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A axiologia do conceito de moralidade administrativa tendo por base sua posição no sistema jurídico brasileiro

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Agenda 01/12/2000 às 00:00

1 INTRODUÇÃO

Colima-se neste ensaio empreender exposição, com extensão de uma primeira aproximação propositiva, acerca da axiologia envolvida no conceito de moralidade administrativa.

A questão da moralidade administrativa, sob um ângulo de exame meramente objetivo, sempre foi estudada em estrito vínculo com a legalidade formal, em face de um largo conceito de discricionariedade administrativa que eximia, a mais das vezes, o exame valorativo do ato administrativo de outras instância que não a própria instância administrativa. Ainda hoje a idéia é predominante.

De seu lado, a legitimidade do direito e de sua aplicação, em termos positivistas, igualmente, viu-se resumida aos requisitos da prévia existência de autoridade legítima e procedimento legal, num sistema auto-referencial nos moldes da pirâmide kelseniana.

Na primeira parte do trabalho tratamos exatamente da existência de uma tessitura axiológica que recobre o corpo social, sendo dela que exsurgem os padrões de legitimidade, verificando que a ingerência da democracia fez emigrar a legitimidade do direito e, conseguintemente, das ações do Estado, da mera força coativa para a capacidade de aceitação social do direito posto.

Decerto, não se pretende traçar um percurso histórico desses fenômenos, pela própria natureza e finalidade do estudo, lançando-se, a priori, as informações a título de premissas para a conclusão à qual se ambiciona chegar.

A segunda parte é dedicada diretamente à moralidade administrativa.

O exame principia por breves explanações de ordem histórico-conceituais, principalmente o conceito traçado por Hauriou que influenciou toda a construção teórica acerca do instituto.

As referências de natureza normativa todas são extraídas do sistema brasileiro.

De posse do conceito tradicional de moralidade administrativa procede-se à exposição acerca da axiologia desse conceito buscando especificar até que ponto ele se contém nos limites da legalidade e legitimidade expostos, em suma, até que ponto o conceito de moralidade administrativa é (ou deve ser) informado pelos valores sociais.

No tempo que corre, não só no Brasil, mas em todo o mundo, com o fortalecimento da estrutura do estado de cunho democrático e o fim dos regimes de força, as administrações públicas se vêem cobradas pelo povo ao qual serve. Do administrador exige-se qualidades morais para o trato da res publica. A boa administração é, cada vez mais, além de administração eficiente, administração honesta.

Nesse passo, o princípio da moralidade administrativa é, sem dúvida, o lugar (topoi) próprio de discussão de temas de tal jaez, com o que este trabalho pretende colaborar.


2 MORALIDADE SOCIAL

Toda a organização social se concretiza através da formação da tessitura de inter-relações humanas, o que é viabilizado pela objetivação de valores, ideais e pensamentos através da linguagem, da comunicação.

Como a existência do homem, que ocorre nesse espaço social, encontra-se originalmente vinculado a uma escassez de bens em face das necessidades que se apresentam, a conseqüência é o surgimento de conflitos, vivendo a liberdade humana o paradoxo de ter que se limitar para poder existir (1). Tal fato somente se torna possível através da deliberação e do acordo acerca dos valores envolvidos.

O resultado desse processo é um conjunto de noções éticas que pressupõem uma idéia de correção na opção do agir em face dos fins eleitos (de forma apriorística o convício social), sendo essa possibilidade de escolha ponto distintivo entre os homens e os demais animais que se encontram manietados ao instinto. Ao complexo desses padrões podemos denominar, num sentido bem largo, de moralidade.

Moral, ético, portanto, é o que não infringe os valores reinantes em um determinado contexto social e histórico, é o que não vai de encontro ao senso comum arraigado no corpo social. Nisso, a atividade humana rege-se, num primeiro e geral momento, por este sentido de moral, que é histórico: o que é de acordo com a moral em um determinado momento poderá não sê-lo em outro. (2)

O direito surge como instrumento coativo de organização do corpo social, o qual, nem todo lavor do cientificismo positivista (3), foi suficiente para tornar dimensão estanque e perfeitamente isolada da moral, porquanto, determinado conteúdo ético sempre se fez presente seja na atividade de nomogênese legal seja na aplicação do ordenamento advindo dessa atividade criadora. O legalismo estrito cada vez mais é lançado ao limbo do desuso.

Não cabe, na latitude deste ensaio, um exame da relação entre o direito e a moral, sendo o suficiente constatar que, no tempo que corre, é indisputável o fato de que as interferências entre o direito e a moral são de grande monta.


3 LEGALIDADE, LEGITIMIDADE, DIREITO E MORALIDADE ADMINISTRATIVA

A visão legalista, onde na mera legalidade formal se continha a legitimidade do sistema jurídico, vem se amainando, ou, como bem coloca Diogo de Figueiredo Moreira Neto (MOREIRA NETO, 1992:2):

"... as dimensões éticas do Estado contemporâneo se viram imensamente ampliadas no correr deste século, não só com a definitiva sedimentação da legalidade, essencial à realização do Estado de Direito, mas com o viçoso ressurgimento autônomo da legitimidade, essencial à realização do Estado Democrático e, ainda, como conquista in fieri, a introdução da licitude, também como valor autônomo, capaz de levar à realização do Estado de Justiça no próximo milênio." (Grifos do original)

Por certo, a ingerência da democracia fez emigrar a legitimidade do direito e, conseguintemente das ações do Estado, da mera força coativa para a capacidade de aceitação social do direito posto.

Se é certo, consoante afirma Tércio Sampaio Ferraz Júnior (FERRAZ JÚNIOR, 1994: 349 et seq), que a questão da legitimidade é um jogo sem fim, sendo este jogo, no campo do direito, não só sem fim mas igualmente sem início pois estamos nele inseridos desde o nascimento tendo nossas condutas atreladas ao princípio: "o que não é proibido é permitido", cingindo-se, desse modo, a questão, somente em "saber se é possível avaliar o jogo jurídico, dizer se ele está sendo corretamente jogado (se é justo ou injusto), ou seja, se é possível dizer de dentro do direito quando cessa haver direito" (FERRAZ JÚNIOR, 1994:349); também o é que a legitimidade se constitui o lugar comum (topoi) de discussão sobre a relação direito e valores.

Simplesmente vincular tal conceito (legitimidade) ao de legalidade formal é negar, de forma a priori, a realidade axiológica do direito, fechando-se o campo de debate.

Da mesma forma, sem dúvidas, a legitimidade do agir do estado não pode ater-se somente à regularidade da investidura do agente estatal, bem como sua conformidade meramente formal à lei.

Impossível deixar de constatar que o direito positivado, como produto cultural que é, nada obstante conduza carga valorativa presente no corpo social, "alberga uma série de elementos históricos, circunstanciais, com finalidades concretas, singulares, condicionadas a situações particulares e pode encarnar somente de forma imperfeita os valores que colima realizar" (4) (SICHES, 1997: 30). Posto isso, a mais das vezes, nos deparamos com leis que abrigam interesses de determinados indivíduos ou grupos.

Não é por outras dificuldades que a validade do direito na maioria dos casos e para manter interesses particulares dos detentores do poder, tem assumido conotação meramente formal, devendo a norma ter subjacente, unicamente, autoridade competente e procedimento previsto em lei.

Contudo, essa visão monolítica que somente considera a fonte e a forma, extraindo da própria legalidade formal a legitimidade não se sustenta. Irrepreensível a colocação de Eros Roberto Grau (GRAU, 1998:60) de que não é o direito posto (positivado em determinado momento histórico) que dá legitimidade aos interesses e aspirações sociais, mas o contrário.

Nessa toada, cada vez mais se instala no setor jurídico a consciência de uma validade legal material, do que é exemplo a idéia de devido processo legal substancial que exige, no próprio processo legislativo, não só o atendimento ao aspecto procedimental, mas aos valores e princípios constitucionais como o princípio da proporcionalidade, e, no direito administrativo, particularmente, o princípio da moralidade com a exigência de probidade no trato da coisa pública.

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Deveras, a aplicação do direito não se esgota na subsunção do fato ao contexto semântico obtido na fria literalidade da lei, mas, o movimento hermenêutico e de aplicação do direito, de forma inegável, vem tomando o rumo ditado pelo conjunto dos valores sociais imperantes (5). É na tábua desses valores que deve beber tanto o legislador quanto o aplicador do direito em suas respectivas atividades.

O agente estatal, vinculado que está à lei, quando age, também aplica o direito, devendo, igualmente, nessa atividade, ser informado por esses elementos, para que possa fazê-lo legitimamente, é dizer: o seu agir não basta ser legal, mas deve também ser legítimo em face dos valores que ditarão sua aceitação ou não.

É tal entendimento, portanto, que surgiu como a condição de possibilidade do que, já em 1951, Antonio José Brandão (BRANDÃO, 1951: 454) chamou de movimento de moralização do direito caracterizado pela submissão da atividade jurídica a preocupações de natureza moral, sendo nesse contexto que se inicia a formulação dos conceitos de moralidade administrativa e improbidade administrativa.

Logo, o estudo da moralidade administrativa e o seu consectário, a probidade administrativa, situa-se exatamente nas facetas do exercício do poder, ou seja, em definir a forma como seus elementos foram apreendidos firmando seus lindes conceituais e axiológios mesmo que eles não se prestem a uma definição precisa.


4 MORALIDADE ADMINISTRATIVA

4.1 Considerações gerais

A noção ética de moralidade (atendimento a valores), já afirmamos, impregna-se em todos os campos do agir humano e em suas formas de organização.

A moralidade além de princípio ético geral do agir humano, ganha conotação jurídica quando transposta em noções, nunca precisas e acabadas, para o ordenamento positivo, no que podemos dizer que o direito é atingido por ela de "fora" e de forma intestina.

Vários institutos de direito refletem noções essencialmente morais, como o abuso de direito, vedação ao enriquecimento ilícito, a boa fé, honestidade e quejandos.

De seu lado, constata-se que qualquer noção de administração pública envolve a idéia de gestão da res publica, que pressupõe a idéia de gestão cujo o escopo é o empreendimento de fins também publicamente considerados. (6) (7)

Se assim o é, como supedita Diogo de Figueiredo Moreira Neto (MOREIRA NETO, 1998:9), a definição do interesse que deve mover tal atividade passa necessariamente pela axiologia informadora da legitimidade e da legalidade, consideradas em suas interferências, no que são imprescindíveis as palavras do autor:

"A captação política dos interessados da sociedade é imediata e define a legitimidade, enquanto a cristalização jurídica desses interesses é mediata e define a legalidade.

Historicamente, a legitimidade precedeu a legalidade e, por vezes, a legitimidade foi ilegal e a legalidade foi ilegítima, numa evolução secular, ora paralela, ora divergente e ora convergente, conforme as épocas e as sociedades, até que se fez sentir uma novíssima necessidade social; a de conciliá-las, pela submissão de todos os processos políticos ao Direito. Com a consciência desse fundamental interesse foi possível estruturar-se uma organização política submetida simultaneamente à lei – o Estado de Direito – e ao interesse social prevalecente – o Estado Democrático – fundidos no conceito constitucionalizado de Estado Democrático de Direito"

A submissão da ação política ao Direito trouxe, como imediata conseqüência, a unificação dos interesses sociais politicamente definidos e dos interesses sociais juridicamente definidos de nossa sociedade surgindo o conceito de interesse público com as características que hoje conhecemos: interesses coletivos gerais que a sociedade comete ao Estado para que ele os satisfaça, através de ação jurídica politicamente fundada" (MOREIRA NETO, 1998: 13).

Expõe Eduardo García de Enterría (ENTERRÍA, 1996:40 et seq), reportando-se a Forsthoff, que a mera legalidade formal administrativa, como técnica de garantia da liberdade, consoante concebida no século anterior, não mais apresenta necessária suficiência, pois pressupõe a concepção de uma vida social autônoma à administração, inexistente em um estado que se imiscui em todos os âmbitos da sociedade, nisso, a simples idéia de que a atividade da administração está vinculada somente pelos meios e limites formais e não igualmente por seus fins leva a uma situação de exclusão substancial da administração do âmbito do direito.

A administração, por conseguinte, repise-se, mais e mais, vem sendo, no seu agir, submetida não só a regras formais, mas a princípios materiais de direito, que, antes de normas de direito são normas de justiça, de conteúdo axiológico e, como firma García de Enterría (ENTERRÍA, 1996, 41):

"han de operar eminentemente, además de en la vitalizacíon y articulacíon del complejo de disposiciones escritas, y en su aplicacíon ponderada, allí donde estas disposiciones precisamente nada dicem:conceptos jurídicos indeterminados, ceptos normativos, standasds de conducta, discrecionalidad, poderes inherentes, cláusulas generales; estos fenômenos comunes de la técnica normativa se dan también y en grado especialmente intenso, en el ámbito del Derecho administrativo, donde, además, al quedar confiado em relleno de los mismos o su ejercício (como en el caso máximo de la discrecionalidad, y dentro de ella el de los poderes normativos) a la Administracíon en cuanto sujeto, que, como tal dispone e interfere unilateralmente las esferas jurídicas de los ciudadanos, la exigência de una implantación de tales fenómenos en la justicia material se presenta con especial energía."

O legislador constituinte brasileiro atento a esses fenômenos, de forma expressa no artigo 37 da CR, submeteu a administração pública, em sua totalidade, não só ao princípio da legalidade, mas ao da impessoalidade, publicidade, moralidade e eficiência.

A nós interessa mais de perto o princípio da moralidade cujo conteúdo passamos a examinar partindo de seus elementos histórico-conceituais.

4.2 Considerações histórico-conceituais

Esclarecemos que a possibilidade de consideração de elementos valorativos, axiológicos no âmbito jurídico se colocou como corolário do movimento de moralização do direito, que ajudou a determinar a superação da estanque separação Kantiana entre direito e moral e da noção positivista de ciência.

Em suma, e arrematando, considerações axiológicas não são estranhas ao raciocínio aplicador da lei seja no âmbito jurídico seja no administrativo.

Propriamente em temas jurídicos, noção de natureza moral, manifestada de forma simbiótica a institutos de direito tem seus primórdios na doutrina do abuso de direitos e da vedação de enriquecimento ilícito. Na seara administrativa o ponto de partida foi a doutrina do desvio de poder (BRANDÃO, 1951:456).

No campo da administração pública, nos diz Antonio José Brandão (BRANDÃO, 1951: 456-458), que a moralidade, como elemento principiológico de suas ações, foi primeiro referida por Hauriou. Esclarece que este jurista, no acórdão do Conselho de Estado de sua lavra, no caso Gommel, Sirey, se pronunciou:

"a legalidade dos atos jurídicos administrativos é fiscalizada pelo recurso baseado na violação da lei; mas a conformidade desses atos aos princípios basilares da "boa administração", determinante necessária de qualquer decisão administrativa, é fiscalizada por outro recurso, fundado no desvio de poder, cuja zona de policiamento é a zona da "moralidade administrativa" (8).

Hauriou, contudo, prossegue Antonio José Brandão, somente definiu o seu conceito de moralidade administrativa algum tempo depois, já na 10a edição da obra "Précis" , nos seguintes termos:

"conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da administração" (BRANDÃO, 1951:457).

No Brasil, informa Caio Tático (TÁCITO, 2000:1), sua presença em norma de cunho constitucional foi uma realidade no Decreto n. 19398 de 11 de novembro de 1930, instituidor do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, cujo artigo 7o mantinha as leis, obrigações e direitos da esfera pública em vigor "salvo os que, submetidos a revisão, contravenham o interesse público e a moralidade administrativa".

Depois de desaparecer do cenário positivo constitucional que se segue ressurgiu com destaque na Constituição Federal de 1988.

Em termos doutrinários, se aponta o pioneirismo de Manoel de Oliveira Franco Sobrinho com a obra "Controle da Moralidade Administrativa" (Cf. FIGUEIREDO, 2000:51), na qual se lia:

"Muito embora não se cometam falhas legais, a ordem jurídica não justifica no excesso, no desvio, no arbítrio, motivações outras que não encontram garantia no interesse geral, público e necessário;... o que se quer defender é a lisura ou a exação nas práticas administrativas;... a presunção de fim legal equivale à presunção de moralidade" (apud, MEDAUAR, 1998:137).

4.3 Conteúdo axiológico do conceito de moralidade administrativa

O desenvolvimento do conceito de moralidade administrativa se deu relacionada à teoria do desvio de poder o que fez com que seu atendimento ou não fosse perceptível na intenção do agente, ou seja, tanto no desvio de poder quanto na imoralidade "o agente se utiliza de meios lícitos para atingir finalidades metajurídicas irregulares" (PIETRO, 1997:68). Nisso a identificação da imoralidade administrativa a uma das formas de ilegalidade (PIETRO, 1997:70).

Se em algum momento da análise do sistema jurídico nacional tal conclusão foi possível, este não mais sobrevive com a fundação da ordem levada a efeito pela Constituição de 1988.

O princípio da moralidade administrativa veio expresso de forma autônoma no artigo 37, que traz ao seu lado o princípio da legalidade, fato que, de logo, impede uma identificação ou absorção de um pelo outro, sob pena de destituir de conteúdo a regra constitucional.

Ademais, a moralidade administrativa não tem única previsão nesse artigo, regendo o inciso LXXIV do artigo 5o que: "qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa". No parágrafo nono do artigo 14, a moralidade é protegida com a determinação da estipulação de hipóteses de inelegibilidade visando o seu resguardo: "Lei Complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato".

Considerando-se, de forma a priori, sem maiores discussões sobre o tema, a probidade administrativa como uma das faces da moral administrativa, constatamos várias outras disposições, o artigo 85 da CF considera como crime de responsabilidade do Presidente da República os atos que atentem contra a probidade administrativa; o parágrafo quarto do artigo 37 sanciona os atos de improbidade com a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário.

A par das disposições constitucionais, várias normas infraconstitucionais tem sido editadas impulsionadas pela idéia de moralização da atividade da administração como, mais hodiernamente, a Lei da Improbidade Administrativa, Lei n. 8.429/92, a LC 101/2000, que regulamenta os atos de gestão fiscal e a Lei n. 10.028/2000 que define os crimes de responsabilidade fiscal.

Não se tem, por conseguinte, como considerar procedente espelhar o princípio da moralidade na legalidade, o que fica claro nas palavras do Ministro do STJ Demócrito Reinaldo, citado por Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho (SARAIVA FILHO, 1996: 126):

"O constituinte, portanto, estabeleceu nítida distinção: juridicizou a moralidade, definindo-a como princípio, para viger, paralelamente, com o da legalidade. A distinção é evidente e necessária. A moralidade administrativa integra o direito (constitucional) como elemento de observância indeclinável (irretorquível), mas não está ínsita na legalidade, nem desta constitui corolário. O legislador constituinte, ao instituir o princípio, não cuidou de mero reenvio da norma legal a norma moral, mas atribui à moralidade administrativa relevância jurídica, de eficácia plena e mandamental autônoma – e de vida própria."

Por seu lado, pontua Ives Gandra da Silva Martins (MARTINS, 1996:18), após alçar o princípio da moralidade ao posto de mais importante princípio a nortear a atividade do administrador público, que os demais princípios, legalidade, impessoalidade e publicidade (9), sim, acabam por "desaguar na moralidade pública", contrariamente ao que se entendia, ou seja:

"Dizer, pois, que os administradores devem cumprir a lei é reiterar formulação essencial e postada no mais relevante artigo da Constituição Federal que é voltada ao cidadão mais do que àqueles que devem servir.

Por outro lado, determinar que o administrador público deve ser impessoal, pois está à disposição da sociedade, não podendo privilegiar amigos, parentes ou interesses em detrimento do bem servir, é afetar faceta da ética administrativa, sendo, pois, a impessoalidade dimensão parcial da moralidade.

O mesmo se dá com o princípio da publicidade. Exceção feita às questões de segurança nacional, os atos administrativos devem ser transparentes, não se admitindo decisões escusas, resoluções de gaveta, visto que o administrado não pode desconhecer as regras da administração." (MARTINS, 1996:18-20)

Ademais, mormente no Brasil, no tempo que corre, há um verdadeiro clamor popular no sentido de coibir os atos que atentem contra os valores públicos, e evitem o uso da administração em proveito pessoal.

Portanto, é tendo em vista esse contexto de idéias que se deve buscar o campo conceitual de moralidade administrativa e a forma como ela deve vincular a atividade administrativa, o que dependerá da eficiência das formas de controle previstas, o não será examinado nesta instância. Valendo entretanto afirmar que, tratando-se de princípio, é norma primeira, axiológica, que deve informar todo o sistema legal (mormente o administrativo), cujo atendimento é pressuposto de validade dos atos jurídicos levados a efeito.

Existindo vigentes, como constatamos, no envolver da tessitura social, todo um amálgama de valores morais entrelaçados e dominantes, será que o que chamamos de moral administrativa com este se confunde ou há uma moral propriamente administrativa? É o que coimamos responder.

Hauriou, resume Sergio de Andréa Ferreira (FERREIRA, 2000: 126), referiu-se à moralidade administrativa

"mencionando, de início, a conformidade com os princípios basilares da boa administração, ao conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração, da sua disciplina interna; para, depois, sucessivamente, aludir ao ultrapasse do controle da legalidade estrita, a fim de se atingir uma moral jurídica, eis que quem toma decisões tem de escolher, não só o legal em face do ilegal; o justo, frente o injusto; o conveniente, em desfavor do inconveniente,mas também o honesto, diante do desonesto".

Hauriou reconhecia, portanto, que existia no seio da própria administração um conjunto de regras que formavam uma espécie de axiologia institucional que não se confundia com a moral comum.

A partir desse entendimento a doutrina administrativista urdiu o conceito de moralidade administrativa que vem sendo o dominante e que dele não destoa. Para seu melhor entendimento imprescindível o percurso traçado por Diogo de Figueiredo Moreira Neto (MOREIRA NETO, 1992: 7-9).

Partindo do conceito de Hauriou, alerta ele que duas premissas devem ser trazidas à balha, por primeiro a distinção bergsoniana entre moral aberta e moral fechada, aquela própria da dimensão anímica do indivíduo, que está em sua consciência a lhe ditar o bem e o mal, esta, gerada dentro de uma coletividade, dentro de um grupo, manietada aos fins deste grupo; por segundo, a noção dada por Weber de moral de intenção, que seria aquela considerada a partir da vontade do agente, e moral de resultado cuja constatação é feita a partir da objetivação da vontade na ação e seu resultado, ou seja, na consentaneidade entre a ação e o fim que lhe informa na origem. A moral administrativa seria fechada e de resultados.

Nesse contexto, para Hauriou a administração é engendrada com caráter institucional, dirigida a um fim, logo:

"A subordinação do poder público a esta função possui caráter institucional; por sua vez, a atividade daqueles, que servem à administração, denota caráter funcional: o poder público encontra-se ao serviço da idéia madre, dela retirando o programa da ação a desenvolver; as atividades dos administradores, se utilizam meios jurídicos e técnicos, destinam-se, por sua vez a lograr, como resultado, a prestação de um serviço de interesse geral e, por isso, realizam uma função enquanto concretizam a idéia diretriz. (BRANDÃO, 1951:458)

Posto isso, conclui Diogo de Figueiredo (MOREIRA NETO, 190:08), a moral administrativa: trata-se de um sistema de moral fechada, próprio da Administração Pública, que exige de seus agentes absoluta fidelidade à produção de resultados que sejam adequados à satisfação dos interesses públicos, assim por lei caracterizados e a ela cometidos.

Conseguintemente, a moral administrativa seria aquela própria de uma coletividade institucionalizada, e, assim sendo, organizada em função de determinado fim, daí a funcionalidade de seus agentes; por outro lado, a moral administrativa se situa não animicamente na intenção do agente, mas, sendo uma moral de resultados, na sua conduta objetivamente considerada em face dos fins propostos.

Não cremos, contudo, que o alcance do princípio da moral administrativa deva se resumir na sua formação no seio da instituição que é administração, em face de seus fins funcionais.

Cada vez mais, o que se exige em face da moralidade administrativa é justiça e probidade que não têm medida somente no espaço interno da administração. Decerto, passe o truísmo, não se pode falar de um justo administrativo ou de um honesto administrativo diferente de um justo ou um honesto no corpo social.

A administração pública é sim dirigida por fins próprios, entretanto, fins cujo conceito deve ser preenchido por elementos apreendidos no tecido axiológico social, sob pena de se constituir em puro regime de força.

A Constituição Federal do Brasil reconhece que o povo é a fonte da qual emana o poder político, logo, o rei é por ele posto, e, nesse passo, deve ser deposto se não assume o verdadeiro papel de delegatário do poder, espancando de sua frente insteresses outros que não os do delegante.

O mero critério teleológico, entretanto, não é suficiente para se dizer que o ato administrativo está ou não de acordo com a moral administrativa, o ato não pode ser somente finalisticamente moral, mas o deve ser ontologicamente.

Vale, nesse ponto, a transcrição de dois momentos da doutrina de Carmen Lúcia Antunes Rocha:

"

a razão ética que fundamenta o sistema jurídico não é uma "razão de Estado". Na perspectiva democrática, o direito de que se cuida é o direito legitimamente elaborado pelo próprio povo, diretamente ou por meio de seus representantes. A idéia da qual se extraem os valores a serem absorvidos pelo sistema jurídico na elaboração do princípio da moralidade administrativa é aquela afirmada pela própria sociedade segundo suas razões de crença e confiança em determinado ideal de Justiça, que ela busca realizar por meio do Estado." (ROCHA, 1994:190)

"o Estado não é a fonte de uma Moral segundo suas próprias razões, com se fosse um fim e a sociedade um meio. O Estado é a pessoa criada pelo homem para realizar os seus fins numa convivência política harmônica. Quando e onde o Estado arvora-se em fonte de uma moral e transforma-se em um fim, não há, ali, qualquer moral prevalecendo, pois o que em seu nome se pratica não pode ser assim considerado pela circunstância de que ali estará a aplicar regras antidemocráticas, de voluntarismo do eventual detentor do poder, sem preocupação com o ideário jurídico da sociedade". (ROCHA, 1994:191)

Ora, não há um fim da administração fora do fim do corpo social que se possa considerar legítimo.

É preciso construir-se o que podemos chamar de conceito democrático de moralidade administrativa, o que somente pode ser feito de fora para dentro da administração, pelo povo e seus valores.

Enfim, a moralidade que deve revestir o ato administrativo não é distinta da que deve revestir qualquer delegatário de poder político, sendo antes que uma moral própria e interna da administração, uma moral informada pelos valores, entre eles a justiça e honestidade, reinantes no meio social.

É óbvio que hão de se formar valores internos à administração, os quais, todavia, se distintos, soçobrarão em conflito aos valores sociais.

Por certo, a finalidade é ponto essencial à mensuração da adequação moral dos atos administrativos, por óbvio, não lhe sendo subjacente finalidade pública será ele ilegal por desvio de finalidade. Mas, consoante podemos inferir, o critério não mostra suficiência quando tratamos de legitimidade que aqui também se quer considerada como pressuposto de validade do ato administrativo.

Possível crítica fundada na falta de segurança jurídica, valor ao qual ainda hoje o sistema legal elege como prioritário, na seara de aplicação do Direito, principalmente quando da submissão do ato à apreciação judicial, no particular, não se sustenta.

Decerto, não há critérios objetivos a traçar, mesmo porque isso não é possível na dimensão tratada, a axiológica, mas, por outro lado, como fugir a ela?

Ademais, não é característica própria dos princípios uma fluidez conceitual, um grau de abstração elevado, os quais "por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras", sendo eles "standars juridicamente vinculantes radicados nas exigências de justiça (Dworkin) ou na idéia de direito (Larenz)" (CANOTILHO, 1998: 1034).

Portanto, esses elementos são próprios do exame que se faz, e o contra-argumento, em prolepse referido, é falso, porquanto a moralidade como norma principiológica não ganha concretização em si mesma, cabendo aos delegatários do poder político mediarem a sua aplicação.

Enfim, cumprida a singela função suscitadora da questão, podemos, no epílogo, concluir que a moralidade, sendo princípio constitucional, envolve juízo tanto de legalidade formal quanto de legitimidade formulado com base na tábua de valores socialmente vigentes, ao que deve estar atento o agente administrativo no exercício de sua atividade.

Em tal prumo, o atendimento à moralidade administrativa é condição de validade do ato administrativo, suscetível de controle pelo Poder Judiciário.

Sobre o autor
Lino Osvaldo Serra Sousa Segundo

advogado em São Luís (MA), professor do Centro Universitário do Maranhão (CEUMA), pós-graduado em Processo Civil pela AEUDF, mestrando em direito pelo CEUMA/UFPE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA SEGUNDO, Lino Osvaldo Serra. A axiologia do conceito de moralidade administrativa tendo por base sua posição no sistema jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 48, 1 dez. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/339. Acesso em: 23 dez. 2024.

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