fundamentais.
“Essa participação cidadã se transforma em ampliação das possibilidades de acesso dos setores populares aos atos de gestão, segundo uma perspectiva de desenvolvimento da sociedade civil e de fortalecimento dos mecanismos democráticos, e contribui para garantir a execução eficiente dos programas de compensação social que surgiram no contexto das políticas de ajuste estrutural”[5].
No presente artigo, pretendo demonstrar que além da velha e tradicional dificuldade das classes dominantes em lidar com a participação ativa da sociedade, cunhada de “povofobia”, bem como a inexistência de argumento de natureza racional ou jurídica que sustente o Decreto Legislativo aprovado pela Câmara dos Deputados no dia 29 de outubro para repelir e desqualificar a Política Nacional de Participação Social.
Como demonstraremos adiante, a proposta de Decreto Legislativo é inconstitucional, ultrapassa os limites fixados pela constituição e invade esfera de competência privativa do Poder Executivo e do Poder Judiciário. Pior do que isto. Ofende “cláusula pétrea”, coloca em risco a estabilidade democrática e conflita com os fundamentos da nossa jovem democracia.
II – OS MODELOS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE ADMITIDOS NA NOSSA CONSTITUIÇÃO.
A Constituição da República Federativa do Brasil adota vários tipos de controle de constitucionalidade e em várias etapas do processo normativo, inclusive no pós-promulgação.
A primeira forma de Controle de Constitucionalidade é o preventivo, exercido pelos Poderes da República, durante o processo legislativo. Embora presente em todos os poderes constitucionalmente instituídos, somente pode exercido no âmbito da competência privativa ou exclusiva de cada Poder.
Assim, o Poder Executivo realiza o controle de constitucionalidade preventivo, na análise prévia das normas de sua iniciativa pelos órgãos vinculados à Advocacia Geral da União. Nos demais entes federativos, este papel é exercido pelas Procuradorias de Estados e de Municípios. Também é realizado por meio do Veto ou da Promulgação do Ato Legislativo ou Normativo pela Chefia do Poder Executivo.
O Poder Legislativo realiza o controle preventivo das normas com efeitos externos por meio da Comissão de Constituição e Justiça e, nas normas destinadas apenas à administração interna, pela sua assessoria jurídica. O judiciário, realizada o controle preventivo de constitucionalidade apenas nas normas internas, através das assessorias jurídicas e dos dirigentes de Poder. Como não existe ação para o controle de constitucionalidade de norma em tese, o Judiciário não atua na fase de pré-promulgação de Lei ou de Ato Normativo.
O controle de constitucionalidade repressivo pode ser realizado também no âmbito dos poderes para a aplicação de normas de competência privativa, como Decretos, Portarias, Instruções, dentre outros. Nesses casos, é uma competência do titular para a expedição da norma. Mas em âmbito das Leis e demais atos normativos com efeitos sociais, o controle de constitucionalidade é realizado de forma concentrada pelo Poder Judiciário, e pelo Senado Federal, e de forma difusa por meios dos órgãos do Judiciário.
O Controle de Constitucionalidade Difuso pode ser arguido por qualquer cidadão, tanto nas ações pessoais, como por meio da ação popular. Tal controle também pode ser requerido ao judiciário pelo Ministério Público, e pelos órgãos e entidades titulares da Ação Civil Pública. Ou seja, o controle difuso de constitucionalidade é amplo, e pode ser aplicado por qualquer órgão do poder judiciário, mesmo os juízes de primeira instância.
Já o Controle Concentrado, é realizado exclusivamente pelos Tribunais, de acordo com a origem da norma, ou pelo Senado Federal.
O Senado exerce o controle de constitucionalidade concentrado na hipótese única do art. 52, X, da CF/88: “suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”. Já os Tribunais fazem este controle de forma mais ampla, por meio das ações diretas de inconstitucionalidade ou das ações declaratórias de constitucionalidade. Em ambas as situações, temos pessoas específicas que são titulares da ação, não havendo extensão de competência.
As ações cujo objeto é a ofensa de Lei ou Ato Normativo da União ou dos Estados, frente à Constituição Federal, são analisadas pelo Supremo Tribunal Federal. Quando o objeto é Lei ou Ato Normativo Municipal ou Estadual, frente à Constituição dos Estados, a competência é dos Tribunais de Justiça dos Estados.
O Art. 49, V da Constituição Federal ainda prevê uma forma anômala de controle de constitucionalidade, que é o Decreto Legislativo, cuja função é conter o excesso do poder regulamentar pelo Executivo, seja por meio de ato regulamentar nos termos do art. 84, IV, ou quando temos extrapolação dos limites fixados para a promulgação de Lei Delegada.
Não inclui o Decreto Legislativo no modelo concentrado, apresento-lhe como forma anômala de controle de constitucionalidade, pois as suas hipóteses de aplicação não se referem a afronta à Constituição, mas à Lei ou a instrumento delegatório. A constitucionalidade enfrentada seria apenas um efeito reflexo, ou pela escolha inadequada do instrumento normativo, ou na extrapolação dos limites de delegação.
Entretanto, o controle de discricionariedade do Executivo por meio de Decreto Legislativo é um instrumento perigoso, que poder ferir o âmbito de independência dos Poderes quando mal utilizado.
“A outra hipótese é de se admitir a possibilidade do controle da discricionariedade do Poder Executivo, no que diz respeito ao poder regulamentar. Aqui os problemas parecem ser maiores, visto que nem ao Poder Judiciário é admitido o controle da discricionariedade administrativa (em relação aos seus aspectos de oportunidade e conveniência). A sustação de atos do Poder Executivo com base em aspectos dessa natureza refugiria completamente ao sistema de pesos e contrapesos entre os três Poderes, podendo derivar para uma confusão de competências. Assim, deve ser afastada essa possibilidade, pelo menos no plano teórico”[6]. (grifamos)
O Decreto Legislativo somente é aplicável ao excesso de regulamentação em duas hipóteses: quando o Decreto do Executivo é contrário à Lei, ou quando a referida norma regulamentar excede aos limites da Lei.
“Ou seja, o controle que pode ser exercido pelo Poder Legislativo, com base no art. 49, inciso V, da CF/88, é limitado e restringe-se às hipóteses de extrapolação do poder regulamentar, no sentido de não-adequação aos limites da lei regulamentada (disposições contra legem, extra legem ou ultra legem), configurando violação ao princípio da legalidade, e diz respeito somente aos atos do chefe do Poder Executivo, isto é, os decretos regulamentares, não abrangendo os decretos autônomos ou qualquer outro ato emanado na esfera do Poder Executivo. Qualquer outra hipótese de inconstitucionalidade só poderá ser objeto de controle pelo Poder Judiciário. Entender-se de outro modo seria como se ler no supercitado inciso V do artigo 49 da CF/88 não a expressão “atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar”, mas “atos normativos no âmbito do Poder Executivo eivados de inconstitucionalidade direta ou indiretamente”; o que configuraria, evidentemente, uma ampliação distorcida do comando constitucional”[7]. (GRIFAMOS)
Frente a estas considerações, há um inequívoco risco à Democracia, quando Decreto Legislativo não é utilizado para as funções que lhe destina a Constituição, mas apenas para interferir na esfera própria de atuação do Executivo, e restringir a sua discricionariedade política. Neste último caso, há inequívoca ofensa à Independência dos Poderes:
“A amplitude da aplicação do dispositivo do art. 49, inciso V, da CF/88 não é unanimidade. A Prof. Anna Cândida da Cunha Ferraz (1994, p. 214-215) sustenta que “o exercício desse controle político pelo Congresso Nacional leva-o a interpretar a Constituição conforme a lei e não conforme a Constituição, numa perigosa inversão para a supremacia, a vitalidade e a defesa das normas constitucionais” e que tal dispositivo se afigura como figura anômala no ordenamento jurídico, e propõe sua supressão”[8]. (GRIFAMOS)
E é exatamente neste ponto que localizamos a proposta de Decreto Legislativo para sustar o Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014:
1º) O Decreto Presidencial não cria nenhum órgão novo que dependa de reserva expressa de Lei;
2º) A Política Nacional de Participação Social é, na verdade, uma escolha política privativa da Presidenta da República visando organizar o funcionamento das estruturas públicas de participação de forma a garantir maior eficiência e intercâmbio entre os órgãos;
3º) O Decreto Federal não limitou, nem expandiu nenhum direito fundamental, pois o direito de participação é decorrente da própria Norma Fundamental e de normas internacionais de direitos das quais o Brasil é signatário;
4º) A organização administrativa do Poder Executivo não encontra-se vinculada ao inciso IV do art. 84 da CF/1988 (Poder Regulamentar), mas à alínea “a”, inciso VI do art. 84 da CF/1988 (Organização do Poder Executivo);
5º) Garantir a participação social (direito fundamental), não é uma faculdade da Chefia do Executivo, mas um dever constitucional;
6º) Desde a Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001, é pacífico o entendimento de que o Poder Executivo pode se utilizar de Decretos próprios para organizar o funcionamento da administração.
Nesse sentido, é importante derrubar mais um mito sobre o direito Brasileiro, que é a impossibilidade de edição de “decretos autônomos’ pelo Poder Executivo. Os decretos autônomos não podem ser utilizados para tratar de matérias onde seja obrigatória a reserva de Lei, mas isto não inclui a hipótese do art. 84, VI, alínea “a” da CF/1988.
“Na lógica das normas de impulsão, a Emenda Constitucional no 32, de 2001, confiou ao Chefe do Poder Executivo – por meio do decreto autônomo – a disciplina normativa da organização da Administração Pública federal. Não havendo, nesta seara, criação ou extinção de função, cargo ou órgão público, bem assim aumento de despesa, não é necessário o concurso de outro Poder. Daí o acerto da decisão do Poder Constituinte Instituído em retirar do campo da lei formal tais assuntos”[9].
Assim, quando o Poder Legislativo avançou contra o Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014, acabou excedendo os limites do art. 49, V da CF/1988, tratando de matéria cuja competência é privativa da Presidenta da República e sobre objeto que somente poderia ser analisado pelo Supremo Tribunal Federal.
III – DA COMPETÊNCIA INSTITUCIONAL DOS PODERES, E DAS SUAS FORMAS.
A Carta Constitucional de 1988 adotou uma série de formas do exercício de competência pelos Poderes e pelos entes federativos, dentre os quais encontramos:
-
Competência Exclusiva – é aquela atribuída somente a um Ente da Federação ou Agente Político com exclusão dos demais;
-
Competência Privativa – também é própria de um Ente Federativo ou Agente Político, mas pode ser objeto de delegação;
-
Competência Concorrente – é a capacidade jurídica legislativa de um Ente Federativo ou Órgão de Poder de exercer determinadas atribuições juntamente com outros órgãos ou membros da Federação, possibilitando uma relação de equilíbrio na elaboração das normas;
-
Competência Comum – é aquela atribuída a mais de um ente da Federação, normalmente vinculada às atividades executivas; e
-
Competência Suplementar – semelhante à competência exclusiva, mas cabível apenas em situações de predominância do interesse local.
Esse rol de atribuições gera grandes controvérsias jurídicas entre os vários entes federativos e Órgãos de Podes. Não são poucas as vezes que temos a invasão de esferas de competência, algo que pode ser comprovado com uma simples pesquisa nas páginas dos Tribunais de Justiça dos Estados e do próprio STF.
O art. 84 da Constituição Federal, por exemplo, estabelece as competências privativas do Presidente ou da Presidenta da República. Por simetria, tais competências são extensivas ao Chefes do Poder Executivo dos demais entes federativos.
Dentre estas atribuições, encontramos:
III - iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Constituição;
IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;
........................................
VI – dispor, mediante decreto, sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
.......................................
Também é privativa do Presidente ou da Presidenta da República a iniciativa de qualquer projeto de Lei que alterem a estrutura de funcionamento da Administração Pública Federal e das forças armadas (art. 61, § 1º, CF/1988).
O Decreto nº 8.423, de 23 de maio de 2014, não promove a criação ou extinção de órgãos públicos, nem no aumento das despesas orçamentárias. Ao contrário, cumpre o papel regulamentador estrito e organiza o intercâmbio e a integração de várias estruturas já existentes na administração pública, como os Conselhos de Políticas Públicas[10], a Ouvidoria Geral da República, a Secretaria Geral da Presidência, e a Controladoria Geral da União.
Ação direta de inconstitucionalidade. Decreto 4.010, de 12-11-2001. Pagamento de servidores públicos da administração federal. Liberação de recursos. Exigência de prévia autorização do presidente da República. Os arts. 76 e 84, I, II e VI, a, todos da CF, atribuem ao presidente da República a posição de chefe supremo da administração pública federal, ao qual estão subordinados os ministros de Estado. Ausência de ofensa ao princípio da reserva legal, diante da nova redação atribuída ao inciso VI do art. 84 pela EC 32/2001, que permite expressamente ao presidente da República dispor, por decreto, sobre a organização e o funcionamento da administração federal, quando isso não implicar aumento de despesa ou criação de órgãos públicos, exceções que não se aplicam ao decreto atacado. (ADI 2.564, rel. min. Ellen Gracie, julgamento em 8-10-2003, Plenário, DJ de 6-2-2004.) (GRIFAMOS)
A realização de audiências públicas, conferências, mesas de diálogos, foros inter-setoriais, consultas públicas e outros instrumentos de participação direta da sociedade e de diálogo político entre governo e a representação popular, ou diretamente com os cidadãos, também não conflitam com a regra constitucional. São, de fato, aplicação direta dos fundamentos, princípios e valores previstos na Constituição.
Por sinal, não se observa no Decreto nenhum desprestígio ao Congresso Nacional, que continua exercendo a totalidade dos poderes instituídos no Processo Constituinte. Ao contrário, temos no Decreto um compromisso público de valorização da sociedade brasileira, organizada ou não, com a concretização do seu direito fundamental a influir nas decisões políticas, mesmo que seja apenas para opinar numa consulta pública em ambiente virtual.
Aliás, como adverte o professor de ciência política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Alfredo Alejandro Gugliano, o uso da internet e, por via de consequência, dos ambientes virtuais, tem sido uma forma importante para ampliar a articulação social:
As políticas alternativas no campo da democracia fluem pelos mesmos canais e utilizam tecnologias semelhantes às empregadas pelo mercado internacional de capitais, através de infovias mundiais. Em poucos segundos, qualquer cidadão que possua um computador conectado à internet e conhecimentos básicos de informática, tem acesso a informações privilegiadas sobre os mais diferentes assuntos políticos, como também condições de participar dos mais diversos tipos de articulação através de verdadeiras redes de ações sociais. Cabe lembrar que a internet tem sido o canal privilegiado de conexão de todas as grandes manifestações antiglobalização que ocorreram nos últimos anos e representa um ágil instrumento de articulação social[11].
Assim, a Política Nacional de Participação Social é um grande avanço para o país, e o cumprimento de uma obrigação institucional do Poder Executivo, ao abrir espaços para a consolidação de direitos fundamentais, incluindo o direito à participação.
IV – DA OFENSA A CLÁUSULA PÉTREA PELO LEGISLATIVO FEDERAL
Como já destacamos anteriormente, a Independência entre os Poderes é dos princípios fundamentais do direito brasileiro (art. 2º da CF/1988), e Cláusula Pétrea da Norma Fundamental, não podendo ser abolida nem por meio de Emenda Constitucional.
“Art. 60. ..............................................................................................
§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
.....................................................................................” (GRIFAMOS)
Qualquer ofensa à separação de poderes pode ser objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade.
De acordo com o Supremo Tribunal Federal:
“O STF já assentou o entendimento de que é admissível a ação direta de inconstitucionalidade de emenda constitucional, quando se alega, na inicial, que esta contraria princípios imutáveis ou as chamadas cláusulas pétreas da Constituição originária (art. 60, § 4º, da CF). Precedente: ADI 939 (RTJ 151/755).” (ADI 1.946-MC, Rel. Min. Sydney Sanches, julgamento em 29-4-1999, Plenário, DJ de 14-9-2001.)
Também nesse sentido:
É inconstitucional qualquer tentativa do Poder Legislativo de definir previamente conteúdos ou estabelecer prazos para que o Poder Executivo, em relação às matérias afetas a sua iniciativa, apresente proposições legislativas, mesmo em sede da Constituição estadual, porquanto ofende, na seara administrativa, a garantia de gestão superior dada ao chefe daquele Poder. Os dispositivos do ADCT da Constituição gaúcha, ora questionados, exorbitam da autorização constitucional de auto-organização, interferindo indevidamente na necessária independência e na harmonia entre os Poderes, criando, globalmente, na forma nominada pelo autor, verdadeiro plano de governo, tolhendo o campo de discricionariedade e as prerrogativas próprias do chefe do Poder Executivo, em ofensa aos arts. 2º e 84, II, da Carta Magna.” (ADI 179, rel. min. Dias Toffoli, julgamento em 19-2-2014, Plenário,DJE de 28-3-2014.) (GRIFAMOS)
O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes.
Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais.
Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuaçãoultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais.” (RE 427.574-ED, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 13-12-2011, Segunda Turma, DJE de 13-2-2012.) (GRIFAMOS INTEGRAL)
O Decano do Supremo Tribunal Federal, no voto proferido no mesmo Acórdão citado acima, no RE 427.574-ED, vai além, ao afirmar que:
“A desconstituição, em sede parlamentar, de tais atos administrativos culminaria por subverter a função primária da lei, que, nesse contexto, passaria a equiparar-se a uma inadmissível sentença legislativa, com evidente insubmissão ao modelo constitucional que define, em nosso regime político, o sistema de especialização e de limitação de poderes”. (GRIFAMOS)
Ora, se o Legislativo não pode invadir a competência privativa do Executivo por Lei, norma de hierarquia superior, muito menos poderia proceder desta forma por meio de Decreto Legislativo. Estaríamos diante de uma conduta típica de ditadura totalitária, onde um dos Poderes constituídos, neste caso o Legislativo, usaria de uma maioria de ocasião para subverter Ordem Constitucional e o resultado das urnas em nome de valores pouco respeitáveis.
Logo, não restam dúvidas sobre a invasão das competências do Poder Executivo quando do ataque ao Decreto nº 8.423, de 23 de maio de 2014 pelo Congresso Nacional.
V – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme destacado nos tópicos acima, ao pretender anular de forma abusiva os efeitos de um Decreto da Presidência da República, o Congresso Nacional está atacando a independência e harmonia entre os Poderes, cláusula pétrea do nosso Estado Democrático de Direito.
Mas o debate precisa avançar muito além, e expor de forma clara o duro jogo de interesses que o Brasil deverá enfrentar na discussão sobre Reforma Política.
O medo de perda do controle e de poder por alguns grupos mandatários em cargos parlamentares ou, até mesmo, pelos meios de comunicação, se expressa em medidas evidentes, como a desqualificação da política e consciência política dos eleitores.
A retomada da discussão da “Emenda Constitucional da Bengala”, defendida abertamente pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Ferreira Mendes, na qual o mandato dos Ministros do Supremo é ampliado de forma injustificada, demonstra que alguns “estamentos de estado” sentem-se cada vez mais ameaçados pelo crescimento dos anseios de participação da sociedade, e pela crescente redução do patrimonialismo na administração pública.
Outro exemplo bastante interessante é o uso inadequado e equivocado do termo “bolivariano”, como crítica às pessoas que defendem o alargamento da Democracia. Nesse sentido, tem razão o Professor de Relações Internacionais do ABC, Gilberto Maringoni, quando destaca que
A acusação de bolivariano feita por Gilmar Mendes e outras figuras do mesmo nível parte de quem conta com a ignorância alheia. E é bradado especialmente por aqueles que omitem um pequeno detalhe dessa história: na Venezuela, o contrário de bolivariano é uma oposição que não vacilou em patrocinar um destrambelhado golpe de Estado, em 2002, que retirou Chávez do poder por três dias e, de quebra, todas as referências a Simón Bolívar dos símbolos nacionais. A intentona foi um fracasso e, como se sabe, desmoralizou a oposição por vários anos[12].
A patologia do “medo do alargamento democrático” também fica expressa quando grupos reacionários vão para a rua em patéticas manifestações contra a democracia, pedindo o retorno da ditadura militar, especialmente se considerarmos que muitos parlamentares dos partidos de oposição participaram destas manifestações.
Lembro que a ditadura militar fechou o Congresso, razão pela qual as motivações dos grupos que defendem o retorno reacionário estão muito distantes de uma eventual perda de espaço pelo Parlamento para a participação popular.
A discussão entre Plebiscito ou Referendo, entre Consulta Pública ou Emenda direta pelo Congresso é muito mais do que um jogo de palavras ou de conceitos jurídicos. É um debate sobre titularidade da soberania e sobre as possibilidades de uma manifestação direta dos cidadãos e cidadãs (como ocorre num Plebiscito, por exemplo). Não consigo ver como razoável que parlamentares falem em “admitir o referendo”, quando este, assim como o plebiscito, são instrumentos de Democracia Direta comumente utilizado em países como Suíça, Estados Unidos, Austrália e Uruguai, todos democracias avançadas e consolidadas.
O chamamento de plebiscitos e a autorização de referendos são competências exclusivas do Congresso Nacional (art. 49, XV, CF/1988). Isso não quer dizer que a participação da sociedade nos processos de decisão deve ficar restrita a estes limites.
O Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001) prevê a participação social como elemento obrigatório para a construção e implementação da política urbana. No mesmo caminho, a Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 –, ao afirmar que a transparência da política fiscal será assegurada pela participação popular em audiências públicas:
Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos.
Parágrafo único. A transparência será assegurada também mediante: (Redação dada pela Lei Complementar nº 131, de 2009).[13]
I – incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos; (Incluído pela Lei Complementar nº 131, de 2009).
II – liberação ao pleno conhecimento e acompanhamento da sociedade, em tempo real, de informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e financeira, em meios eletrônicos de acesso público; (Incluído pela Lei Complementar nº 131, de 2009). (GRIFAMOS)
E aqui temos um novo aspecto importante da participação social, que é a sua função para aumentar a transparência na administração pública e combater a corrupção.
Foi por este motivo que utilizei o neologismo “Povofobia”, em ensaio realizado ainda na época de formação acadêmica, “o medo que determinados grupos sociais dominantes possuem da participação direta da população nos processos decisórios da administração pública”[14].
Na época o Brasil ainda atravessava um período de transição e ainda eram visíveis as dificuldades para a implementação de instrumentos de democracia direta ou participativa nas diversas esferas de poder, como o Orçamento Participativo, a Agenda 21, o Plano Diretor Participativo, dentre outros.
Como ensina Marilena Chauí, ainda sofremos em diversos setores com a herança da sociedade colonial, onde imperava uma “cultura senhorial” de mando-obediência, onde jamais o cidadão era visto como sujeito de direitos, como subjetividade ou alteridade[15].
Em oposição a um modelo de participação cidadã, alguns membros das classes dominantes, como os Parlamentares que atacam as medidas de racionalização da ação administrativa e da participação direta dos eleitores nos processos de decisão, preferem o uso de relações de cumplicidade ou compadrio, do clientelismo e de cooptação. E isso é muito grave, pois limita transformações necessárias em vários setores da sociedade.
Muitos ocupantes de cargos eletivos se acham donos dos mandatos, trocam de partido e de programas com uma facilidade incomum. Buscam, reiteradamente, mecanismos que afastem o controle disciplinar dos partidos pelos quais foram eleitos, e fazem funcionar gabinetes de representação como se fossem cartórios para a solução de pequenos problemas legais, muito doa quais facilmente resolvíveis de forma impessoal e transparente nos sistemas públicos de atendimento, como a obtenção de aposentadorias ou de documentos pessoais.
Nas palavras do sempre brilhante jurista e Ministro do STF Luís Roberto Barroso, “o agente público, assim, moralmente descomprometido com o serviço público e sua eficiência, age em função da retribuição material e do prestígio social”[16].
O resultado desse processo é uma sensação de empobrecimento e de esvaziamento da política. Da perda do seu sentido transformador para um jogo de interesses pessoais e privados.
Criar um espaço teatral para o espetáculo de ressentimentos na calada da noite, como na triste votação da Câmara dos Deputados no dia 29 de outubro de 2014, é apenas uma prova retumbante da necessidade de urgente Reforma Política.
Retomando os ensinamentos do mestre Friedrich Müller, amparado na sua própria experiência de perda de identidade social do Parlamento Alemão, o “demos” (povo) de Democracia, deve se conjugado sempre com o “kratein” (governar)[17]. A Democracia é, na sua concepção originária grega, “demos” + “kratein”. É “governo do povo”.
Querer reduzir o espaço de participação direta da população nas deliberações públicas não é “uma vacina contra o totalitarismo”, como afirmaram alguns Deputados direitistas mais exaltados em 29 de outubro passado, e sim um ataque direto contra a essência da Democracia que é a manifestação direta da vontade popular.