4 O objeto da justiça. As noções aristotélica e rawlsiana de justiça. Justiça distributiva e diortótica ou comutativa. Justiça procedimental pura, perfeita e imperfeita. A posição original. O pluralismo razoável e a justiça como imparcialidade. O véu da ignorância e a idéia de justiça como eqüidade. Os princípios de justiça que seriam escolhidos sob o véu da ignorância.
Outro objetivo de John Rawls ao conceber as idéias expostas em Uma Teoria da Justiça, além de ter sido elaborar uma doutrina que pudesse ser identificada como uma alternativa ao utilitarismo clássico, foi propor uma nova teoria do contrato social.[12] Por meio deste, configurar-se-ia um procedimento de deliberação eqüitativo voltado à concretização de um justo modelo de organização das instituições sociais. Explique-se.
Conforme a extremamente notória e tão reiterada sentença de Rawls, a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, o que equivale a dizer que são estas o principal objeto sobre que, na visão do filósofo, a justiça atua. Ainda segundo o mestre, as instituições sociais que constituem o objeto primário de atuação da justiça compõem a estrutura básica da sociedade, que, por sua vez, é identificada com a “maneira pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social”.[13]
Sobre este primeiro tópico, o do objeto da justiça, mister se faz tecer alguns comentários, ainda que, para tanto, seja necessário digressionar um pouco. Rawls, ao enunciar sua mais célebre assertiva, rompe com a noção tradicional de justiça, vez que a faz assomar ao nível de virtude reguladora da sociedade (justiça social), apartando-se, em certa medida, da concepção aristotélica desse atributo moral. Como se sabe, Aristóteles, ao tratar da justiça, inspirou-se tanto na vertente pitagórica, por cuja crítica concebeu a noção de justiça particular, quanto na vertente platônica, aventando o que chamou justiça universal, que, segundo o próprio Aristóteles, distingue-se da primeira por corresponder à virtude completa, ao conjunto de todas as virtudes, bem como ao que é conforme a lei.[14] Assim, subdividiu a justiça particular – espécie de justiça dedicada à regulação das relações bilaterais – em justiça distributiva e comutativa.[15]
A justiça distributiva, segundo Aristóteles, é a que atua sobre a divisão das honras e dos bens, com o objetivo de que cada membro da comunidade receba uma parte que esteja em conformidade com o seu próprio mérito. Em conseqüência, pessoas com méritos desiguais devem receber porções desiguais dos bens e das honras, conclusão que faz surgir a idéia de proporcionalidade, inerente a esta modalidade de justiça. [16]
A justiça diortótica, ou comutativa, (que, aliás, é detentora de vários outros epítetos, tais como, justiça retificadora, igualadora, sinalagmática e corretiva), ao contrário, não leva em consideração o mérito das pessoas. Isto porque visa assegurar que, numa relação intersubjetiva, as partes fiquem numa situação de paridade, no sentido de que uma não tenha dado nem recebido mais do que a outra, motivo por que se diz ter ela uma função corretiva, isto é, retificar eventual desigualdade. Assim, são os termos objetivos da relação (as coisas) que devem ser igualados, e não os termos subjetivos (as pessoas), pois estes se pressupõem iguais.[17] Também se encontra presente, nesta modalidade, a noção de proporcionalidade, porém trata-se de proporção aritmética, enquanto que na distributiva a proporção é geométrica.[18]
Utilizando o conhecimento exposto na parte deste artigo que tratou dos elementos fundamentais da justiça, essas duas espécies podem ser definidas por meio da análise desses elementos, sendo correto que, segundo o que foi afirmado antes, estão eles presentes em qualquer modalidade de justiça. Apenas para recordar, tais características são a alteridade, o devido e a igualdade. Antes, porém, advirta-se que o ideal seria, antes de proceder à definição das duas espécies de justiça, fazer um estudo percuciente sobre as diferentes realidades que cada um desses elementos fundamentais representa quando nos referimos à justiça distributiva e à comutativa separadamente. Como, entretanto, tal estudo refoge ao escopo deste trabalho, por ser bastante extenso, abster-se-á de fazê-lo; mas, ao mesmo tempo, aproveita-se para exortar o leitor à pesquisa do tema nas obras referenciadas ao final.
Conceitua-se, então, a justiça distributiva como a virtude pela qual a comunidade dá a cada um de seus membros (alteridade) uma participação do bem comum (devido), observada uma igualdade relativa (igualdade). A justiça comutativa, ao revés, pode ser conceituada como a virtude pela qual um particular dá a outro particular (alteridade) aquilo que lhe é rigorosamente devido (débito), observada uma igualdade simples ou real (igualdade). Percebe-se que, em ambas, os elementos não se referem às mesmas realidades, pois, sem descer a maiores detalhes, na primeira a relação bilateral se dá entre a comunidade e seus membros, enquanto que na segunda a mesma relação ocorre entre indivíduos.[19]
Retornando, então, à questão inicial, que trata da ruptura que a concepção de justiça em Rawls operou com a noção aristotélica deste atributo moral, vê-se que o primeiro filósofo não identifica essa virtude com as duas espécies de justiça particular expostas acima, isto é, como primitivamente reguladora de relações particulares e bilaterais. Ela é, primeiramente, regedora das instituições sociais, incidindo, de maneira prioritária, sobre a estrutura básica da sociedade para que a divisão dos bens resultantes da cooperação dos seus membros seja feita de maneira justa.
Importa dizer que, muito embora o próprio Rawls afirme que sua concepção de justiça se conforma com a noção tradicional concebida por Aristóteles, nota-se claramente, pelas palavras do primeiro, que esta possível congruência de idéias ocorre, sobretudo, quando se leva em consideração o fim último objetivado pelas duas concepções, qual seja, evitar a pleonexia. Esta coincide com “evitar que se tire alguma vantagem em benefício próprio tomando o que pertence a outrem, sua propriedade, sua recompensa [...] ou recusando a alguém o que lhe é devido [...] e assim por diante”.[20]
Seja-nos permitido, contudo, expor um posicionamento parcialmente divergente ao que se acabou de afirmar quanto à distinção das noções de justiça presentes em Aristóteles e em Rawls. Desta forma é que, para Paul Ricoeur, pode-se pensar que a concepção rawlsiana a respeito dessa virtude, a princípio, se aproxima muito mais da concepção platônica do que da aristotélica, pois que Platão é muito mais holístico ao afirmar que a justiça é a virtude do todo, não se coadunando esta idéia com a de justiça particular de seu discípulo estagirita.
Todavia, ao analisar detalhadamente o pensamento de Rawls, principalmente quando afirma que o objeto primário da justiça é a maneira segundo a qual as mais relevantes instituições sociais distribuem direitos e deveres fundamentais, defende Ricoeur a tese de que “Rawls junta-se a Aristóteles sem trair Platão”.[21] Portanto, conforme este autor, a concepção de justiça em Rawls seria, ao mesmo tempo, holística e distributiva, pois, se o sistema social também pode ser perspectivado como um processo de distribuição de vantagens, benefícios, papéis, pode a justiça distributiva ter a estrutura básica da sociedade como objeto.[22]
De qualquer maneira, ainda que se adote este segundo posicionamento, verifica-se que continua sendo verdade o que foi dito inicialmente a respeito das duas concepções de justiça confrontadas, isto é, ambas não se identificam. Percebe-se que o próprio Ricoeur reconhece a dessemelhança entre elas, pois que, logo no início de sua exposição sobre o tema, afirma: “[...] façamos duas observações gerais sobre o ‘sujeito da justiça’. Primeira observação: a justiça não é primitivamente uma virtude intersubjectiva, uma virtude regedora das relações bilaterais, mas sim regedora das instituições sociais [...]”.
Retomando, agora, a análise específica da doutrina de Rawls, este concebe uma teoria segundo a qual os indivíduos, reunidos com o intuito de chegar a um consenso sobre certos princípios fundamentais que serão escolhidos para governar o funcionamento da estrutura da sociedade e da distribuição de bens, encontram-se em uma situação hipotética denominada posição original. Esta situação é caracterizada, dentre outras coisas, pelo fato de que as pessoas nela inseridas desconhecem qual função, cargo ou posição irão ocupar na sociedade. Sobre esta característica, porém, se discorrerá com maiores detalhes mais adiante.
Assim, esta situação inicial, que Rawls chama de posição original, é definida sob a perspectiva de uma concepção contrafática – isto é, nunca existiu de fato – e se identifica com um recurso de representação mediante o qual os participantes do processo deliberativo estão aptos a celebrar um acordo de cooperação – que, reitera-se, é hipotético – e escolher princípios de justiça cuja função será a de assegurar, na sociedade democrática que pretendem construir, sua liberdade e igualdade.
Rawls, portanto, pressupõe que a sociedade democrática – aquela que resulta do consenso hipotético a que chegaram os indivíduos que, na posição original, escolheram os princípios de justiça – é um sistema eqüitativo de cooperação social, composto por pessoas que, num primeiro aspecto, são livres, pois possuem o direito de participar da construção das instituições sociais, constituindo, assim, fontes autônomas de reivindicações, no sentido de que estas possuem um valor próprio que não decorre de deveres em relação à sociedade nem a outras pessoas, mas somente de deveres das pessoas para com elas mesmas.[23] São livres, sob outro aspecto, porque são dotadas de capacidades morais e capacidades da razão. A primeira permite-lhes entender e se comportar de acordo com os princípios da concepção pública de justiça, ou seja, é a capacidade de ter um senso de justiça. A segunda equivale a possuir uma capacidade de racionalmente perfilhar uma idéia de bem. Por outro lado, são iguais porque essas duas capacidades estão presentes nos indivíduos de uma forma e em um nível adequados o bastante para fazer deles pessoas cooperativas na sociedade.[24]
Ainda no que respeita à posição original, explica Rawls que esta situação possui um alto nível do que se entende por justiça processualística pura. A noção de justiça processualística pura significa que, no procedimento de escolha dos princípios inerentes à concepção de justiça pública, não há qualquer critério independente e previamente definido do que é justo ou eqüitativo. Conseqüentemente, não importa quais princípios serão selecionados a partir de uma lista de possíveis escolhas, pois, ao se lançar mão desta modalidade de procedimento, todos eles serão justos. Esta noção se opõe ao que Rawls denomina justiça processualística perfeita e justiça processualística imperfeita. Na perfeita, já foi previamente estabelecido um critério do que é eqüitativo ou justo, e o procedimento adotado irá apenas assegurar que o resultado seja conforme este critério.
Para ilustrar a modalidade de justiça processualística perfeita, oferece ele o seguinte exemplo, que considera a hipótese mais simples de uma divisão tida como justa:
Um certo número de homens deve dividir um bolo: supondo que a divisão justa seja uma divisão eqüitativa, qual será o procedimento, se é que existe um, que trará esse resultado? Questões técnicas à parte, a solução óbvia é fazer com que um homem divida o bolo e receba o último pedaço, sendo aos outros permitido que peguem os seus pedaços antes dele. Ele dividirá o bolo em partes iguais, já que desse modo pode assegurar para si próprio a maior parte possível. Esse exemplo ilustra os dois traços característicos da justiça procedimental perfeita. Primeiro, há um critério definido em separado e antes de o processo acontecer. E, segundo, é possível criar um procedimento que com certeza trará o resultado desejado. [...] O essencial é que haja um padrão independente para decidir qual resultado é justo e um procedimento que com certeza conduzirá a ele.[25]
Rawls, em um de seus escritos, com o intuito de clarificar a diferença entre as duas espécies de justiça processualística – pura e perfeita – discorre sobre a primeira com as seguintes palavras: “a característica essencial da justiça processualística pura, distinta da justiça processualística perfeita, é a ausência de um critério independente de justiça. O que é justo se define apenas pelo resultado do próprio procedimento”.[26]
No que se refere à terceira modalidade, a justiça processualística imperfeita, afirma o filósofo que sua principal característica é o fato de que há um critério independente para conduzir a um resultado correto, mas o que não existe é um processo que indubitavelmente chegue a ele. O exemplo que fornece para ilustrar essa terceira espécie é um julgamento, pois que, neste, é possível atingir um resultado errado ainda que a lei haja sido estritamente observada e que os procedimentos tenham sido seguidos justa e adequadamente.[27]
A importância de se descrever a posição original nos moldes de uma situação que tem como uma de suas peculiaridades o predomínio da justiça procedimental pura, com a conseqüente exclusão das outras duas espécies, é, segundo o próprio Rawls, o fato de que tal circunstância resulta na constatação de que as pessoas envolvidas na escolha dos princípios de justiça são dotadas do atributo da autonomia racional, que, aliás, se contrapõe à autonomia completa.[28] Assim, como empregam, em suas deliberações, a justiça procedimental pura, são os parceiros, na posição original, racionalmente autônomos, sob uma primeira perspectiva, porque não se lhes exige seguir ou aplicar princípios de justiça previamente existentes.[29] Destarte, são eles livres para aquiescer a qualquer concepção de justiça apresentada e racionalmente proceder a uma avaliação sobre o grau em que ela (a concepção de justiça proposta) atenderá aos seus interesses. Em última análise, a autonomia racional lhes confere a possibilidade de estabelecer uma idéia de justiça política que se compatibilize com uma sociedade democrática.[30]
Repisando o que foi afirmado anteriormente, com o objetivo de melhor explicar o que vem a seguir, Rawls estabelece como premissa que, nesta sociedade democrática, impera uma idéia intuitiva básica segundo a qual a sociedade é um sistema eqüitativo de cooperação entre indivíduos livres e iguais, donde decorrem duas outras idéias básicas. A primeira já foi exposta acima e deriva, precisamente, do que foi dito na sentença anterior, isto é, do fato de que os membros desta sociedade são pessoas livres e iguais, já que possuem capacidades morais e capacidades da razão. A segunda idéia básica harmoniza-se com a noção de sociedade bem ordenada.
Ocorre que, no âmbito de uma sociedade democrática bem ordenada, um aspecto relevante caracteriza os cidadãos livres e iguais que dela participam . Possui cada um deles uma concepção própria de vida, uma perspectiva de enxergar o mundo, estando todos comprometidos com diferentes, e até incompatíveis, valores culturais, religiosos, filosóficos, morais, bem como perfilhando projetos e interesses individuais divergentes. A este fato Rawls chama de pluralismo.
O pluralismo a que alude o mestre não é outro senão um pluralismo razoável, o qual, além de ser uma característica permanente da cultura de uma sociedade democrática, consiste, exatamente, na coexistência de diversas doutrinas e concepções de vida razoáveis. As doutrinas razoáveis possuem três características fundamentais, quais sejam: englobam os aspectos filosóficos, religiosos e morais mais relevantes da vida de uma forma relativamente consistente e coerente, sendo, por isso, resultado do exercício da razão teórica; emprestam, a uma prioridade específica, determinados valores, motivo por que são o corolário da razão prática; e, ainda que evoluam com o decurso do lapso temporal, são dotadas de estabilidade.[31]
O fato do pluralismo razoável torna-se suscetível de melhor compreensão quando se entrecruzam as idéias de pessoas dotadas de capacidades morais e sociedade bem ordenada. À noção de sociedade bem ordenada liga-se, imprescindivelmente, a idéia de estabilidade política, numa relação em que esta constitui um antecedente lógico da primeira. Porém, como lograr estabilidade política em uma sociedade na qual, em virtude de as pessoas serem detentoras de capacidades morais – conseqüentemente sendo, cada indivíduo, livre para ter e efetivamente exercitar sua particular convicção religiosa e filosófica, visão de mundo, perspectiva de vida etc – elas agem de acordo com suas concepções de bem? Em outras palavras, como harmonizar estabilidade política com o fato do pluralismo? Em princípio, tal indagação parece subtrair qualquer pretensão de compatibilidade entre uma sociedade bem ordenada e pessoas prendadas com as referidas aptidões morais.
Porém, este impasse comporta solução nos seguintes termos. Foi dito, acima, que as capacidades morais que Rawls atribui aos indivíduos são, na verdade, duas: a primeira é a capacidade de perfilhar uma concepção de bem, que acabou de ser mencionada. A segunda é a capacidade de ter um senso de justiça, ou seja, compreender e agir segundo uma concepção pública de justiça. Rawls, então, ao dotar as pessoas desta segunda capacidade, chega finalmente à resolução desse conflito (sociedade bem ordenada e pluralismo), pois, muito embora possam os cidadãos ter sua própria concepção de bem, são eles capazes de ter um senso do que é publicamente justo, o que os conduz a interagir com outros indivíduos em conformidade com princípios que são manifestamente aprovados por todas as outras pessoas, os quais são os princípios da justiça pública.[32]
Portanto, dois resultados podem ser hauridos desta constatação: o primeiro é que, como existe compatibilidade entre aquilo que as pessoas consideram um bem com o que reputam como justo, ou seja, entre a concepção de bem e de justiça, o pluralismo existente numa sociedade democrática – reiterando, as diferentes concepções acerca da vida digna, convicções filosóficas, perspectivas de mundo – só pode ser razoável. O outro resultado é que, porque não demanda nenhum tipo de acordo entre as diversas concepções de vida adotadas, mas existe e atua independente e acima delas, a idéia de justiça que impera é a de uma justiça como imparcialidade.[33]
Atingindo este ponto da exposição sobre a doutrina de Rawls, pede-se vênia ao leitor para que se faça uma breve recapitulação do que foi explanado até aqui, com o fim de rever os principais conceitos, reordenar o pensamento e, então, preparar uma base mais sólida para conferir maior fluidez à explicação, ainda neste tópico, do próximo assunto.
Foi afirmado que John Rawls, simultaneamente objetivando propor um novo contrato social e elaborar uma doutrina que sirva de alternativa ao utilitarismo, dispôs-se a estabelecer os princípios morais que devem reger as principais instituições sociais – ou a estrutura básica – de uma sociedade democrática justa, isto é, uma sociedade cujas instituições procedam a uma distribuição eqüitativa das vantagens resultantes da cooperação social. Destarte, para a escolha de tais princípios, concebeu Rawls uma situação contrafática (hipotética), denominada posição original, em que representantes de cidadãos livres e iguais celebrariam um acordo lançando mão de um processo consistente na justiça procedimental pura, em virtude do qual eles podem ser identificados como pessoas racionalmente autônomas. Porque o são, não ficam adstritos à escolha de quaisquer critérios de justiça previamente existentes, assim como são livres para aquiescer a qualquer concepção de justiça proposta.
Rawls, então, imagina a sociedade democrática – resultante deste acordo a-histórico supra mencionado – como um sistema eqüitativo de cooperação social cujos membros, em que pese o fato de serem sequazes de diferentes concepções e perspectivas de vida, religião, doutrinas etc – o que enseja a constatação do fato do pluralismo – vivem numa sociedade bem ordenada, vez que esta possui estabilidade política. Tal estabilidade é possível exatamente porque os cidadãos livres e iguais partilham um senso de justiça que os leva a aceitar princípios que transcendem suas concepções particulares de bem e, como resultado, os faz adotar determinadas posturas e agir em relação aos outros indivíduos pautados nesses princípios publicamente consentidos.
Por conseqüência, chega-se à conclusão de que o pluralismo existente na sociedade democrática não é outro senão um pluralismo razoável, pois, conforme afirmado, se harmonizam o bem e o justo (as idéias de bem e de justiça). Isto também conduz à idéia de justiça como imparcialidade, vez que os princípios de justiça escolhidos para governar a sociedade democrática vigem a atuam independentemente da existência da diversidade de doutrinas e concepções de bem particulares.
Acontece que, depois de tudo o que foi exposto até este momento, um questionamento pode surgir. O que garantiria que, no instante em que procedessem à eleição dos princípios de justiça que irão governar as estruturas básicas da sociedade democrática, os cidadãos, diante das contingências históricas, não escolheriam princípios que favoreceriam seus interesses pessoais e puramente egoísticos em detrimento dos interesses de seus pares? Na tentativa de oferecer um exemplo prático, poderíamos fazer o mesmo questionamento da seguinte forma: o que iria assegurar que, na sociedade, uma pessoa que ocupasse a função de detentor dos meios de produção não se beneficiaria desta circunstância e escolheria um princípio, por ela reputado justo, segundo o qual não lhe seria necessário recolher nenhum tipo de tributo sobre o salário que paga a seus empregados, devendo estes suportar todo o ônus relativo às contribuições para a seguridade social?
Para resolver este problema, Rawls introduz a noção de véu da ignorância. Sobre esta concepção, afirma John Rawls que se trata de uma circunstância em que:
[...]ninguém sabe qual é o seu lugar na sociedade, a sua posição de classe ou seu status social; além disso, ninguém conhece a sua sorte na distribuição de dotes naturais e habilidades, sua inteligência e força, e assim por diante. Também ninguém conhece a sua concepção do bem, as particularidades de seu plano de vida racional, e nem mesmo os traços característicos de sua psicologia, como por exemplo a sua aversão ao risco ou sua tendência ao otimismo ou ao pessimismo. [34]
Desta forma, o acordo a que tais indivíduos pretendem chegar – isto é, sobre os princípios de justiça reguladores do funcionamento da sociedade – será eqüitativo, a ponto de resultar em uma organização societal regulada por princípios justos, se a situação inicial também for dotada de eqüidade, pois se pressupõe que “a eqüidade das circunstâncias nas quais o acordo é atingido se transfere para os princípios de justiça escolhidos”.[35]
Porém, para que o seja, deve a posição original revestir-se das características inerentes ao véu da ignorância, sendo certo afirmar que é ele que assegura a eqüidade do procedimento de deliberação, já que também garante a eqüidade da situação inicial. Ao imaginar esta situação de ignorância por parte dos indivíduos, busca-se impedir que eles escolham princípios que iriam satisfazer seus interesses mais imediatos caso tivessem plena consciência do papel que iriam desempenhar na sociedade.
Através desta concepção de uma posição original que, por estar caracterizada pelo véu da ignorância, se torna uma circunstância eqüitativa – já que as relações intersubjetivas que nela se processam apresentam-se dotadas de uma determinada simetria cognitiva quanto às contingências sociais – é que Rawls chega à noção de justiça como eqüidade. Esta noção “transmite a idéia de que os princípios da justiça são acordados numa situação inicial que é eqüitativa”.[36]
Neste ponto, digressiona-se novamente com o intuito de se realizar uma célere análise comparativa entre a posição original rawlsiana e o estado de natureza tal como formulado por Thomas Hobbes.
A posição original introduzida por Rawls se afasta, de certa forma, do estado de natureza concebido por Hobbes, asserção que contraria, ainda que parcialmente, a opinião de outros autores. Segundo Ana Paula Barcellos, Rawls concebe o ser humano, em seu estado natural, como basicamente individualista, liberal, racional, e essencialmente só, bem como possuidor de concepções próprias a respeito da justiça, do bem e da sociedade, estando, ademais, consciente dos objetivos individuais que almeja perseguir. Mais adiante, afirma que seu estado de natureza se assemelha ao do homem concebido por Hobbes.[37]
Entretanto, deve-se notar que, segundo a antropologia hobbesiana, o estado de natureza correspondia a uma situação cuja característica mais marcante era a guerra de todos contra todos, e na qual predominava o medo de uma morte violenta. Nas palavras de Thomas Hobbes: “[...] durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens”.[38]
Por isso mesmo é que o primeiro valor que se almejava, ao se transpor esta situação e se atingir o Estado Civil, era a segurança, não a justiça.[39] O que move o homem hobbesiano a celebrar um pacto com seus semelhantes objetivando instituir o governo civil é o desejo de proteção e defesa contra a superioridade do inimigo comum, bem como o medo do perigo e de não ser capaz de prover à sua autoconservação.
A favor da instituição de um Estado soberano como garantidor da segurança, Hobbes apresenta os seguintes argumentos:
E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, [...] se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros.
Não é a união de um pequeno número de homens que é capaz de oferecer essa segurança, porque quando os números são pequenos basta um pequeno aumento de um ou outro lado para tornar a vantagem da força suficientemente grande para garantir a vitória [...].
Também não é bastante para garantir aquela segurança que os homens desejariam que durasse todo o tempo de suas vidas, que eles sejam governados e dirigidos por um critério único apenas durante um período limitado, como é o caso numa batalha ou numa guerra.
A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que [...] possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. [...] Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas.[40]
Portanto, difere a posição original rawlsiana do estado de natureza de Hobbes, uma vez que a teoria contratualista concebida nos moldes delineados por Rousseau e Kant, da qual Rawls mais se aproxima, não descreve o estado de natureza de forma tão pessimista quanto o do primeiro filósofo. Os outros dois imaginam tal estado, apenas, como uma situação em que não há instituições elaboradas com o fim de administrar os interesses individuais conflitantes e distribuir os bens resultantes da cooperação social de maneira eqüitativa. Esta é a razão pela qual pode-se imaginar que se aspira, acima de tudo, a princípios que, ao incidirem sobre a estrutura básica da sociedade, permitam a consecução desses fins específicos: os princípios de justiça.
Após esta breve digressão, ainda resta fazer um importante questionamento para finalizar este tópico: quais princípios, na posição original, seriam consensualmente escolhidos sob o véu da ignorância? Segundo Rawls, seriam dois. O primeiro afirma que “cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras”. O segundo, por sua vez, diz que “as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos”.
Ao afirmar que são dois os princípios de justiça escolhidos pelos contratantes na posição original, Rawls imagina a estrutura social nos moldes de uma fórmula bipartite em que podem ser distintamente visualizadas as partes às quais serão aplicados ambos os princípios. O sistema social, assim divisado, possui aspectos responsáveis por definir e garantir as liberdades básicas, e aspectos que determinam as desigualdades econômicas e sociais. Ao primeiro aspecto se aplicaria o primeiro princípio, e ao outro aspecto, o segundo.
Uma característica destes princípios que se afigura tão importante quanto o conteúdo que encerram é o fato de que estão ligados por uma regra de prioridade, que Rawls chama de ordenação serial. O enfoque dado através dessa regra é extremamente rígido, já que se estabelece um escalonamento hierárquico completamente destituído de mobilidade, não sendo, então, possível ao segundo princípio ascender ao primeiro nível da ordenação. Isto corresponde a dizer que não há lugar para uma inversão da prioridade estabelecida sob o argumento de que maiores vantagens econômicas compensam e justificam a violação das liberdades básicas asseguradas. A única hipótese em que uma restrição pode ser imposta a tais liberdades se dá quando ocorre um conflito entre liberdades, do que se pode inferir que não são elas absolutas.[41]
Segundo Rawls, esses dois princípios, de modo genérico, significam que a distribuição dos valores sociais, tais como renda, riqueza, liberdade, oportunidade etc, deve ser feita de maneira igualitária, ressalvando-se a hipótese em que eventual desigualdade na sua distribuição resulte em benefícios para todos. Logo, a injustiça é feita quando as desigualdades não trazem vantagens para todas as pessoas. Deve-se observar, porém, que esta melhoria da situação de todos não pode ocorrer com a subversão da ordem serial dos dois princípios de justiça escolhidos na posição original. Assim, ficaria excluída, por exemplo, a troca que gerasse maiores vantagens econômicas à custa de direitos políticos.[42]
Termina, aqui, a exposição sobre a doutrina de Rawls. Conforme a advertência exordial, não está no escopo deste artigo fazer um estudo abrangente do assunto versado, vez que a complexidade representada pelo pensamento filosófico rawlsiano requer considerações que jamais se conteriam nos lindes de um trabalho tão modesto. Antes, o intuito foi apenas de munir o leitor, ainda assim de modo bem simples, com alguns dos principais tópicos insertos em Uma Teoria da Justiça. O próximo item tem por objetivo tecer breves considerações a respeito da crítica desferida pelos comunitaristas à teoria de Rawls.