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Afeganistão, Guantánamo, Iraque e a suposta defesa de direitos humanos:

reflexões sobre o direito internacional público atual e as lições de Nuremberg

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Sumário: I – Introdução ; II – Preliminares , a) o contexto histórico. , b) a jurisdição do Tribunal. ; III – Acusação, a) os tipos penais surgidos, b) o indiciamento; IV – Questões Jurídicas Principais, a) a legalidade e a retroatividade., b) as possíveis convenções de direito internacional aplicáveis., c) a responsabilidade internacional do indivíduo., d) a hierarquia funcional.; V – Considerações e Conclusões Finais; Bibliografia


I – Introdução

No cenário internacional atual é possível vislumbrar ocorrências que transcendem o aspecto momentâneo a elas atribuído pelos meios de comunicação, uma vez que se baseiam ou se confrontam com acontecimentos e paradigmas jurídicos já estabelecidos com anterioridade pelo Direito Internacional.

Tal é o que ocorre com o julgamento levado a cabo na Haya, no qual é apresentado como indiciado o senhor Milosevic, assim como com as consequências dos atos terroristas sucedidos em 11 de setembro de 2001, em especial com a intervenção militar feita pelos Estados Unidos no Afeganistão, pela eventual nova intervenção no Iraque e pela possibilidade de julgamento militar dos prisioneiros detidos em Guantánamo, na base militar americana de Cuba.

O objetivo deste estudo, então, é demonstrar a importância do Tribunal Militar de Nuremberg para o desenvolvimento de conceitos relacionados ao direito internacional atual que sustentam, influem ou confrontam, os acontecimentos mencionadas no parágrafo anterior, em especial com respeito à proteção dos direitos humanos e à responsabilização internacional individual das pessoas.

Neste sentido, parte-se de uma pequena analise do contexto histórico antecedente ao Tribunal de Nuremberg para, então, verificar-se a principal questão preliminar do caso, ou seja, a jurisdição de tal Tribunal.

A partir deste ponto, é feita uma verificação do estabelecimento formal da acusação, com os tipos penais que tiveram que ser criados e o indiciamento feito, para, depois, de uma forma conjunta, verificar-se as principais teses plantadas pela defesa dos acusados e, também conjuntamente, as decisões do Tribunal com respeito a cada uma dessas teses.

Necessário deixar claro desde o principio que este estudo foi feito tendo em conta duas premissas fundamentais e pessoais. A primeira se estabelece no sentido de que o Tribunal desenvolveu suas funções estritamente baseado em critérios jurídicos, como vai ser explicado mais a frente, ou seja, aqui se refuta, em princípio, a função política do Tribunal, que seguramente também tem sua importância. A segunda premissa diz respeito a uma concepção pessoal dos direitos humanos e, por consequência, da possibilidade da pessoa humana vir a ser considerada como um sujeito pleno de direito internacional.

Com efeito, esta segunda premissa anterior e pessoal é colocada de maneira que, para este estudo, o desenvolvimento dos ordenamentos jurídicos internacional, supranacional e nacionais, hoje, não é possível sem uma perspectiva direta de aplicação dos direitos fundamentais das pessoas, sejam quais sejam suas gerações, até porque as gerações de direitos humanos não são compartimentos estanques que não se meclam, mas são integradas e complementares umas das outras e conduzem a uma verdadeira universalização dos direitos humanos, sob o respeito fundamental à dignidade da pessoa humana [1]. Este respeito fundamental conduz, necessariamente, à consideração de que a pessoa humana deve ser compreendida como um dos plenos sujeitos de direito internacional.

Sob estas considerações, a questão final que deve ser respondida por este estudo é: qual a importância do Tribunal de Nuremberg para o desenvolvimento do ordenamento jurídico internacional e, especificamente, para a construção do sistema internacional de proteção dos direitos humanos?

Pode ser adiantado, desde já, que a hipótese que responde à questão antes mencionada, e que será estabelecida na conclusão deste estudo, vai afirmar a importância fundamental dos trabalhos do Tribunal de Nuremberg para o Direito Internacional latu senso, tendo em conta os conceitos e fundamentos por primeira vez explicitamente formulados pelo mesmo, fundamentais ao desenvolvimento atual do Direito Internacional, como aqui será visto.


II – Preliminares

a) o contexto histórico -

É possível dizer que os acontecimentos históricos que desembocaram na criação de um Tribunal Militar Internacional como o de Nuremberg antecederam à própria ocorrência da II Guerra Mundial.

De fato, ao final da I Guerra Mundial, em face das diversas violações do ius in bellun perpetradas pelo regime alemão, as Nações vencedoras da Guerra fizeram constar do tratado de Versalhes (arts. 227 e 228) dispositivos que possibilitariam o julgamento de dirigentes e pessoal militar alemão que houvessem cometido atos de violação às "leis e costumes da guerra", ou a "moralidade e santidade dos tratados".

Com base en tais dispositivos, foi solicitada à Holanda a extradição do "Kaiser Wilhelm II" para julgamento e, à Alemanha a extradição de diversos lideres militares. Todas as solicitações foram negadas, havendo apenas a condenação dos militares, de forma branda, pela própria Alemanha.

Tais fatos provocaram repulsa internacional e motivaram a que, já no decorrer da II Guerra Mundial, houvessem declarações das Nações Aliadas no sentido de que os crimes de guerra e atrocidades cometidas seriam exemplarmente julgados [2].

O Tribunal de Nuremberg foi estabelecido em 20/11/1945 e sob seus auspicios foram julgados 22 membros de governo alemão e militares de comando.

A formação do Tribunal de Nuremberg se deu através de um Convênio Internacional, celebrado entre os EUA, o governo provisório da França, o Reino Unido e a URSS, firmado em Londres em 08/08/1945 e aberto à adesão de todas as nações [3]. Desta forma a localização geográfica dos acusados não seria obstáculo à realização da Justiça. Ademais, tal documento estabeleceu o fundamento legal para o indiciamento dos acusados.

O citado Convênio possuía, ainda, em seus anexos, os Estatutos do próprio Tribunal através do qual se estabelecia os aspectos formais procedimentais. Em quanto à sua composição, o Tribunal era formado por juízes do mais alto grau, escolhido sob critérios de excelência e de supranacionalidade [4]. A sentença final foi prolatada em 30/09/1946 [5].

Após o julgamento principal acima referido, outros 13 julgamentos foram realizados por cortes sediadas em Nuremberg [6], baseadas nos estatutos do Tribunal aqui discutido [7], mas conduzidas pelas forças de ocupação da Alemanha sem um caráter de excelência supranacional em sua formação, como estabelecido para a Corte principal [8].

Efetivamente o Tribunal de Nuremberg representou um marco, tanto político quanto histórico e jurídico. Seu estabelecimento e o desenvolvimento de suas atividades até hoje sucitam criticas e elogios, seja no campo político, seja no campo jurídico.

Muitos criticam o Tribunal compreendendo-o como tendo sido um palco de vencedores contra vencidos; ou porque os Aliados teriam cometido práticas semelhantes às dos integrantes do Eixo que não foram julgadas; ou ainda afirmando que o mesmo nunca poderia ser considerado imparcial uma vez que os juízes eram das potencias vencedoras [9].

Partindo de uma opinião pessoal, contudo, neste estudo se considera que tais críticas são dotadas de um caráter muito mais político que jurídico e estes dois aspectos não podem ser mesclados.

Do ponto de vista jurídico, que é a vertente deste pequeno estudo, o objetivo aqui é conseguir demonstrar que o Tribunal de Nuremberg enfrentou todas as questões passíveis de críticas jurídicas, dando soluções jurídicas às mesmas, o que, por consecuência o trasformou en um fator de desenvolvimento e reconhecimento do direito internacional então vigente, ainda aproveitável nos acontecimentos que se ocorrem nete ano de 2002 e que já foram mencionados na introdução.

b) a jurisdição do Tribunal –

Em relação às questões enfrentadas pelo Tribunal, necessario dizer que a questao preliminar, proposta pela defesa dos acusados, foi exatamente no sentido de negar a legalidade da existencia do Tribunal e de sua jurisdição.

Assim, questionou-se se as potencias vitoriosas teriam o direito de constituir tal Tribunal, se havería suporte legal no direito internacional então vigente para a sua criação e para a responsabilização individual de pessoas, ou seja, qual seria a competência jurisdiccional do Tribunal.

No mesmo sentido se baseia hoje a primeira linha de defesa do senhor Milosevic perante a Carte de Haya, questionando a possibilidade jurídica dos países do mundo, por meio das Nações Unidas e em especial por seu Conselho de Segurança, estabelecerem um tribunal "ad hoc" para julgar os responsáveis pelas barbaridades ocorridas na antiga Ioguslavia, tendo em conta as competencias deste mesmo Conselho de Segurança.

A tais questões o Tribunal de Nuremberg, ao seu tempo, repondeu exclusivamente baseado em seu Convênio Constitutivo e no direito internacional então vigente afirmando, específicamente, que é universalmente reconhecido que qualquer nação, mesmo que isoladamente, tem o direito de constituir cortes especiais para a correta e justa aplicação do Direito, estabelecendo suas regras de funcionamento e de competência.

Também afirmou o Tribunal, do ponto de vista do Direito Internacional relativo aos tratados, que as nações celebrantes do Convênio Constitutivo do qual o mesmo se originou tinham plena capacidade para celebrar tratados internacionais e, em face da rendição incondicional da Alemanha, aliada à premissa acima afirmada, também tinham a possibilidade jurídica de, conjuntamente, estabelecer um tribunal com a jurisdição em tela.

Relativamente a tal jurisdição, o Tribunal afirmou que a mesma foi definida e limitada nos exatos termos do Convênio Constitutivo e, em especial no tocante à responsabilidade dos individuos, estava expressada nos termos do artigo 6° [10] deste Convênio, que nada mais era do que a expressão do Direito Internacional Público existente, além de uma contribuição para o desenvolvimento deste mesmo Direito Internacional, o que, por fim, afastou a argumentação de que a criação do Tribunal seria um mero exercício de poder dos vitoriosos.

De fato, a simples leitura do art. 6° do Convênio permite verificar que são descabidas as críticas antes referidas [11] relacionadas ao não julgamento das suspostas violações também perpetradas pelas potências vencedoras, uma vez que o Tribunal estava impossibilitado de julgar qualquer outra violação que não fossem as cometidas pelos "membros europeus do Eixo", por um expresso dispositivo legal que limitava sua competência, a exemplo do que ocorre em qualquer ordenamento jurídico interno, que limita, em função de suas próprias discricionariedades, as competências dos juízos internos em relaç.o às pessoas, matérias ou valores, sem que venha a ser alegada qualquer "causa de injustiça" em tais limitações.

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III - Acusação

a) os tipos penais surgidos -

Afastadas as questões premilinares acima referidas, cabe verificar quais as condutas que foram atribuídas aos individuos acusados e como as mesmas poderiam vir a ser tipificadas penalmente.

Nesse sentido cabe, inicialmente, assinalar que o Convênio, também em seu artigo 6° [12], trauxe a primeira definição positiva dos possíveis crimes de responsabilidade internacional do indivíduo ao delimitar a jurisdição do tribunal, dividindo-os em 3 classes básicas, a saber:

1. Crimes Contra a Paz: compreendendo as ações correspondentes ao a) Planejamento, preparação, início ou manutenção de uma guerra de agressão ou de uma guerra em violação a tratados internacionais, acordos ou compromissos; e b) Participação em um plano comum ou conlúio para a execução de qualquer dos atos mencionados no item anterior;

2. Crimes de Guerra: compreendendo as ações correspondentes as violações das leis ou costumes da guerra, que incluem, não sendo limitados a tanto, o assassinato, os maus-tratos ou a deportação para trabalho escravo ou para qualquer outro fim de população civil de território ocupado, assassinato ou maus-tratos de prisioneiros de guerra, de marinheiros, extermínio de reféns, pilhagem de propriedade pública ou privada, destruição maliciosa de cidades ou vilas ou devastação não justificados por necessidade militar.

3. Crimes contra a Humanidade: compreendendo as ações correspondentes ao assassinato, extermínio, escravização, deportação e outros atos desumanos contra uma população civil, ou perseguições nos terrenos político, racial ou religioso, quando tais atos são perpetrados ou tais perseguições são levadas a cabo na execução ou em conexão com qualquer crime contra a paz ou qualquer crime de guerra.

Uma questão clássica que surge ao verificar-se o dispositivo acima mencionado e as classes básicas de delitos descritos é a ausência de um "tipo penal fechado", sendo essa uma das críticas específicas da doutrina penalista, supondo uma violação do princípio da legalidade.

Em que pese o fato de que, por uma questão de método, tal argumentação seja aqui refutada apenas ao cuidar-se especificamente das defesas propostas não tribunal, convém, agora, fazer referência às conclusões que o próprio Juiz DONNEDIEU chegou ao ministrar, posteriormente a seus ofícios no Tribunal, um curso na Academia de Direito Internacional de Haya, segundo as quais, para o Direito Internacional, mesmo que houvesse um "código penal internacional" (como atualmente se projeta), este seria composto por "tipos penais" essencialmente abertos, uma vez que o próprio Direito Internacional é construído a partir de conceitos relativamente flexíveis, ou seja, é um direito consuetudinario (costumeiro) [13].

b) o indiciamento -

Com a finalidade de configurar o indiciamento, restava, por tanto, verificar quais as ações dos acusados que poderiam ser enquadradas nos "tipos penais" supra-mencionados e como se daria tal enquadramento. Tal tarefa correspondeu aos ofícios dos membros do corpo jurídico de acusação [14], tendo en vista as diversas práticas perpetradas pelos acusados.

Neste sentido, o indiciamento dos acusados foi feito tendo por base quatro acusações principais, levando-se em conta as condutas dos mesmos e os tipos penais discriminados no Convênio, a saber:

1ª.) acusação: plano comum de conspiração, na qual aos acusados era imputada a participação conjunta na formulação e execução de planos e estratégias para cometer crimes contra a paz, a humanidade e crimes de guerra, no seio do Partido Nazista como um todo, cujos objetivos seriam a abrrogação dos dispositivos e normas estabelecidos no Tratado de Versalhes, bem como a aquisição, pela Alemanha, de novos territórios, en detrimento aos países fronteiriços, o que se confirmaria pelas invasões que começaram en 07/04/1936 [15];

2ª.) acusação: guerra de agressão, na qual aos acusados era imputado o planejamento e execução, en violação a inúmeros tratados e normas de direito internacional, das guerras de agressão mencionadas na primeira acusação;

3ª.) acusação: crimes de guerra, conforme enumerados no artigo 6° do Acordo, cometidos pelos acusados no período entre 01/09/1939 e 08/05/1945, tanto em território alemão como nos territórios ocupados;

4ª.) acusação: crimes contra a Humanidade, cometidos pelos acusados nos anos precedentes a 08/05/1945, tanto na Alemanha como nos territórios ocupados, cujas ações incluíam assassinato e perseguição de indivíduos pertencentes a grupos políticos, raciais ou religiosos, ou mesmo qualquer pessoa que fosse suspeita de ser contrária ao plano comum de conspiração afirmado na acusação 01, bem como, os fatos mencionados na acusação 03, que além de crimes de guerra também se constituíam em crimes contra a humanidade.


IV – Questões Jurídicas Principais

Todos os acusados foram defendidos por advogados alemães, dos quais alguns [16], mesmo antes da instalação do Tribunal, realizaram uma moção de repúdio (19 de novembro de 1945), sendo que a maioria das defesas foram centradas na premissa de que a Corte Militar era um tribunal de exceção, constituído ex post facto com a finalidade precípua de condenar - e não de julgar - os acusados, como forma de vingança dos vencedores contra os vencidos, em frontal desrespeito princípio básico "nullum crimen, nulla poena sine praevia lege".

Uma vez mais, cabe aqui mencionar que também é esta uma das estratégias de defesa do senhor Milosevic perante o Tribunal da Haya, que faz questão de a todo tempo afirmar que este Tribunal é apenas uma representação teatral de uma "vendetta".

Assim, de forma a sistematizar este estudo, as principais teses de defesa serão analisadas conjuntamente com a interpretação que o Tribunal fez das mesmas.

a) a questão da legalidada e da retroatividade:

a argumentação –

Para os advogados de defesa o artigo 6º do Convênio Constitutivo era dotado de enunciados vagos e tipos extremamente abertos, figuras delituosas inexistentes quando da prática dos atos imputados aos réus, que por si só violariam o principio "nullum crimen, nulla poena sine praevia lege".

Ademais, segundo a defesa, a submissão "ex post facto" de penalidades aos réus seria uma abominação a todas as nações civilizadas, sendo certo que nenhuma soberania e nenhum acordo ou estatuto haviam fixado tais condutas como criminosas, ou estabelecido claras penas contra as mesmas, anteriormente ao momento em que foram cometidas. Tal argumentação, mesmo depois da prolação da sentença do Tribunal, amealhou (e vem amealhando até hoje) boa parte da doutrina [17].

decisão do Tribunal –

O Tribunal rejeitou essa linha de argumentação asseverando que, para o caso, o princípio em tela, como apresentado, não seria aplicável.

De fato, o que fez o Tribunal foi adotar um critério de interpretação do consagrado princípio penal mais voltado à aplicação material da justiça do que à mera "justiça formal", de forma a establecer uma jurisprudência de resultados, ao invés de adotar uma interpretação dogmática mais tradicional [18].

Assim é que o Tribunal afirmou que o princípio discutido não estabelece qualquer tipo de limitação à soberania dos Estados, no sentido de sua capacidade de empreender os meios e instrumentos necessários na busca de Justiãa material (como foi o Convênio, conforme verificou-se ao discutir-se a jurisdição do Tribunal).

Ao contrário, o Tribunal deixou calro que os princípios de direito penal devem trabalhar em consonância com um princípio geral de justiça, segundo o qual é injusto ficar impune aquele que sabe serem erradas as atitudes que perpetra, o seja, não é necessário que exista um dispositivo legal explícito definindo como criminosa uma conduta, é apenas necessário que o autor da conduta tenha ciência inequívoca de que a mesma não se coaduna com os preceitos mínimos de justiça e de direito.

O Tribunal, pois, não afasta o princípio "nullum crimen, nulla poena sine praevia lege", apenas o interpreta adequadamente ao contexto do Direito Internacional então vigente e essa foi a lição que DONNEDIEU, posteriormente, deixou expressa [19].

De forma a deixar clara essa sua visão, o Tribunal mencionou, por exemplo, en relação à primeira acusação imputada aos réus (crimes contra a paz) que seria inaceitável pensar que os mesmos, dirigentes que eram do Estado Alemão, não tivessem ciência dos acordos e tratados internacionais cuja Alemanha era parte e que passaram a ser violados pela invasões e ocupações que os mesmos determinaram.

Por outro lado, com relação à guerra de agressão (segunda acusação) o Tribunal asseverou, uma vez que a Alemanha era parte do Pacto Kellog-Briand, de 1928, que o mesmo era uma renúncia geral à guerra como meio de solução de controvérsias, cujos dispositivos, analizados a luz dos princípios gerais de justiça, dos costumes e leis das guerras (encontrados não apenas nos tratados, mas também nas interpretações dadas aos mesmos pelas cortes militares), deixavam nítido que a guerra de agressão não era apenas ilícita, mas também criminosa, sendo tal dedução perceptível aos réus.

Também com relação a terceira e a quarta acusações (crimes de guerra e crimes contra a Humanidade), o Tribunal demonstrou, por meio de vários dispositivos da Conveção de Haia de 1907 e da Convenção de Genebra de 1929, que as condutas atribuidas aos réus, no momento em que foram realizadas, já eram consideradas pelo direito internacional como passíveis de serem punidas, sendo certo, nas palavras do próprio Tribunal que "war crimes were commited when and wherever the Fuehrer and hs close associates thought them to be advantageous. They were for the most part the result os cold and criminal calculation…".

Ademais, novamente aquí podem ser feitas referências as lições de DONNEDIEU, já mencionadas anteriormente, no sentido de que, para o direito internacional, em face da flexibilidade do mesmo, é incabível imaginar-se um sistema penal de tipos absolutamente fechados.

b) a questão das possíveis convenções de direito internacional aplicáveis:

argumentação –

Com relação às diversas acusações, os advogados de defesa argumentaram ser inaplicáveis dispositivos de convenções internacionais que, por um lado, haviam sido denunciadas tempestivamente pela Alemanha ou, por outro lado, não haviam sido ratificadas pelos Estados vítimas da Alemanha.

No primeiro caso se enquadraria o Pacto entre a Alemanha e Polonia, que foi denunciado en 1934. No segundo, estariam as disposições da Convenção de Haia de 1907, tendo en vista o dispositivo de seu artigo 2, segundo o qual: "The provisions contained in the regulations (Rules of Land Warfare) referred in Article I as web as in the presente Convention do not apply except between contracting power, and then only if all the beligerents are parties to the Convention."

Assim, a invasão da Polonia, ponto chave da acusação de conspiração, não poderia ser considerada como illegal, e muito menos como uma "guerra de agressão". Por sua vez, os crimes de guerra e contra a humanidade previstos na Convenção de Haia não poderiam ser imputados aos acusados, uma vez que os beligerantes não eram partes da mencionada Convenção.

decisão do Tribunal –

Também essa argumentação foi rebatida pelo Tribunal, tendo en vista princípios de direito internacional e a verificação concreta dos fatos ocorridos.

Em relação a primeira vertente da argumentação, denúncia do pacto que prevía a manutenção permanente da paz com a Polonia, o Tribunal acertadamente observou que o ato internacional firmado entre as duas nações em 26/01/1930 foi explícitamente fundando no Pacto Kellog-Briand, de 27/08/1928, firmado entre 63 Estados, entre os quais se incluía a Alemanha (bem como Itália e Japão) e que estabelecia como ilegal o uso da força por um período de 10 anos.

Tal Pacto deixava claro que as nações a ele vinculadas não poderíam, de forma legal, fazer uso da força como instrumento de política internacional, sob pena de violação do mesmo.

Para o Tribunal, com base nas provas e relatos oferecidos pela acusação, ficou claro que a guerra iniciada contra a Polonia em 01/09/1939 foi planejada como uma guerra de agressão pelos acusados e que a denúncia do tratado, em falsas bases, em 1934, nada mais foi que um dos atos preparatórios de tal plano, que nítidamente demonstravam a intenção da Alemanha de fazer do uso da força um instrumento de política internacional, em violação ao Pacto Kellog-Briand.

Quanto à segunda vertente, inaplicabilidade da Convenção da Haia de 1907, o Tribunal enfrentou a questão dando nítidas indicações de que, avançado em relação a própria doutrina de seu tempo, estava pronto a dar ao direito internacional uma dimensão mais forte e vinculante, em relação aos termos de proteção da pessoa humana, antevendo como a sociedade internacional, numa tendência que se reforçaria posteriormente, iría cuidar das questões relativas aos direitos humanos.

Nesse sentido, o Tribunal entendeu não ser relevante o fato de determinados Estados estaren vinculados ou não à Convenção de Haia, sendo desnecessário pronunciar-se a respeito do cabimento da "cláusula de participação geral" (art. 2) da Convenção, uma vez que a mesma, no entender do Tribunal, indubitavelmente representou um avanço sobre o direito internacional existente ao tempo de sua adoção.

O Tribunal levou em conta, também, como a própria Convenção de Haia expressava, que a mesma devería ser considerada como uma tentativa de revisar as leis gerais e costumes de guerra (direito consuetudinário), já reconhecidos como existentes em 1907.

Ademais, passados mais de 30 anos desde sua adoção, em 1939 as regras ali postas eram reconhecidas por todas as nações civilizadas como declaração positiva de normas e costumes de guerra, ou seja, com carácter de obrigatoriedade (jus cogen). Assim, não havia que se falar em Estados partes ou não da Convenção de Haia [20], e a referência desta no contexto do artigo 6° do Convênio Constitutivo seria a expressão do sentimento da comunidade internacional nesse sentido [21].

Por tanto, o Tribunal aceitou como crimes de guerra e contra a humanidade, as condutas descritas no artigo 6° do Convênio em referência à violação dos artigos 46, 50, 52 e 60 da Convenção de Haia de 1907 e dos artigos 2, 3, 4, 46 e 51 da Convenção de Genebra de 1929, que por si só enquadravam as condutas dos réus, independentemente do fato dos Estados aos quais pertencíam as vítimas serem Estados Partes das mencionadas Convenções [22], afastando a pretensão da defesa.

c) a questão da responsabilidade do individuo:

argumentação –

Outro dos pontos principais da argumentação da defesa era a conceituação que a mesma tinha dos sujeitos de direito internacional, segundo a qual o direito internacional era concernente apenas às relações existentes entre diversas soberanias estatais.

Assim, tal ordem normativa conferiría direitos e obrigações exclusivamente aos Estados, afastando qualquer possibilidade de que os indivíduos pudessem ser responsabilizados por atos que, no plano internacional, eram cometidos pelos Estados.

Para a defesa, sendo os atos de responsabilidade do Estado, o indivíduo que os pratica, em última análise, estão protegidos pela soberania deste Estado, cabendo no máximo a resposabilização deste e nunca a dos indvíduos (teoria dos atos de governo).

decisão do Tribunal –

Tal argumentação foi enfrentada pelo Tribunal essencialmente em duas bases.

A primeira no sentido de demonstrar que historicamente o direito internacional impõe obrigações e deveres aos indivíduos, assim como para os Estados, através da enumeração de diversos precedentes judiciais estatais (jurisprudência interna de diversos países) onde indivíduos foram processados e considerados culpados por violações do "direito das nações", e particularmente do "direito da guerra".

Assim o Tribunal tinha o objetivo de deixar claro que esforço em julgar um indivíduo, fazendo-o responsável internacionalmente, era uma conduta uniforme e aceita como "conforme o direito" pela maioria das nações civilizadas, já naquele tempo, constituindo um direito consuetudinário internacional plenamente aplicável ao caso.

O segundo pilar de sustentação da decisão do Tribunal en relação a essa questão estabeleceu-se nas disposições já existentes no Tratado de Versalhes (especialmente art. 228), que explícitamente afirmavam a possibilidade de responsabilização internacional do indivíduo por violações ao direito internacional, além de afastar categoricamente a "teoria dos atos de governo", afirmando ser inaceitável que os autores de atos relevantes contra o direito internacional pudessen esconder-se por de tráz de suas "posições oficiais" para se tornarem impunes.

De forma extremamente veemente o Tribunal fêz questão de deixar claro que somente a punição das pessoas, e não dos Estados, entes abstratos conduzidos pelas pessoas, podería conferir efetividade aos preceitos de direito internacional.

Nesse sentiddo, vale transcrever algumas palavras da Sentença: "Crimes against international law are commited by men, not by abstract entities, and only by punishing individuals who commit such crimes can the provisions of international law be enforced".

Por fim o Tribunal afirmou que o princípio geral de direito internacional que torna imunes os representantes dos Estados não podería ser aplicado ao caso uma vez que as Potências, ao firmarem o Convênio Constitutivo que deu origem ao Tribunal, reconheceram um princípio superior a esse, que é exatamente a essência de tal Convênio [23], ou seja, que os indivíduos tem responsabilidades internacionais que transcêndem o próprio dever de obediência imposto aos indivíduos pelos Estados.

Também neste ponto o Tribunal, mais uma vez, tomou posição avançada en relação à doutrina de seu tempo, deixando clara a dimensão internacional do indivíduo.

Tal postura firme do Tribunal, posteriormente confirmada por DONNEDIEU [24] no já citado curso ministrado na Academia de Direito Internacional de Haia, em verdade, foi a "pedra fundamental" da construção do sistema internacional penal, com responsabilização internacional do indivíduo, que hoje permite tornar efetivos dispositivos como os da Convenção contra o Genocídio, ou possibilita a instalação de Tribunais Penais Internacionais "ad hoc", como os de Ruanda e Ioguslávia.

O mesmo pode ser dito com relação a importância da postura do Tribunal de Nuremberg quando se têm em conta o Tribunal Penal Internacional Permanente, cuja instalação hoje se aguarda, em que pese as vozes sempre discordantes que ainda não aceitam o indivíduo como um sujeito de direito internacional [25].

d) a questão da hierarquía funcional:

argumentação –

Como última das argumentações chaves da defesa, pleiteou-se a absolvição de vários dos acusados em face dos mesmos apenas estarem atuando sob ordens de Hitler, eventual único responsável individual por todas as atrocidades cometidas.

decisão do Tribunal

Esta argumentação foi sumariamente repelida pelo Tribunal, tendo em vista as diposições do art. 8° do Convênio Constitutivo, que expressamente afastava a irresponsabilidade do agente pelo cumprimento de ordens superiores, admitindo apenas a mitigação da pena [26].

Asseverou o Tribunal que tal dispositivo estava em consonância com a legislação interna de todas as nações e que, em geral, os ordenamentos internos consideravam, para efeitos de mitigação da pena, as reais possibilidades de escolhas morais que, diante da ordem manifestamente ilegal, tería o agente imputado pela conduta.

Nesse sentido específico, o Tribunal reafirmou sua intenção de atuar com firmeza em face das atrocidades cometidas, uma vez que considerou inaplicáveis quaisquer mitigações de pena, tendo en vista o caráter chocante e extensivo das condutas realizadas, que foram cometidas concientemente e sistematicamente, sem qualquer excúsa ou justificação militar.

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Sobre o autor
Sérgio Augusto G. Pereira de Souza

procurador da Fazenda Nacional, mestre em Direito Internacional pela USP, doutorando em Estudos Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona (Espanha)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Sérgio Augusto G. Pereira. Afeganistão, Guantánamo, Iraque e a suposta defesa de direitos humanos:: reflexões sobre o direito internacional público atual e as lições de Nuremberg. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3440. Acesso em: 26 abr. 2024.

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