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A Teoria da Justiça segundo John Rawls

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18/02/2016 às 13:08
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No âmbito da filosofia política, várias correntes doutrinárias elaboraram uma justificação teórica do Estado e da Sociedade. A teoria da Justiça rawlsiana objetivou conceber um novo contrato social, voltado à regulamentação das instituições sociais.

Sumário:1 Introdução. 2 Conceito de justiça segundo a axiologia jurídica. Sentido lato e estrito da justiça. Seus elementos essenciais. 3 O Utilitarismo e a crítica de Rawls à sua ideologia. 4 O objeto da justiça. As noções aristotélica e rawlsiana de justiça. Justiça distributiva e diortótica ou comutativa. Justiça procedimental pura, perfeita e imperfeita. A posição original. O pluralismo razoável e a justiça como imparcialidade. O véu da ignorância e a idéia de justiça como eqüidade. Os princípios de justiça que seriam escolhidos sob o véu da ignorância. 5 Algumas noções  sobre a crítica comunitária. 6 Conclusão. 7 Bibliografia


1 Introdução

No início deste novo milênio, percebe-se que ainda está longe de encontrar desate na discussão, operada principalmente nos meios acadêmicos, sobre ser possível ou não a elaboração de um conceito de justiça que se mostre racional e objetivo, e que esteja, desta forma, fundado em princípios que aspirem a uma validade universal.

Esta tarefa – a busca de uma concepção de justiça universalmente válida e objetiva – apresenta-se, porém, muitas vezes dotada de um certo grau de frustração, bem como se afigura um tanto inglória, já que sempre retorna ao pensamento dos espíritos argutos a constatação de que o conceito de justiça se apresenta como um dado historicamente condicionado, centrado nas contingências e particularidades da comunidade que o formula.

No intuito de tentar solucionar este impasse, debruça-se a filosofia política contemporânea – comprometida que está, além de outros, com o tema da justificação e legitimação moral do ordenamento político-jurídico – no desenvolvimento de várias teorias da justiça, muito embora o ponto de partida das especulações sobre o problema da justiça tenha sido a Antiguidade. Foram, realmente, os filósofos pré-socráticos, mais especificamente os pertencentes à escola pitagórica ou itálica – segundo as informações que temos do próprio Aristóteles – que, paradoxalmente, formularam um conceito de justiça.[1]

A paradoxalidade se impõe, pois o que impressiona nesta constatação é exatamente o fato de que o período filosófico a que pertenceram esses (os pitagóricos) e outros pensadores que viveram, aproximadamente, entre os séculos VII e V a.C, foi marcado por uma grande preocupação com as questões relativas à natureza e com a origem do mundo, motivo pelo qual este lapso de tempo também recebe a designação de  período cosmológico.[2]

Foi somente no período seguinte, denominado socrático ou antropológico, que a Filosofia passou a se ocupar com questões primacialmente humanas, investigando assuntos relacionados com a ética e a política, no âmbito das quais se insere o tema da justiça.[3] Ainda assim, conforme sugerido anteriormente, não é neste período que uma primeira tentativa de se conceituar o que seja justiça pode ser verificada, mas exatamente no período antecedente.

Ao longo de todos esses anos, a começar pelo período supra referenciado, diversas têm sido as teorias da justiça, aventadas por brilhantes pensadores, que foram e continuam sendo colocadas sob intenso debate. O objetivo deste artigo é fazer a uma sucinta análise de uma das teorias contemporâneas mais influentes sobre o tema, desenvolvida pelo filósofo americano John Rawls em sua obra Uma Teoria da Justiça.

Porém, uma observação, inobstante corriqueira, se faz necessária. Sabe-se que a questão da justiça encontra-se intimamente vinculada ao tema do direito, comprovando esta assertiva o fato de que se fala, recorrentemente, em lei injusta; ato legal, mas injusto; direito justo etc. Dentre as várias perspectivas através das quais o direito pode ser estudado – por exemplo, direito como sistema de normas, como fato social, como direito subjetivo e como ciência – sobreleva a modalidade que o focaliza como uma exigência da justiça.

Por isso é que, antes de adentrar, especificamente, o pensamento do filósofo que compõe o título deste trabalho, far-se-á um breve estudo a respeito do conceito, das características, dos elementos e das espécies de justiça que já foram objeto de sistematização, principalmente, pela axiologia jurídica, sendo correto afirmar, outrossim, que alguns desses pontos até mesmo lograram obter determinado consenso por parte de seus formuladores, como é o caso dos elementos que integram esta virtude.

Logo após, proceder-se-á, celeremente, à análise do Utilitarismo e da crítica que Rawls desfere contra esta doutrina, já que, conforme se verá, um dos objetivos que o impulsionou a elaborar sua teoria foi, segundo ele mesmo, propor uma concepção de justiça que pudesse servir de alternativa ao pensamento utilitário, o qual, durante muito tempo, dominou a tradição filosófica e política, principalmente, dos países de língua inglesa.

Por fim, será feita uma breve confrontação entre a escola liberal (à qual Rawls se filia) e a comunitária. Discorrer-se-á sobre a crítica que esta última deflagrou tanto a alguns pontos específicos da doutrina rawlsiana – utilizando como base o pensamento de Michael Walzer, exteriorizado, principalmente, em seu célebre texto Esferas da Justiça – quanto ao pensamento liberal genericamente considerado, já que algumas críticas perpetradas contra este acabam por se aplicar à teoria de Rawls.


2 Conceito de justiça segundo a axiologia jurídica. Sentido latíssimo, lato e restrito da justiça. Seus elementos essenciais.

A palavra direito não constitui termo unívoco, sendo, na realidade, vocábulo que expressa uma pluralidade de significações, cada uma delas se referindo a realidades distintas. É por isso que se diz ser o vocábulo direito um termo análogo, podendo ser utilizado com, pelo menos, cinco significações diversas: norma, faculdade, ciência, fato social e exigência da justiça.

Em virtude desta multiplicidade de sentidos, há várias perspectivas de acordo com as quais se pode estudar o direito, sendo certo que cada perspectiva se correlaciona com uma das significações contidas na palavra em análise. Cabe à axiologia jurídica, ramo da filosofia do direito, estudá-lo em sua acepção de justo ou de exigência da justiça, por entender que, se a estrutura lógica do direito é deôntica, ou seja, se manifesta por meio de uma proposição jurídica que expressa um dever-ser, tem de haver, necessariamente, um ideal que orienta esta proposição ou norma. Em outras palavras, indaga-se o seguinte: se a norma exige um certo comportamento por parte do indivíduo (impõe-lhe um dever-ser), não lhe concedendo o privilégio de agir de maneira contrária, sob pena de sanção, em que valor se fundamenta esta norma para exigir tal comportamento, a que está a norma visando?

Acima de tudo, deve a norma objetivar o que é justo, pois é a noção de justiça que baliza todo o edifício jurídico,[4]  muito embora haja grandes divergências quanto à identificação do direito com a justiça. Assim, questiona-se se todas as exigências do direito estão baseadas nesta virtude, havendo autores, tais como Kelsen, expoente do positivismo jurídico, para quem a justiça é totalmente extrínseca à formação e validade do direito, que, na verdade, identifica-se com a imposição da força social, advogando o mestre, em síntese, que direito nada tem a ver com justiça.[5]

Outra corrente teórica afirma que somente uma parte do direito ou das instituições jurídicas têm a justiça como base, havendo outros valores, de que são exemplos a segurança e a ordem, que igualmente lhe servem de fundamento: Renard chega a dizer que “le droit n’est pas seulement facteur de justice, il est facteur de sécurité. La justice n’est que la moitié du droit; la grosse moitié, si vous voulez.”[6]

Por outro lado, baseados no fato de que, hoje em dia, já não é mais possível conceber a vida em comunidade – na qual se vislumbra a existência de toda uma multiplicidade de concepções de vida e identidades sociais deveras conflitantes – distanciada de padrões éticos, defendem, com razão, outros pensadores, tal como Del Vecchio, que a noção de justiça é essencial às instituições jurídicas, sendo ela o princípio legitimador de sua existência.

Então, superando as divergências e pondo-se ao lado dos que concebem a justiça como fundamento do direito, pode-se perguntar, afinal, qual é o seu conceito. Em verdade, o termo justiça, assim como o vocábulo direito, é análogo, conseqüentemente, portador de várias significações. Entretanto, dois significados relacionados à justiça exsurgem como principais, sendo um subjetivo e outro objetivo. No primeiro sentido, a palavra justiça designa uma virtude ou qualidade de uma pessoa, podendo ser visualizada mais facilmente quando se diz que um homem é justo. Na acepção objetiva, porém, justiça não se refere a um atributo individual, mas reporta-se a uma qualidade inerente à ordem social, expressa, por exemplo, quando se fala que uma lei é justa. Entretanto, ambos significados, subjetivo e objetivo, não são necessariamente excludentes, mas demonstram-se complementares, pois quando se fala em justiça como qualidade de uma pessoa, pode-se referir, em última análise, à justiça das instituições sociais, na medida em que estas são concebidas e integradas por seres humanos e que os atos emanados de tais instituições são praticados por eles. A divergência surge, às vezes, no momento de se estabelecer qual dos dois significados deve ter prioridade, já que um jurista afirmará que a justiça tem como objeto principal as instituições sociais, fazendo ressaltar seu sentido objetivo; enquanto que um moralista, tendo como preocupação a atividade pessoal do indivíduo, realçará o significado oposto.

Neste passo é que o sentido do termo justiça pode, ainda, ser contemplado de modo diferente, particularmente quando se refere à sua extensão. Em seu sentido lato, a justiça é o conjunto das virtudes sociais ou de convivência humana, pressupondo, conforme se depreende do conceito, a existência de outras pessoas, pois que não pode ser exercida isoladamente, como o podem outras virtudes (coragem, prudência etc). Em sentido estrito, contudo, justiça significa, conforme a definição de São Tomás, dar a outrem o que lhe é devido segundo uma igualdade.[7] Deste último conceito é que são retirados os elementos essenciais que integram a noção de justiça propriamente dita ou strictu sensu.

Assim é que a axiologia jurídica, partindo do conceito de justiça em sentido estrito, enumera três elementos que necessariamente integram esta virtude: a alteridade, ou pluralidade de pessoas; o devido (debitum); e a igualdade. O primeiro deles, a alteridade, é o elemento que distingue a justiça das outras virtudes morais, pois, conforme já mencionado acima, caracteriza este atributo como virtude social, insuscetível de ser praticada a não ser em relação a outrem. A rigor, não pode o homem ser justo ou injusto em relação a si mesmo.

A segunda característica essencial da justiça é o devido, também podendo ser entendido como uma obrigatoriedade ou exigibilidade, de maneira que se entende consistir o ato de justiça em dar a outrem aquilo que é devido. Entretanto, tal característica não é nota exclusiva da justiça, pois resta patente que outras virtudes também possuem um debitum. Há, com certeza, um débito, por exemplo, na amizade e na gratidão. Mas qual é a diferença entre o devido integrante da justiça e o débito que faz parte destas outras virtudes? Tal distinção se relaciona com a existência de dois tipos de dever, um moral e outro mais rigoroso ou estrito ou, ainda, legal. Nas outras virtudes, tais como a amizade e a gratidão, há somente um dever moral, o qual não pode ser exigido. Na justiça, o dever é rigoroso, passível de exigibilidade e legalmente imposto. Não se pode exigir de outrem gratidão por um benefício concedido, mas pode o credor exigir do devedor que, como ato de justiça, lhe pague uma dívida.

O último elemento integrante da justiça é a igualdade. Consiste este elemento em uma espécie de relação de adequação, que, por sua vez, possui três modalidades: a identidade, a semelhança e a igualdade. A identidade é uma relação de conformidade ou adequação relativa à essência; a semelhança o é quanto à qualidade; e a igualdade, referente à quantidade. Deste modo, se afirma que dois seres são idênticos quando possuem a mesma essência, são semelhantes quando têm as mesmas qualidades, e são iguais quando partilham da mesma quantidade. A igualdade, portanto, consiste em uma equivalência de quantidades. Quando se trata da justiça, deve-se proceder a uma adaptação desta equivalência às relações morais entre seres humanos.[8]

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Expostos de maneira extremamente resumida, estes são os pontos principais sobre a sistematização feita pela axiologia jurídica a respeito do tema da justiça. Mais adiante, precisamente no item 4, o assunto aqui analisado se mostrará relevante para o entendimento de outros pontos que serão explorados, e cuja compreensão passa, necessariamente, pelo que foi abordado neste tópico.


3 O Utilitarismo e a crítica de Rawls à sua ideologia.

Logo no prefácio à sua principal obra, intitulada Uma Teoria da Justiça, John Rawls deixa transparecer qual foi seu principal objetivo ao escrever este livro: elaborar uma teoria da justiça que sirva como alternativa às concepções clássicas da justiça, mais especificamente ao Utilitarismo e suas demais versões.

Lembrando que não é objetivo deste tópico discorrer sobre o tema exaustivamente, mas oferecer, em poucas palavras, um entendimento geral sobre o assunto a ser tratado, é possível, então, passar à indagação sobre o que é a doutrina utilitarista e de que maneira a teoria de Rawls se opõe a ela. 

Sabe-se que o ordenamento jurídico-político de um Estado, exteriorizado, sobretudo, pela imposição de normas dotadas de poder sancionador, erige-se em uma forma de constrição das liberdades dos indivíduos. Entretanto, a construção de um aparato jurídico-coercitivo não ocorre sem o correspectivo sentimento de que é necessário justificar a sua existência nas sociedades políticas, bem como legitimar o seu funcionamento.

A filosofia política tem como um de seus objetos de especulação exatamente o problema exposto acima. Questiona-se de que forma é possível justificar a imposição de restrições às liberdades das pessoas e, se tais restrições são realmente necessárias para evitar o malogro da vida em sociedade, indaga-se, outrossim, quais são as exigências a que todo o aparato político-jurídico instituído deve se submeter para que o Estado e suas instituições sejam reputados justos.

Portanto, diante do reconhecimento de que a reunião de homens numa comunidade necessita de regras dirigidas à limitação de suas liberdades, com o propósito de que haja o devido respeito para com as liberdades dos demais, várias doutrinas surgiram com o intuito de proceder à tentativa de moralmente justificar e legitimar a existência do Estado na qualidade de ente constritor das liberdades individuais. Como se pode inferir, deixa-se de considerar, aqui, aquelas doutrinas que foram idealizadas com fundamento na concepção de que somente uma sociedade em que impera a absência de normas dotadas de coerção poderia ser legitimada moralmente. Um bom exemplo desta modalidade de doutrina é o anarquismo.

Assim, o utilitarismo pertence à classe de teorias filosóficas que tentaram dar uma resposta ao problema da justificação e legitimação do Estado. Específica e originariamente, entretanto, foi constituída como um credo que radica, na conseqüência das ações humanas individuais, o valor moral da conduta, tendo como fundamento da moralidade a utilidade ou o princípio da maior felicidade, de modo que má ou incorreta é a ação que tende a promover o sofrimento ou a infelicidade, e boa ou correta a que produz prazer ou satisfação.[9] A ética utilitarista, portanto, afirma que as ações virtuosas têm como objetivo a maximização da felicidade dos indivíduos, de cujo somatório decorreria o bem-estar de todos.

Transferindo a ideologia utilitarista para o âmbito do Estado, o ordenamento jurídico-coercitivo estaria justificado e legitimado à medida que se enxergasse o resultado das limitações às liberdades das pessoas como algo útil à produção de felicidade e satisfação para toda a coletividade.

A crítica de Rawls ao utilitarismo fundamenta-se no fato de que esta doutrina estaria comprometida com a multiplicação das satisfações em uma sociedade, sem diretamente se importar com o modo pelo qual esta soma de realizações deveria ser distribuída entre os indivíduos. Assim, afirma ele que, segundo a perspectiva utilitarista, justa é a sociedade cujas instituições mais importantes estão direcionadas à consecução do maior saldo de satisfação possível, que seria obtido por meio do somatório das realizações individuais.[10]

Portanto, não importa a forma de distribuição das satisfações, pois correta e justa é a forma que tenha como objetivo permitir que a sociedade distribua suas riquezas, oportunidades, privilégios e outros bens de uma maneira pela qual possa ser alcançado o mais alto nível de realização dos sistemas de desejos do grupo. Ocorre, entretanto, que, na visão de Rawls, esta doutrina sucumbe enquanto teoria que procura justificar moralmente o Estado porque, em princípio, nada impediria que, sob o argumento de maximizar o bem-estar da coletividade, fossem sacrificados direitos e liberdades de um grupo de pessoas, ainda que pequeno.

Assim sendo, argumenta Rawls que “não há razão para que os benefícios maiores de alguns não devam compensar as perdas menores de outros; ou, mais importante, para que a violação da liberdade de alguns não possa ser justificada por um bem maior partilhado por muitos”.[11]

Movido por esta forte objeção à teoria utilitária, Rawls não se furtou a admitir, em sua mais famosa obra, que o seu objetivo foi elaborar uma doutrina que lhe servisse de alternativa. Sobre esta última é que se discorrerá a seguir.

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Sobre o autor
Flaviano Ribeiro Quaglioz

Advogado. Professor de Direito Civil. Master of Laws pelo Boston College Law School, EUA. Mestre em Direito Privado e Constituição pela FDC.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUAGLIOZ, Flaviano Ribeiro. A Teoria da Justiça segundo John Rawls. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4614, 18 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34346. Acesso em: 2 nov. 2024.

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