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Afeganistão, Guantánamo, Iraque e a suposta defesa de direitos humanos.

Reflexões sobre o Direito Internacional Público atual e as lições de Nuremberg

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Agenda 01/11/2002 às 00:00

5. Considerações e Conclusões Finais

No contexto geral da Sentença algumas outras considerações expressadas pelo Tribunal podem ser citadas como relevantes.

Assim, o Tribunal afasta os argumentos concernentes à invasão de um território de outro Estado como forma de prévia defesa militar, supostamente admissível como legal, em face de eminente ataque de terceiro Estado (invasão da Noruéga e Dinamarca como forma de proteção contra ataque da Inglaterra).

Veja-se que tal postura tem uma importância transcedental, como um verdadeiro "mandamento ao futuro" (nossa atualidade), tendo em conta as ações perpetradas pelos Estados Unidos depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 contra o Afeganistão, e a agora pretendida intervenção contra o Iraque.

Mesmo admitindo-se a invasão do Afeganistão como um exercício de legítima defesa posterior a um ataque prévio (o que por sí só já tem sua dose de incerteza considerando a forma como ocorreram os ataques e seus perpetradores), de nenhuma maneira pode ser admitida pelo direito internacional, sob a premissa estabelecida pelo Tribunal de Nuremberg, a possibilidade de novas ações militares americanas em prévia defesa de seus "interesses nacionais" e contra um suposto "eixo do mal".

Um eventual ataque unilateral ao Iraque pelos Estados Unidos, sem a devida autorização do Conselho de Segurança da ONU, pode e deve ser considerado pelo Direito Internacional Público como um crime de guerra e contra os direitos humanos, tendo em conta a lição de Nuremberg. Aliás, é muito provável que as autoridades norteamericanas estejam cientes de tal fato e, por isso, se esforcem tanto para fixar a "imunidade americana" perante o Tribunal Penal Internacional, estabelecido a poucos meses.

Por otro lado, e voltando ao julgamento de Nuremberg, o Tribunal explícitamente reconheceu o comportamente reprovável da Inglaterra ao armar seus návios mercantes no Canal da Mancha, atitude que dotou de legitimidade a guerra submarina perpetrada pela Alemanha contra tais naves.

Aqui também reside outra lição do Tribunal de Nuremberg para a atualidade, qual seja, que os fins não justificam os meios e que o emprego de meios injustificados por uma parte pode legitimar a reação da outra. Asim que, por mais honrosa e justificavel que seja a defesa dos direitos humanos e das liberdades contra a "ameaça terrorista", tão alardeada, deve-se utilizar dos meios aceitáveis pelo direito internacional, seja nas supostas ações preventivas, seja nas ações repressivas e de responsabilização das pessoas supostamente culpáveis dos feitos terroristas.

Tal afirmação, por suposto, predica a que aos presos de Guantánamo sejam aplicados julgamentos públicos, civis ou militares, onde estejam presentes todas as garantias de ampla defesa, mesmo tendo em conta que estes julgamentos possan ser utilizados pelos terroristas como plataformas ou palcos de acesso à opinião pública internacional, como faz o senhor Milosevic com relação a seu julgamento na Haia. Desafortunadamente, isto não é o que, até agora, se planeja para estas pessoas que já estão presas a mais de um ano, em condições semelhantes às dos campos de concentração nazistas.

Deve ser lembrado, ainda, que conjuntamente com os individuos submetidos a julgamento perante o Tribunal de Nuremberg, seis organizações/associações foram também analizadas pelo Tribunal, sendo que a Sentença declarou o caráter criminoso de três dessas entidades (SD-Gestapo, as SS e o Corpo de Líderes do Partido Nazista), o que permitiu a ocorrência dos julgamentos posteriores (mencionados quando das considerações quanto ao entorno histórico).

Este ato, desde um ponto de vista jurídico, configurou o principal equívoco do Tribunal, uma vez que possibilitou que os indivíduos submetidos a tais julgamentos, que fossem participantes dessas entidades, no período a partir de 1939 até o final da guerra, com voluntariedade na adesão e ciência do caráter imoral das atividades da mesma, tivessem contra si prova pré-constituída da ilicitude de suas atividades. Asim, o Tribunal permitio o estabelecimento posterior de um sistema de responsabilidade objetiva dos acusados, o que, ainda hoje, não pode ser aceitado como em conformidade com qualquier sistema jurídico penal e, por consequência, alimenta aos críticos do Tribunal com argumentos fortes e corretos.

Este erro pode estar sendo, agora, repetido com os presos de Guantánamo e a única forma de garantir sua não ocorrência e por meio da realização de julgamentos públicos para estas pessoas, como já foi afirmado acima.

Contudo, o equívoco do Tribunal de Nuremberg antes referido não tem a força necessária para invalidar seus trabalhos e a importância do mesmo para o Direito Internacional.

De uma maneira geral, o Tribunal aceitou como válidas as quatro acusações feitas contra os réus, condenando-os ou absolvendo-os individualmente, em todas ou algumas das mesmas, conforme as circunstâncias pessoais dos feitos de cada um.

Deve ser ressaltado, por fim, que a aceitação da acusação de crimes contra a humanidade se fez em conexão com os crimes de guerra, em função das condutas ilícitas previstas nas Convenções de Haia e Genebra e da jurisdição que lhe foi atribuída pelo Convênio Constitutivo. Assim, o Tribunal somente considerou as condutas perpetradas pelos réus no período posterior à deflagração da guerra (01/09/1939), afastando a punibilidade das condutas ocorridas antes de tal data, apesar de reconhecer-lhes o caráter ilícito, por sua própria falta de competencia jurisdicional.

Tal fato determinou que, para os julgamentos que se seguiram, acima referidos, o Convênio Constitutivo fosse ligeiramente modificado, de forma que a descrição dos crimes contra a humanidade fosse reformulada, desvinculando-se essencialmente dos crimes de guerra, para então abarcar também as condutas relativas ao período precedente a 1939.

A conclusao final deste estudo é de que a importancia do Tribunal de Nuremberg para o desenvolvimento do Direito Internacional Publico é incontestavel.

A nosso ver, conforme já afirmamos acima, a partir de construções jurídicas avançadas para a doutrina de seu tempo, o Tribunal pode elaborar, na sentença que prolatou, premissas, conceitos e teses que, hoje, encontram-se arraigados nas bases de todo o Direito Internacional Público, que na última metade do século XX passou a compreender o ser humano sob uma dimensão diferenciada da tradicional.

Efetivamente o Tribunal contribuiu enormemente para a construção da premissa segundo a qual o Direito Internacional Público tem seu fundamento no reconhecimento incondicional dos direitos fundamentais da pessoa humana e na proteção da dignidade intrísica ao ser humano.

Noções e conceitos como a subjetividade jurídica do indivíduo na ordem internacional, formação do jus cogen, jurisdição universal ou relatividade dos princípios de direito em face de valores humanos mais relevantes, mesmo que ainda não aceitas com unanimidade pela doutrina (como fizemos questão de deixar consignado), inegavelmente estão presente no atual Direito Internacional Público.

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Estes conceitos encontraram seu primeiro arrimo explícito, incluso com consequências pragmáticas, nos trabalhos levados a efeito pelo Tribunal de Nuremberg, que longe de ser um instrumento político de vencendores contra vencidos, foi uma instituição séria e moderna, cujo fundamento era absolutamente jurídico e cujas razões de decidir se pautaram, sem sombra de dúvida, em parâmetros jurídicos absolutamente defensáveis e afastados dos imperativos de ordem política ou moral presentes em tal mometo histórico.

A lição maior e final que se pode extrair do trabalho do Tribunal de Nuremberg para a atualidade, é a de que mesmo em um contexto histórico impregnado de pressões políticas e morais, como o de hoje, é possvel estabélecer parámetros jurídicos que condicionem as ações dos Estados de forma a que não solapem as normas de direito internacional e o valor da dignidad humana, em seu suposto anseio de fazer justiça ou proteger os direitos humanos 27.


Bibliografia

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Rangel, Vicente Marotta. A Declaração Universal dos Direitos do Homem e o seu vigésimo aniversário in Estudo dos problemas brasileiros nº 70. São Paulo, Brasil - 1969.

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SANCHÍS, Luis Prieto. Ideología e interpretación jurídica. Editorial Tecnos S.A., Madrid –1993 (Reimpresión).


Notas

1. Esta premissa pessoal foi desenvolvida e explicitada em nosso livro Os Direitos da Criança e os Direitos Humanos. Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, Brasil – 2001.

2. a) Declaração de St. James (13/01/1942) dos governos no exílio, estabelecidos em Londres; b) Formação da Comissão das Nações Unidas para os Crimes de Guerra (17/10/1943); c) Declaração das 3 potências em Moscou (30/10/1943)- EUA, URSS e Reino Unido, em nome das 35 nações aliadas.

3. Vale mencionar que no momento da publicação da Sentença peol Tribunal, 30 nações já tinham aderido ao mencionado Convênio.

4. A presidência do Tribunal foi atribuida ao Lord Justice Sir Geoffrey Lawrence (Reino Unido); os outros membros foram: o Attorney-General Francis Biddle (USA); o Professor Donedieu de Vabre (France); e o General J.T. Nikitkenko da Corte Suprema Soviética (URSS).

5. Foram 3 pessoas não condenadas, 12 condenações a morte, 3 prisões perpétuas, 2 prisões de 20 anos, uma condenação de 15 anos e uma de 10 anos.

6. Nestas cortes, 36 pessoas foram condenadas a morte, 38 foram absolvidas, 23 foram condenadas a penas perpétuas e as outras sentenças foram de aprisionamento entre um ano e meio e 25 anos, totalizando 177 acusados processados.

7. Tais julgamentos tiveram por fundamento legal, em especial, os artigos 09, 10 e 11 do Estatuto do Tribunal, em face da declaração de "caráter criminoso" de associações e pessoas jurídicas feita pela corte principal com base na jurisdição que lhe foi atribuída pelo art. 6° do Acordo.

8. Exemplificativamente, basta dizer que as Cortes levadas a efeito pelas forcas norte-americanas eram compostas principalmente por juízes de tribunais intermediários americanos, todos civis.

9. Nesse sentido, vale transcrever as opiniões de alguns juristas, a saber:

"... os julgamentos dos criminosos de guerra de Nuremberg e Tóquio... constituiram-se en uma aberração... seja pela ausencia de preceito legal anterior aos fatos ilícitos (nullum crimen, nulla poena sine praevia lege penali), quer pela parcialidade da Corte, integrada pelos vencedores da guerra, ao ferir o princípio de que nemo iudex in causum suum".

PINTO, Fernando. A presença do costume e sua força normativa, Rio de Janeiro, 1982, pgs. 83. e 84.

"Temos que o Tribunal Militar Internacional que funcionou en Nuremberg, bem assim o seu similar de Tóquio, foi de encontro ao direito vigente. Com efeito, inexistia qualquer norma jurídica que considerasse crime os atos práticados pelos que foram julgados e, além disso, como poderia esse Tribunal julgar apenas os vencidos, dado que os vencedores praticaram atos idénticos (bomba atómica en Hiroshima e Nagasaki), sem esquecer que a URSS dividiu com a Alemanha, nao início da guerra, a partilha da Polônia."

ARAÚJO, Luis Ivani de Amorim. Direito Internacional Penal. Ed. Forense, Rio de Janeiro –2000, pg. 73.

Além disso, outras críticas de caráter absolutamente político/ideológico podem ser encontradas no "site" https://www.heretical.com/supps/nganport.html.

10. "article 6- The Tribunal established by the Agreement referred to in Article I hereof for the trial and punishement of the major war criminals of the European Axis countries shal have the power to try and punish persons who, acting in the interests of the European Axis countries, whether as individuals or as members of organisations, committed any of following crimes.

The following acts, or any of them, are crimes coming within the jurisdiction of the Tribunal for wich there shall be individual responsibility:

Leaders, organisers, instigators and accomplices participating in the formulation or execution of common plan or conspiracy to commit any of the foregoing crimes are responsible for all acts performed by any persons in execution of such plan."

11. Em especial as críticas de Luis Ivani de Amorim ARAÚJO.

12. "article 6-...

The following acts, or any of them, are crimes coming within the jurisdiction of the Tribunal for wich there shall be individual responsibility:

a)Crimes against peace: namely, planning, preparation, initiation or waging of a war of aggression, or a war in violations of international treaties, agreements or assurances, or participation in a common plan or conspiracy for the accomplishment of any of the foregoing;

b)War crimes: namely, violations of the laws or customs of war. Such violations shall include, but not be limeted to, murder, ill-treatment or deportation to slave labour or for any other purpose of civilian population of or in occupied territory, murder or ill-treatment of prisioners of war or persons on the seas, killing of hostages, plunder of public or private property, wanton destruction of cities, towns or villages, or devastation not justified by military necessity;

c)Crimes against humanity: namely, murder, extermination, enslavement, deportation, and other inhumane acts committed against any civilian population, before or during the war, or persecutions on political, racial, or religious grounds in execution of or in connection with any crime within the jurisdiction of the Tribunal, whether or not in violation of the domestic law of the country where perpetrated."

13. Vale transcrever uma parte dessas conclusões:

"Est-ce à dire que les incriminations et les sanctions d’un tel Code puissent revêrtir la précision et la fixité d’une législation interne? Nous ne le pensons pas. Les facteurs divers qui ont déterminé jusqu’ici la mobilité, l’instabilité de la société des Etats, et qui expliquent les formes chageantes de la délictuosité internationale n’ont pas arrêté leur action, depuis le jugement de Nuremberg. Il est de l’essence du droit international d’être, en partie, un droit coutumier." DONNEDIEU DE VABRES, Henri. "Les process de Nuremberg devant les principes modernes du droit penal". Recueil des Couers, 70, vol. I. - 1947. Acadêmie de Droit International de La Haye. Martinus Nijhoff Pablishers, Dordrecht/Boston/London, pg. 575

14. Faziam parte desse corpo jurídico o então juiz da Suprema Corte dos Estados-Unidos, ROBERT H. JACKSON (um dos idealizadores do próprio Tribunal de Nuremberg), NORMAN BIRKETT (também do grupo norte-americano, redator final da sentença e dos votos dos julgadores) e MURRAY C. BERNAYS, igualmente dos EUA, que havia tido papel primordial no convencimento dos demais países quanto à necessidade de um julgamento dos criminosos de guerra, em vez da tese da execução sumária, que, a princípio, havia sido adotada pelos ingleses (inclusive por Churchill) e pelos soviéticos (inclusive por Stalin).

15. 07/03/1936 – Rhineland foi reocupada e fortificada; 12/03/1938 – invasão da Austria; 15/03/1939 - ocupação da maior parte da Czechoslovakia; 01/09/1939 - invasão da Polonia; 09/04/1940 – invasão da Dinamarca e Noruega; 10/05/1940 – invasão da Belgica, Holanda e Luxemburgo; 06/04/1941 – invasão da Grécia e da Iuguslavia; 22/06/1941 – invasão da Rússia;

16. Os advogado Doutores Hans Marx, Otto Stahmer, Fritz Sauter e Gunther Von Rohscheidt.

17. Nesse sentido as observações de Luis Jimenez de ASÚA, (Tratado de Direito Penal, 1950, tomo II, Buenos Aires, págs. 999. e seguintes), bem como, Andre GONçALVES PEREIRA e Fausto QUADROS (Manual de direito internacional público, 3ª. ed., Coimbra, 1993, pg. 383) que chegaram a afirmar a respeito do Tribunal de Nuremberg:

"... é decerto duvidosa a sua legalidade, pois, se não consegue demonstrar que tais crimes estavam previstos pelo Direito Internacional comum, tem se de concluir que se violou a regra nullum crimen, nulla poena sine lege".

18. É curioso que seja esse o critério interpretativo que afasta tão forte princípio de direito penal uma vez que, conforme ensina Luis Prieto SANCHÍS, esse tipo de critério interpretativo foi adotado e desenvolvido ao extremo pelas cortes alemãs e pelo sistema do Reich, como forma de adequar a lei e a aplicação da justiça aos anseios do povo (naquele momento representado pelo Reich). Vale verificar que:"En el capítulo que aquí nos interesa, la doctrina nacionalsocialista nao se conformó con estímulos teóricos, sino que alento el judicialismo en el ámbito más sagrado e indiscutible del principio de legalidad. La Ley de 28 de junio de 1935 modificó en el sentido seguiente el parágrafo 2° del Código Penal del Reich: <<Será castigado el que comete un acto que la ley declara punible o que merezca serlo de acuerdo con el pensamiento fundamental de uma ley penal y el sano sentir del pueblo. Si ante un hecho nao ecuentra inmediata aplicación ningún precepto penal concreto, aquél será castigado con arreglo a la ley cuyo pensamiento fundamental resulte más adecuado>>. Sin duda, la admisión de la analogía penal constituía la más palmaria negación de los valores del racionalismo iluminista y del positivismo liberal que cimentaban la cultura jurídica moderna." (SANCHÍS, Luis Prieto. Ideología e interpretación jurídica. Editorial Tecnos S.A., Madrid –1993 (Reimpresión) pg. 44).

19. Afirmou DONNEDIEU:

"Le Tribunal n´exclut pas du droit international la règle nullum crimen, nulla poena sine lege. Mais il s´assouplit pour l´adapter aux variations multiples que des facteurs sociaus, téchniques, etc., impriment aux relations entre Etats. Ainsi entendue, la règle exige la connaissance, par l´agent, du caractère delitueux des faits imputés. Mais elle n´implique ni une définition rigoureuse de l´infraction, ni l´énonciation précise deis peines encourues. Les auteurs de la guerre d´agression ont reçu des avertissements suffisants pour en être rendus pénalement responsables." DONNEDIEU DE VABRES, Henri. "Les process de Nuremberg devant les principes modernes du droit penal". Recueil des Couers, 70, vol. I. - 1947. Acadêmie de Droit International de La Haye. Martinus Nijhoff Pablishers, Dordrecht/Boston/London, pg. 574.

20. Tal solução, ainda hoje, não foi aceita por parte da doutrina, que como Francisco REZEK, atualmente Juiz da Corte Internacional de Justica, afirma que:

"Por outro lado, é ilusória a idéia de que o indivíduo tenha deveres diretamente impostos pelo direito internacional público, independentemente de qualquer compromisso que vincule seu Estado patrial, ou seu Estado de residência. Numa circunstância excepcionalíssima – o segundo pós-guerra -, o Tribunal Internacional de Nuremberg entendeu de estatuir o contrário, para levar a cabo o julgamento e a condenação de nazistas. Ali, a tese de que os indivíduos podem cometer crimes suscetíveis de punicao pelo direito internacional, sem embargo da licitude de sua conduta ante a ordem jurídica interna a que estivessem suberdinados, não foi a única a merecer crítica, em doutrina, por sua falta de base científica. Nuremberg não constitui jurisprudência, em razao de sua exemplar singularidade. O produto daquele Tribunal não prova o argumento de que o direito das gentes imponha diretamente obrigações ao indivíduo. Prova apenas que, em determinadas circusntâncias, a correta formulação do raciocínio jurídico pode resultar sacrificada em face de imperativos de ordem ética e moral. No caso de Nuremberg nunca se poderá negar o peso do imperativo ético que impôs o sacrifício de certos princípios elementares de direito penal." (REZEK, Francisco. Direito Internacional Público – curso elementar. Ed. Saraiva, Sao Paulo, Brasil – 2000. pg.147)

21. Verifique-se que esse mesmo tipo de construção jurídica doutrinaria é utilizada posteriormente, pela ONU e pela Corte Internacional de Justica, para conferir obrigatoriedade aos termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, como expressão de direito consuetudinário e verdadeiro "jus cogen", e fundar na mesma a base de todo o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, estruturado em diversos Pactos, Convenções e Declarações. Tanto é assim que Vicente MAROTTA RANGEL, consignou "a extrema interdependência da Declaração para com as duas outras fontes de Direito Internacional: os princípios gerais de direito, de que ela é, em grande parte, testemunho e porta-voz, e de cuja natureza não pode deixar de participar... ; e os costumes internacionais, de que ela seria instrumento de explicitação" (Rangel, Vicente Marotta. A Declaração Universal dos Direitos do Homem e o seu vigésimo aniversário in Estudo dos problemas brasileiros nº 70. São Paulo, 1969, pg. 12.). Tal assentiva também se confirma pela Corte Internacional de Justiça, que em diversos julgados fundamentou suas decisões em artigos específicos da Declaração Universal. Exemplificativamente podem ser tomadas as decisões prolatadas nos casos Peruano-Colombiano de Asilo - 1950, fundada nao artigo 14 da Declaração Universal, relativo ao direito de asilo; da Companhia de Petróleo Anglo-Iraniana - 1952, fundada na proclamação do direito de propriedade estabelecida nao artigo 17 da Declaração Universal; e Nottenbohm, fundada nao direito à nacionalidade, conforme previsto nao artigo 15 da Declaração Universal.

22. Também nesse ponto, em particular, pode-se dizer que o Tribunal agiu de forma avançada em relação à doutrina de seu tempo uma vez que, além de confirmar a reponsabilidade internacional do indivíduo, de forma indireta prescreveu a assunção pelo indivíduo de direito e proteção diretamente decorrentes de tratados internacionais, como a antever uma faceta até hoje debatida da subjetividade jurídica internacional do indivíduo.

23. Tal postura do Tribunal também encontra-se alicerçada no artigo 7 do acordo, que explicitava:

"article 7 – The official position of defeands, whether as Heads of State or responsible officials in Government Departaments, shall not be considered as feeing them from responsability or mitigating punishment."

24. Nesse sentido o professor francês concluiu que o Tribunal "se reconnaît une vocation universelle à l’effet de juger les grands crimninels de guerre qui ont violé certains droits fondamentaux de l’homme. Il prend ouvertement parti pour le droit international public nouveau qui pour sujet, non seulement l’Etat, mais l’individu." DONNEDIEU DE VABRES, Henri. "Les process de Nuremberg devant les principes modernes du droit penal". Recueil des Couers, 70, vol. I. - 1947. Acadêmie de Droit International de La Haye. Martinus Nijhoff Pablishers, Dordrecht/Boston/London, pg. 576.

25. Ressalte-se, nesse sentido, novamente, a opinião de Francisco REZEK, segundo a qual: "Não tem pessoalidade jurídica de direito internacional os indivíduos, e tampouco as empresas, privadas ou públicas. A proposição, hoje frequente, do indivíduo como sujeito de direito das gentes pretende fundar-se na assertiva de que certas normas internacionais criam direitos para as pessoas comuns, ou lhes impõe deveres. É preciso lembrar, porém, que os indivíduos – diversamente dos Estados – não se envolvem, a título próprio, na produção do acervo normativo internacional, nem guardam qualquer relação direta e imediata com esse corpo de normas. (REZEK, Francisco. Direito Internacional Público – curso elementar. Ed. Saraiva, Sao Paulo, Brasil – 2000. pg.146)

26. "article 8 – The fact that the defedant acted persuant to order of his Government or of a superior shall not free him from responsability, but may be considered in mitigation of punishment if the Tribunal determines that justice so requires."

27. Nesse sentido também são as afirmações de Antonio CASSESE em "Terrorism is also disrupting some crucial legal categories of international law" in European Journal of International Law, vol. 12, n° 5, pgs. 993/1001, november 2001, Oxford University Press, Glasgow, Great Britain.

Sobre o autor
Sérgio Augusto G. Pereira de Souza

procurador da Fazenda Nacional, mestre em Direito Internacional pela USP, doutorando em Estudos Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona (Espanha), autor do livro: "Os Direitos da Criança e os Direitos Humanos", Ed. Sergio Fabris, Porto Alegre, 2001.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Sérgio Augusto G. Pereira. Afeganistão, Guantánamo, Iraque e a suposta defesa de direitos humanos.: Reflexões sobre o Direito Internacional Público atual e as lições de Nuremberg. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -243, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3440. Acesso em: 19 dez. 2024.

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