Mais uma vez, o que era exceção virou regra. Tanto a punição quanto a premiação penal deveriam ser exceções; para casos não exatamente raros, mas também não regulares; para os extraordinários. Porém, tudo tende a virar ordinário. Na democracia racial - essa que faz de conta que as diferenças não se transformaram em desigualdades -, a corrupção é a regra da cultura nacional. O exemplo maior é dizer que, salvo exceções, os políticos profissionais são corruptos. O senso comum virou regra. O fato de que todos falam e replicam essa regra política, sem maior reflexão, prova que a corrupção não é exceção à regra. Aliás, para combater a corrupção, inventou-se esta tal de delação premiada: uma exceção à regra de que o direito deve punir os infratores (e não premia-los). Isto é, o sujeito colabora com as investigações, corrobora tudo de ruim que ele praticou, e em troca recebe inúmeras regalias e perdões legais. Sob esse direito premial, o réu confesso recebe benesses da lei. A lei estimula o dedo-duro; a lei premia a traição do “traíra”. Via de regra, ou seja, quase sem exceções, são peixes graúdos que recebem esses prêmios legais. Na prática, o réu confesso da primeira linha do crime múltiplo é agenciado e agraciado pelo Estado. Como no Brasil a corrupção é endêmica, sem começo e nem fim, ao sabor do vento, a delação premiada tornou-se, ela também, uma regra. Assim, somando-se tudo - corrupção pra todo gosto com apoio legal da delação premiada -, temos a prevalência do Princípio da Fractalidade. Na multiplicação dos pães e dos crimes, o maior criminoso é absolvido e abençoado, servindo de exemplo aos iniciantes. Acionado o Potencial de dano, a exceção do direito torna-se uma quase-determinação: um tira daqui, outro tira dali; tiramos todos, muito, de todos nós! Então, o que fazer? Como nossa regra de avestruz manda mudar a lei, mudamos a lei. Criamos a “delegação premiada”. Todos nós tiramos pouco ou muito e nada acontece. Assim, institucionalizamos a cultura do jeitinho, de levar vantagem em tudo, do toma lá, dá cá, e acabamos todos perdoados e nos perdoando. Os arautos combatentes da imoralidade se esquecem rapidamente que se prestaram a pequenos e grandes favores. Por fim, ampliamos a delação premiada para a categoria do grupo, da camada, dos estratos sociais. Delegação premiada. Todos absolvidos dos breves ou imensos pecados. Isso não é hipocrisia, é a pura brasilidade. Um exemplo simples e todos entendem: fulano diz: “Passe lá em casa! Vá sim, por favor!”. Beltrano responde: “pode crer, passo sim, o mais rápido possível”. E o que acontece? Nada. Ninguém vai à casa de ninguém. Quer outro caso? Não respondemos e-mail fingindo que não chegou. Mas, como assim? Quer dizer que no Brasil a mensagem eletrônica não chega? O problema é da tecnologia e não cultural? E o outro que solta gases em lugares sem ventilação? Será problema da natureza e não do caráter (ou de sua falta)? E a cola na escola? Só no Brasil quem cola se dá bem. Em culturas onde a exceção é exceção, a regra diz que: quem não vai bem na escola, vai mal na vida. Como a exceção se tornou regra, a escola de qualidade é um oásis. No Brasil, a honestidade é uma virtude. Tem livros e cursos sobre “ética nos negócios”. Por que será que se ensina “ética nos negócios” em cursos universitários, especialmente naqueles que formaram administradores públicos ou de empresas? Será por que a ética se tornou uma exceção? Pois bem, se a ética é uma exceção na vida comum do homem médio, isso condiz com a categoria sociológica e jurídica da “delegação premiada”. Ao menos nisso há coerência.
Vinício Carrilho Martinez
Professor da Universidade Federal de São Carlos
As Exceções matam a República.
Vinício Carrilho Martinez
Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).
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