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A Teoria da Justiça segundo John Rawls

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Agenda 18/02/2016 às 13:08

5 Algumas noções  sobre a crítica comunitária.  

Michael Walzer foi um dos filósofos pertencentes ao que se denomina Escola Comunitária – oposta à Escola Liberal – que, ao lado de outros doutrinadores tais como Michael Sandel, Charles Taylor e Alasdair MacIntyre, logrou produzir uma das críticas mais notáveis à teoria liberal de John Rawls. Antes de analisar em que, exatamente, a vertente comunitarista de Walzer se afasta do liberalismo rawlsiano, convém fazer alguns comentários sobre sua doutrina.

Em sua principal obra, Esferas da Justiça, Walzer estabelece como premissa que a sociedade humana é uma comunidade distributiva em que a pluralidade de bens que são produzidos e divididos entre seus membros é distribuída por essa mesma comunidade segundo uma multiplicidade de procedimentos, agentes e critérios.[43]

Portanto, assim como existem diversos bens socialmente produzidos e uma multiplicidade de procedimentos e agentes de distribuição, há também uma pluralidade de princípios da justiça. Cada bem social corresponde a uma diferente esfera distributiva, também denominada esfera da justiça, e dentro desta esfera apenas um critério é adequado para regular a sua distribuição. Exemplos de esferas da justiça são a educação, os cargos públicos, o dinheiro, a seguridade, dentre outros. Os diversos critérios de distribuição podem ser exemplificados com a necessidade, o merecimento, o livre comércio, a qualificação etc.

Articulando as esferas da justiça com seus respectivos critérios ou princípios distributivos, tem-se, a título de exemplo, que o justo critério para sofrer uma punição ou receber honrarias é o mérito; para se ter educação superior, o talento; assistência médica pública é fornecida mediante o critério da necessidade; a riqueza será adquirida pelos critérios da habilidade, do trabalho e da sorte no mercado.[44]

Walzer, então, postula que a distribuição dos bens sociais deve ser feita de maneira diversa, de um modo tal que cada bem seja distribuído, dentro da sua própria esfera distributiva ou da justiça, por razões diferentes e de acordo com agentes e procedimentos variados. O que ocasiona toda esta diferença – de bens, distribuição, procedimentos e agentes – é, segundo o filósofo, o particularismo histórico e cultural, de acordo com o qual os bens sociais adquirem significados diferentes em cada sociedade.[45]

O corolário dessa variedade de sentidos que os bens sociais possuem, em diversas sociedades, em razão particularismo histórico e cultural, é o fato de que a distribuição desses bens deve ser autônoma.[46] Assim, como cada bem social ou grupo de bens sociais se identifica com uma esfera distributiva específica em que somente um critério é apropriado, resulta que não pode haver uma invasão de uma esfera em outra. Desta forma, afigura-se totalmente inadequado que, por exemplo, o dinheiro adentre a esfera dos cargos sacerdotais, do mesmo modo que, no mercado de consumo, as qualidades exigidas para a vocação eclesiástica não podem representar qualquer vantagem. Eventual aplicação de critérios típicos de uma esfera em outra constitui uma injustiça.

Portanto, em virtude da diversidade de significações atribuídas aos bens sociais, as respectivas distribuições somente podem ser axiologicamente julgadas quanto à sua justiça ou injustiça em relação ao significado social de cada bem. Logo, a justiça distributiva é atingida apenas por meio da interpretação desse significado. Para Walzer, “nós procuramos princípios internos para cada esfera distributiva”.[47]

Walzer faz uma importante distinção entre igualdade simples e igualdade complexa, afirmando que, na primeira, o bem social dominante não seria monopolizado por ninguém, mas igualmente distribuído por todos. Desta forma, pode-se imaginar uma sociedade em que, por exemplo, tudo está à venda e todas as pessoas têm a mesma quantidade de dinheiro, sendo este o bem dominante. Argumenta, contudo, que este regime de igualdade está fadado a desaparecer porque o desenvolvimento da conversão de bens, isto é, a livre troca no mercado, acabará resultando em desigualdades. Por exemplo, nesta sociedade imaginária em que os indivíduos são igualmente abastados, todos podem pagar pelos estudos de seus filhos, mas somente alguns irão investir em educação. Mais tarde, as pessoas irão perceber que gastar com educação se tornou um bom investimento, já que outros bens sociais são acessíveis apenas àqueles indivíduos que têm um certo grau acadêmico, o que fará com que todos passem a investir em educação ou, alternativamente, esta seja oferecida a todos por meio da implementação de um sistema tributário voltado a custeá-la. Então, a escola se transforma em um ambiente extremamente competitivo no qual o bem social dominante já não é mais o dinheiro, e sim o talento natural e as habilidades que as pessoas possuem ou desenvolvem em algumas áreas. Em conseqüência, o sucesso e o grau acadêmicos serão monopolizados por um grupo de pessoas talentosas, que, por sua vez, reivindicará que o bem social que controla deva ser dominante também fora da escola, devendo, assim, monopolizar cargos públicos, prerrogativas, riqueza etc, resultando numa desigualdade que somente poderia ser quebrada pela constrição do poder monopolizador das pessoas talentosas.[48]

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No regime de igualdade complexa, ao contrário, há vários bens sociais que até são monopolizados – como realmente ocorre nas sociedades – mas não existe um bem dominante passível de ser convertido em outros bens, já que são eles distribuídos em esferas diferentes. Desta forma, muito embora haja pequenas desigualdades, estas não serão multiplicadas por meio do processo de conversão, pois este não ocorrerá. Haverá, portanto, diversos monopólios de bens sociais que serão mantidos dentro da esfera de competência e controle de pessoas comuns, conseqüentemente impedindo eventual conversibilidade.[49]

O regime de igualdade complexa, na visão de Walzer, se contrapõe ao que ele denomina tirania, em razão de estabelecer um conjunto de relações que impossibilita a dominação, pois que um indivíduo situado em uma esfera relativa a um bem social específico não é prejudicado em outra esfera referente a um bem diverso. Exemplificando, afirma Ricardo Lobo Torres, em sua interpretação da referida obra de Walzer, que:

O cidadão X pode ser escolhido, em vez do cidadão Y, para um posto político e então os dois serão desiguais na esfera política; mas não haverá desigualdade enquanto a posição de X não lhe der vantagens sobre Y em outras esferas – assistência médica, acesso às melhores escolas para os seus filhos e oportunidades empresariais. Assim sendo, o uso do poder político para obter acesso a outros bens é um uso tirânico.[50]

Após esta rápida exposição de alguns pontos da obra de Walzer, Esferas da Justiça, pode-se indagar sobre as divergências que existem entre sua doutrina e a de Rawls. Em verdade, não seria possível perscrutar e consignar, neste pequeno trabalho, a totalidade das diferenças entre ambas, motivo pelo qual foi escolhida somente uma especificidade.

Assim é que Walzer afasta-se de Rawls no que tange à sua concepção de pluralismo. Conforme foi explicitado, para Rawls o fato do pluralismo consiste na diversidade de concepções individuais sobre o bem, através das quais cada sujeito compromete-se com diferentes, e até conflitantes, doutrinas filosóficas, religiosas, morais, bem como possuem valores culturais e projetos pessoas de vida diversos.

Na visão de Walzer, todavia, o pluralismo se refere às diferentes identidades sociais e culturas religiosas e étnicas encontradas na complexa sociedade atual. Sob esta perspectiva, o filósofo privilegia a comunidade em detrimento do indivíduo, pois este se identifica com um ente culturalmente constituído.[51] Por não viver isolado da comunidade, como um ser descontextualizado, mas estar permanentemente inserido nela, não caberá ao indivíduo escolher, arbitrariamente, as concepções de bem existentes na sociedade e optar por um projeto pessoal de vida, mas será a comunidade que lhe fornecerá, em grande medida, sua identidade.[52]

Ademais, ao comprometer-se com o particularismo histórico e cultural, por não conceber o indivíduo como um ser a-social e fora de contexto, e identificar o pluralismo como uma diversidade de identidades culturais, opõe-se o comunitarismo à idéia de imparcialidade na elaboração de princípios de justiça como solução dos conflitos de interesses, rejeitando, outrossim, aspirações a regras universais de justiça, idéia afeta ao liberalismo. Como bem conclui Gisele Cittadino, “nada pode existir, segundo Walzer, para além destes particularismos sociais e culturais, senão fantasias abstratas, como a idéia de imparcialidade”.[53]

Relativamente à crítica que os comunitários fazem ao pensamento liberal genericamente apreciado, afirmam, peremptoriamente, que não se pode considerar como uma verdadeira sociedade aquela idealizada pelo liberalismo. Por assim dizer, denegam a realidade ôntica de uma sociedade que, diante da pluralidade de concepções morais existentes e dos valores e tradições muitas vezes conflitantes, seja governada e permaneça unida em virtude de regras e princípios normativos voltados à regulação da conduta individual e à garantia de que as pessoas escolham seu modo próprio de vida a partir de uma lista de opções.[54]

Ao revés, na sociedade segundo a visão comunitária, o bem de todos prepondera sobre o do indivíduo, sendo a preocupação com o bem comum o que norteia a sua governação. Além disso, não se afigura possível, para os comunitaristas, que se atinjam princípios de moralidade e justiça universais e abstratos pelo exercício da razão, pois não se chega aos fundamentos morais por meio da filosofia, já que estes se encontram na política.[55]

Sob a mesma perspectiva, a análise percuciente da sociedade em que se vive, de seus valores e tradições torna-se algo imprescindível para que se escolham quais regras devem ser adotadas com o fim de regular as estruturas desta sociedade. Com este argumento, rejeitam os comunitaristas a idéia segundo a qual seria possível conceber princípios de justiça adequados para ordenar as instituições sociais por meio de uma justiça processual.[56]

Em apertada síntese, estes seriam alguns dos argumentos proferidos pela escola comunitária para criticar ao liberalismo e a doutrina concebida por Rawls.


6 Conclusão

Permita-se concluir sumariando o que foi exposto em alguns dos tópicos deste artigo.

Conforme foi visto, o problema da justiça não é objeto de especulação das teorias políticas contemporâneas apenas. Antes, pode ser cronologicamente situado em uma época extremamente distante, sendo que as primeiras tentativas de conceituação desta virtude remontam aos filósofos pré-socráticos, muito embora a preocupação com questões éticas não estivesse no centro de suas elucubrações.

Apesar de alguns ramos do conhecimento, tais como a axiologia jurídica, terem conseguido sistematizar e, ao que tudo indica, até mesmo chegar a um certo consenso sobre determinados pontos relativos a essa virtude, nota-se que o mesmo não ocorre com as teorias políticas que se ocuparam da justiça enquanto atributo legitimador e justificador do aparato estatal.

Assim, no decorrer desta simples exposição, verificou-se que, no âmbito da filosofia política, várias foram as correntes doutrinárias que, com o objetivo de tentar oferecer um suporte teórico voltado à justificação moral do Estado, procederam à elaboração de distintas teorias da justiça. Somente neste artigo, foi feita menção a três diferentes modalidades dessas doutrinas, quais sejam, o utilitarismo, a teoria da justiça de Rawls e a vertente teórica comunitária.

Especificamente quanto à doutrina rawlsiana, afirmou-se que esta objetivou conceber um novo contrato social, muito mais generalizado e abstrato, por meio do qual seriam instituídos princípios de justiça cuja função é a de regular a estrutura básica da sociedade, consubstanciada nas suas instituições mais importantes. A justiça, assim concebida, erige-se, primitivamente, em virtude social, opondo-se à sua concepção tradicional de atributo moral prioritariamente regulador da ação individual.

Restou evidente que Rawls teve como intenção contrapor sua teoria ao pensamento utilitário dominante, que postula ser justa a ação que tem por objetivo a maximização da felicidade e do sistema de desejos individuais, sendo possível que tal princípio seja estendido à sociedade.

A vertente teórica comunitária, por sua vez, se encarregou de elaborar a crítica à teoria da justiça rawlsiana, divergindo desta em vários pontos, dos quais citou-se como exemplo sua concepção de pluralismo, que não se identificaria com as diferentes concepções individuais acerca do bem, mas traduziria a diversidade de identidades sociais existentes na sociedade contemporânea.

Na crítica proferida contra o liberalismo em geral, aduzem os comunitários, dentre outros argumentos, que a idéia de sociedade governada por normas reguladoras da conduta individual, sem considerar o bem comum da coletividade, não enseja uma verdadeira comunidade. Igualmente, eventuais pretensões à elaboração de princípios morais abstratos e universais restam frustradas, já que tais princípios devem ser atingidos na prática política.

Conclui-se, portanto, em congruência com o que foi afirmado inicialmente. Muito embora não se possa negar o mérito e a grande contribuição das atuais teorias sobre a justiça, percebe-se que o debate sobre as concepções desta virtude, neste início de milênio, continua em aberto, não tendo sido, se é que um dia chegará a ser, objeto de consenso por parte, sobretudo, de filósofos  comprometidos com a elaboração de uma doutrina que justifique a existência de um ordenamento político-jurídico.     

Sobre o autor
Flaviano Ribeiro Quaglioz

Advogado. Professor de Direito Civil. Master of Laws pelo Boston College Law School, EUA. Mestre em Direito Privado e Constituição pela FDC.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUAGLIOZ, Flaviano Ribeiro. A Teoria da Justiça segundo John Rawls. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4614, 18 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34346. Acesso em: 5 nov. 2024.

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