Resumo: O presente artigo trata do tema do denominado processo informal de alteração da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, por meio da mutação constitucional. Inicialmente, o autor relata, de forma sucinta, um histórico acerca da criação do Poder Judiciário no país, abordando em especial um breve histórico do Supremo Tribunal Federal como órgão de cúpula do judiciário. Em seguida, traz uma profunda abordagem acerca da interpretação constitucional, para após tratar do tema da mutação constitucional, onde são colacionadas opiniões de renomados doutrinadores, estudando sua alegada inconstitucionalidade, bem como uma eventual ofensa ao princípio democrático da Separação dos Poderes, e uma eventual burla ao devido processo legal legislativo de modificação do texto constitucional. Faz um comparativo entre o processo formal de alteração constitucional (o devido processo legal legislativo de alteração da Constituição) e o processo informal de alteração por meio da mutação constitucional. Por fim, esmiúça casos emblemáticos em que a Suprema Corte aplicou o instituto e a sua repercussão na comunidade jurídica.
Palavras-chave: mutação constitucional, transição constitucional, alteração informal, constituição federal, interpretação constitucional, devido processo legal legislativo.
Introdução
À medida em que as relações vão se evoluindo, constata-se estar a realidade social passando por uma constante transformação, e com isso os anseios e as exigências da comunidade vão se modificando, de modo que o direito não pode ficar inerte a tudo isso, devendo estar ligado intimamente ao meio no qual encontra-se imbricado, acompanhando os avanços sociais, políticos, econômicos, tecnológicos, científicos, bem como as crenças e convicções morais e religiosas, ou seja, com os anseios e aspirações da sociedade como um todo. Assim, as constituições estão sujeitas a modificações necessárias à sua adaptação à realidade social.
Para isso, a mutação constitucional tem adquirido fundamental importância, no sentido de conferir ao direito a dinâmica que o meio social dele exige. Pois, ao passo em que a ordem constitucional necessita possuir um caráter predominantemente estático, rígido, representado especialmente no rigoroso processo para a alteração formal em seu texto, na busca da efetivação do princípio da supremacia da constituição, deve da mesma forma apresentar uma feição animada, dinâmica.
A mutação constitucional, método informal de modificação da constituição, trata-se efetivamente de, por meio de técnica de interpretação, bem como dos usos e costumes, empregar ao texto um sentido diverso ao até então existente, sem que haja alteração literal em seu conteúdo. Surge, especialmente, a partir do Poder Judiciário ao interpretar o texto constitucional em sua aplicação ao caso concreto. Com isso, como a nossa Carta Política reserva ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição, a ele cabe lançar mão do instituto da transição constitucional1 através de sua interpretação segundo a evolução da sociedade.
Em busca da efetivação dos direitos fundamentais, bem como em defesa dos princípios democráticos, a jurisprudência da suprema corte tem se utilizado desse processo informal de mudança da Constituição, conferindo ao seu texto novo significado, sentido e alcance.
Nessa esteira, o presente trabalho, sem a clara intenção de esgotar o tema, objetiva analisar o fenômeno da mutação constitucional em seus principais aspectos, expondo os posicionamentos mais relevantes acerca do tema, bem com sua aplicação em importantes julgados.
1. Poder Judiciário no Brasil – breve relato de seus aspectos históricos
No século XVI, com a colonização do Brasil, mais precisamente no ano de 1534, foram criadas as quatorze capitanias hereditárias, por D. João III, mediante cartas de doação e respectivos forais, as quais constituíram a primeira organização política e judiciária do país. Com o fracasso desse sistema, D. João III determinou, em 1548, a criação e instalação do sistema administrativo centralizado do Governo Geral, tendo Tomé de Souza como o primeiro Governador Geral do Brasil.
Ainda no mesmo século, agora em 1587, foi criado em Salvador o primeiro Tribunal da Relação (Tribunal da Relação, ou, simplesmente Relação, é a denominação dos tribunais judiciais de segunda instância de Portugal. Cada tribunal da Relação tem jurisdição sobre um distrito judicial.), que deixou de ser instalado por não terem seus integrantes chegado ao país. D. Filipe II, em 1609, mediante alvará ordenou que se constituísse a Relação do Brasil, com sede na cidade soteropolitana. Suprimida em 1626, foi ela reestabelecida por D. João IV em 1652.
Somente em 13 de outubro de 1751, mediante alvará expedido por D. José I, foi criada a Relação do Rio de Janeiro, suprimindo da da Bahia o título de Relação do Brasil. Tendo sido transferida de Salvador para o Rio de Janeiro a sede do Governo-Geral do Brasil em 1763. Em 1812, foi criada a Relação do Maranhão, e, em 1821, a Relação de Pernambuco, cujos recursos seguiam sempre para o Rio de Janeiro.
Antes da chegada da família real ao Brasil, que ocorreu no ano de 1808, após a invasão das tropas de Napoleão Bonaparte a Portugal, competia à Casa de Suplicação de Lisboa interpretar as ordenações e leis por meio de assentos com força obrigatória, por ocasião de alguma dúvida proposta por alguns dos desembargadores, juízes da causa, ou por glosa do chanceler, por entenderem que a sentença infringia expressamente as ordenações ou o direito.
Por meio do Alvará Régio, de 10.05.1808, foi instituído, tido como marco da fase colonial, o que veio a se caracterizar como sendo o primeiro órgão de cúpula da Justiça no país, a Casa da Suplicação do Brasil, e a esse respeito transcrevo breve texto extraído do sítio da Justiça Federal da 5ª Região:
“O pilar da organização da máquina judiciária em nosso país foi o Alvará de 10.05.1808, de Dom João VI, que criou a Casa da Suplicação do Brasil, elevando a antiga Corte do Rio de Janeiro à qualidade de primeiro Tribunal, posicionando superiormente às Relações locais das Capitanias, órgão de cúpula que atuou até 1828, com vistas a disciplinar e revisar as decisões das Relações, de molde a unificar a interpretação do direito conforme as peculiaridades brasileiras.”2
O Supremo Tribunal de Justiça foi criado durante o regime monárquico, pela lei de 18.09.1828, e perdurou pelo período de 09.01.1829 a 27.02.1891.
Durante o Governo Provisório da República, por intermédio do Decreto nº 848, de 11.10.1890, foi organizado o Supremo Tribunal Federal para ser o novo órgão de cúpula do Judiciário, conforme preceituado na Constituição Republicana de 1891, tendo sido ele efetivamente instalado em 28.02.1891.
Por fim, com o advento da atual Constituição da República, em 1988, foi instituído o Superior Tribunal de Justiça (STJ), vindo a ser instalado em 07.04.1989 (Lei nº 7.746/89). Por ocasião foi mantida ao STF a posição de órgão de cúpula de todo o Poder Judiciário do Brasil.
1.1. O Supremo Tribunal Federal
A atual denominação do Pretório Excelso foi adotada inicialmente na Constituição Provisória publicada pelo Decreto nº 510, de 22 de junho de 1890, e repetiu-se no Decreto nº 848, de 11 de outubro daquele mesmo ano, que organizou a Justiça Federal.
Com a Constituição de 1891, que instituiu o sistema de controle da constitucionalidade das leis, foi mantida a denominação de Supremo Tribunal Federal.
A instalação do STF ocorreu em 28 de fevereiro de 1891, conforme estabelecido no Decreto nº 1, de 26 daquele mesmo mês, sendo composto por quinze Juízes, nomeados pelo Presidente da República com posterior aprovação do Senado.
A redução do número de Ministros para onze ocorreu após a Revolução de 1930, com o Governo Provisório, por meio do Decreto nº 19.656, de 3 de fevereiro de 1931.
A mudança na denominação para Corte Suprema ocorreu com a Constituição de 1934, ocasião em que foi mantido o número de onze Ministros.
Com a promulgação da Carta de 1937 foi restaurada a atual denominação de Supremo Tribunal Federal, tendo sido ela mantida pela Constituição de 1946.
Após a mudança da capital federal, o Supremo Tribunal Federal transferiu-se para Brasília em 21 de abril de 1960, estando sediado na Praça dos Três Poderes, após ter funcionado durante 69 anos na cidade do Rio de Janeiro.
Com a edição do Ato Institucional – AI nº 2, de 27 de outubro de 1965, durante o regime militar, foi aumentado o número de Ministros para dezesseis, acréscimo mantido pela Constituição de 1967. Com base no AI nº 5, de 13 de dezembro de 1968, foram aposentados três Ministros, o que de fato ocorreu em janeiro do ano seguinte. O número de onze Ministros foi restabelecido com o AI n.º 6, de 1º de fevereiro de 1969, acarretando o não-preenchimento das vagas que vieram surgindo até o efetivo atendimento dessa determinação.
A vigente Carta, promulgada em 5 de outubro de 1988, atribuiu expressamente ao STF a competência precípua de guardião da Constituição.
A esse respeito, leciona o professor Marcelo Novelino:
“Órgão de cúpula do Poder Judiciário no Brasil, o Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição, com competência adstrita a matérias constitucionais (CF, art. 102). Iniciadas com a Constituição de 1988 e reforçadas pela EC 45/2004, as inovações operadas na jurisdição constitucional têm contribuído decisivamente para reforçar o caráter de autêntica Corte Constitucional do STF.”3 (grifo no original)
O texto da atual Constituição também manteve o número de onze ministros do Pretório Excelso.
2. A Interpretação Constitucional
A Carta de 1988, com seus mais de 25 anos de promulgação, pode ser considerada como possuidora de uma história de sucesso, exemplo do modelo constitucional predominante entre as democracias ocidentais, cujo centro normativo e valorativo consiste nos direitos fundamentais. Tendo o país à época recém saído de um regime ditatorial, com transgressão a liberdades individuais e submissão institucional, a atual Constituição surgiu com o espírito de promover a redemocratização e o respeito aos direitos fundamentais.
A atual Constituição do país foi promulgada em 05 de outubro de 1988, e nas lições de Pedro Lenza: “Trata-se da denominada por Ulysses Guimarães, Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Constituição Cidadã, tendo em vista a ampla participação popular durante a sua elaboração e a constante busca de efetivação da cidadania”4.
Diplomas dessa natureza fomentam significativos reflexos sobre as estruturas institucionais de governo, principalmente quando considerada a autoridade para concretizar os direitos fundamentais. O papel de guardião do texto Constitucional passa a ser atribuição dos tribunais constitucionais, mormente após a promulgação da Carta de 1988, em razão da extensa estrutura de competências e poderes decisórios do Supremo, em especial no tocante aos controles concentrado e abstrato de constitucionalidade.
A concretização do emanado Constitucional pelo Tribunal vem se mostrando um dos momentos institucionais mais importantes da vida prática, da realização efetiva das normas constitucionais. O trabalho de interpretação do texto Constitucional desenvolvido pelos ministros tem sido essencial para a definição das fronteiras de poder do Estado perante os cidadãos e entre os próprios órgãos de governo. As construções de significados oriundas do Supremo influíram as estruturas do sistema político e da sociedade, sendo a interpretação da Constituição ponto importante na concretização dos direitos nela emanados.
A realização de um projeto constitucional é sempre uma construção contínua. Nenhuma Constituição é uma obra acabada. O êxito do projeto depende primordialmente do empenho das instituições e da sociedade, e de como se interpreta o seu texto dependem a sua continuidade e o seu desenvolvimento.
O Supremo vem, por meio das decisões paradigmáticas, concretizando direitos fundamentais e consagrando a democracia. Em que pese ser do Supremo o papel de guardião e intérprete da Constituição, a participação dos Poderes Executivo e Legislativo no desenvolvimento e complementação do texto da Carta são essenciais à própria existência do projeto como um processo democrático.
Conforme nos ensina Canotilho “a interpretação das normas constitucionais é um conjunto de métodos, desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência com base em critérios e premissas (filosóficas, metodológicas, epistemológicas) diferentes mas, em geral, reciprocamente complementares”5. O intérprete constrói, como ato de inspiração e de vontade, significados a partir de enunciados decorrentes do sistema normativo, visando sua efetiva aplicação. A interpretação jurídica ocorre diante de casos concretos e com o escopo de conformá-los. Nesse contexto, os textos normativos serão o objeto de um processo unitário de interpretação, do qual se extraem as normas.
Mostra-se relevante destacar que a interpretação, como atividade de construção normativa, é uma necessidade constante e inarredável para o desenvolvimento jurídico, afastando-se qualquer ideia que a restrinja aos denominados enunciados ambíguos, bem como aquela de que os textos cujos significados possam ser mais clara e diretamente revelados seriam aplicados sem necessidade de interpretação. Essa noção restritiva da importância da interpretação consiste em tese absolutamente antiga e inaceitável, pois expressões de uso comum, essencialmente quando integradas a contextos jurídicos, não possuem sentido unívoco.
Possui o jurista ao interpretar o texto e dele extrair a norma, um relativo poder criador, e a esse respeito são brilhantes as lições de REALE:
“A contrário do que pode parecer à primeira vista, as divergências que surgem entre sentenças relativas às mesmas questões de fato e de direito, longe de revelarem a fragilidade da jurisprudência, demonstram que o ato de julgar não se reduz a uma atitude passiva diante dos textos legais, mas implica notável margem de poder criador. Como veremos, as divergências mais graves, que ocorrem no exercício da jurisdição, encontram nela mesma processos capazes de atenuá-las, quando não de eliminá-las, sem ficar comprometida a força criadora que se deve reconhecer aos magistrados em sua tarefa de interpretar as normas, coordená-las, ou preencher-lhes as lacunas. Se é um mal o juiz que anda à cata de inovações, seduzido pelas "últimas verdades", não é mal menor o julgador que se converte em autômato a serviço de um fichário de arestos dos tribunais superiores.”6
E, uma vez inserido em texto jurídico, a verbete deixa de ser de uso comum, e passa a compor uma redação em que se manifesta um sentido jurídico. Disso resulta que a clareza atribuída a um texto jurídico nunca é uma decorrência pura e simples de sua literalidade, mas sim resultado de interpretação, e somente por meio desta o Direito adquirirá normatividade. É a interpretação um pressuposto à concretização do Direito e o cumprimento de suas finalidades.
Os textos nunca se aplicam de per si, sempre há a necessidade de os juristas considerarem os enunciados normativos conforme o contexto que se apresenta no caso sub judice.
É a interpretação constitucional espécie de interpretação jurídica, cabendo ao Supremo a posição principal, mas não exclusiva, de exercer a atividade de interpretação da constituição.
Valiosas são as palavras de MENDES, definindo o que vem a ser a interpretação constitucional, as quais transcrevo:
“(...) devemos enfatizar que, atualmente, a interpretação das normas constitucionais é um conjunto de métodos e princípios, desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência com base em critérios ou premissas – filosóficas, metodológicas, epistemológicas – diferentes mas, em geral, reciprocamente complementares, o que só confirma o já assinalado caráter unitário da atividade interpretativa.”7 (grifos no original)
Deve a interpretação constitucional ser realizada por meio dos elementos gramatical, histórico, teleológico e sistemático, observadas as particularidades que surgem em função do próprio texto constitucional. Entretanto, o uso desses elementos tradicionais deverá harmonizar-se com o caráter compromissório das normas constitucionais, às vezes veiculando interesses aparentemente contraditórios; com a presença de um elevado número de enunciados que expressam princípios, objetivos e valores.
O entendimento entre esses tradicionais elementos da interpretação e as especificidades das normas constitucionais é tarefa do intérprete. Importante destacar que, em relação ao aspecto gramatical, as expressões semânticas do texto constitucional têm sido parâmetro, pontos de partida e limites à atividade criativa de interpretar, tudo em observância à legitimação do Estado Democrático de Direito.
3. Mutação Constitucional
3.1. Conceito e características
Nas lições do Professor LENZA, citando o entendimento da Professora da Faculdade de Direito da USP Anna Cândida da Cunha Ferraz, as mutações “não seriam alterações ‘físicas’, ‘palpáveis’, materialmente perceptíveis, mas sim alterações no significado e sentido interpretativo de um texto constitucional. A transformação não está no texto em si, mas na interpretação daquela regra enunciada. O texto permanece inalterado”8.
Ainda, diante desses significados, mutação constitucional poderia ser a alteração de normas constitucionais por meio de uma mudança de opinião ou atitude, isto é, por meio da aplicação das normas ao caso concreto, mediante a interpretação, por exemplo.
Como nos ensina o Ministro Gilmar Mendes, conceituando o tema, “as mutações constitucionais nada mais são que as alterações semânticas dos preceitos da Constituição, em decorrência de modificações no prisma histórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza a sua aplicação”9.
Desta feita, mutação constitucional não é a mudança em seu texto, e sim a mudança de significado de um dispositivo constitucional.
E, segundo José Afonso, mutação constitucional, “consiste num processo não formal de mudanças das constituições rígidas, por via da tradição, dos costumes, de alterações empíricas e sociológicas, pela interpretação judicial e pelo ordenamento de estatutos que afetem a estrutura orgânica do estado”. A partir dessa definição, se constata que esta modalidade de reforma da Constituição efetiva-se a partir da interpretação feita pelo Poder Judiciário. Não se olvidando da importância que a sociedade e a doutrina desempenham nesta tarefa interpretativa por meio de movimentos sociais reivindicatórios e de estudos científicos. Como, dentro da nossa estrutura do Poder Judiciário, a mutação constitucional tem como origem o entendimento dado pelo STF à norma constitucional, em especial pelo fato de a estrutura deste órgão de cúpula não ser, por óbvio, perpétua, a substituição de seus ministros com entendimentos, valores e crenças diversos acarretam a mudança no entendimento do próprio tribunal, dando margem ao fenômeno objeto do presente estudo.
Tratando ainda do conceito do tema, NERY JUNIOR faz um breve parâmetro entre o instituto aqui estudado e a alteração formal da Constituição, por meio da Emenda Constitucional, a saber:
“Mutação constitucional (Verfassungswandlung) é a modificação natural e não forçada que ocorre na Constituição, sem alteração de texto, em virtude de interpretação legislativa, administrativa e jurisdicional, bem como por práticas, usos e costumes.
A alteração da Constituição (Verfassungsänderung) é processo absolutamente intencional de modificação da Constituição, feito mediante manifestação da vontade do legislador constituinte reformador.”10
Já a sua ocorrência dar-se por meio da interpretação dos tribunais, dos usos e costumes, da construção judicial, da influência dos grupos de pressão e de outros meios que provocam ou podem provocar modificações na realidade constitucional. Por serem modificações naturais e não forçadas, as mutações constitucionais processam-se, em regra, lentamente, embora a letra da Carta Política permaneça inalterada.
Sem embaraço, as mudanças informais ocorrem em momentos distintos e de forma espontânea, perante situações diversas, sem previsibilidade de quando irão ser percebidas.
Entretanto, alguns publicistas discordam da afirmação de que as mutações constitucionais desenvolvem-se em momentos cronologicamente distintos, naturalmente e sem qualquer previsibilidade, necessitando de um período de tempo mais ou menos extenso. Afirmam que a extensão do período em que se desenvolve a mutação constitucional não deve ser encarado como regra absoluta.
A esse respeito, tenho por seguir o posicionamento defendido por BULOS, ao advogar no sentido de que:
“(...) as mudanças informais da Constituição dão-se, normalmente, em períodos separados no tempo, sendo esta uma das marcas características do fenômeno. Isto, entretanto, não precisa ser levado ao pé da letra, ou seja, não descartamos a hipótese de existirem mutações constitucionais em momentos próximos, pois há algo de exato naquela afirmação de Loewenstein, quando diz que uma ‘Constituição não é jamais idêntica a si própria, estando constantemente submetida ao pantha rei herac1itiano de todo o ser vivo’”11
Portanto, dada a possibilidade de uma norma constitucional sofrer a incidência da mutação constitucional enquanto perdurar a Constituição na qual inserida, o lapso temporal não pode, de forma alguma, ser exatificado.
Da mesma forma, a mutação constitucional caracteriza-se como sendo um processo difuso e informal de alteração da Constituição, valendo-se da elasticidade que a semântica do texto proporciona, moldando a norma às mudanças que a sociedade apresenta, evitando-se, desta forma, a denominada fossilização do ordenamento jurídico constitucional.
Discorrendo acerca do instituto da mutação constitucional, colaciono as lições do ilustre professor AGRA:
“A norma jurídica tem que se adequar às exigências da comunidade e, para cumprir esta finalidade, deve estar em simetria com o processo social. Por isto, as Constituições, em seu texto, preveem o procedimento de emenda e revisão. A mutação constitucional também tem a finalidade de atualizar os preceitos do Texto Magno, somente de modo não formal, não previsto nas suas cominações.”12
Assim, por meio de processos informais, as mutações constitucionais exteriorizam o caráter dinâmico e de prospecção das normas jurídicas. Informais a partir do momento que sua previsão não está expressa em nenhuma legislação.
3.2. Classificação
Em relação à classificação, em que pese a divergência doutrinária acerca do tema, é possível encontrar alguns pontos semelhantes. Pode-se dizer, sem embargo, que ocorre a mutação constitucional por interpretação e pela prática constitucional.
Sobre o tema, trago a classificação desenvolvida pelo Ministro MENDES:
“Analisada à luz das suas causas, pode-se dizer, com o jurista chinês Dau-Lin, que a mutação constitucional é um estado de incongruência entre as normas constitucionais, por um lado, e a realidade constitucional, por outro, e que essa anomalia é provocada:
a) mediante uma prática estatal que não viola formalmente a Constituição;
b) pela impossibilidade de se exercerem direitos estatuídos constitucionalmente;
c) por uma prática estatal contraditória com a Constituição; ou, ainda,
d) através de interpretação, situação de anormalidade que se normaliza ou se ultrapassa no curso da própria práxis constitucional.”13
A realizada pela via da interpretação é a mais clássica adotada pela doutrina e se dá através da adaptação do texto constitucional à nova realidade político-social. Essa espécie de mutação não altera o texto da lei, modifica unicamente seu sentido, sua interpretação. Ocorre por causa da necessidade de o Direito Constitucional acompanhar o constante desenvolvimento social. Apesar da mudança de entendimento que a lei passará a ter, o novo sentido deve sempre estar em consonância com o texto da lei.
Dentre os casos que podemos definir como mutação decorrente da prática constitucional temos os casos da falta de previsão legal e da omissão legislativa. Ainda, podemos dividir esse tipo de mutação em mutação constitucional por desuso, mutação constitucional pela prática política, mutação constitucional pela legislação ordinária, mutação constitucional para preenchimento de lacunas e mutação constitucional por interpretação judiciária.
A mutação constitucional por desuso é bastante compreensível, pois ocorre quando uma norma constitucional deixa de ser aplicada. Tal desuso é derivado da interpretação da sociedade e a não aplicabilidade da norma em questão, ocasionando alteração no significado da norma constitucional. Ou seja, é através da interpretação oriunda da prática social que surge a lacuna constitucional ou é ela preenchida.
Já a mutação pela prática política é comumente utilizada quando surgem alterações na administração de um Estado, tornam-se frequentes no período pós-guerra, a partir do momento em que o Direito passa a regular os fatos político-sociais decorrentes daquele período de instabilidade. As convenções constitucionais podem ser consideradas como decorrentes dessa modalidade de mutação constitucional, pelo fato de surgirem a partir de encontros de líderes governamentais com o objetivo de escrever uma nova Constituição ou de revisar uma já existente.
Por sua vez, a mutação pela legislação ordinária é uma rara hipótese do fenômeno decorrente do processo legislativo formal, pois é a partir de uma norma infraconstitucional que ela surge. É ela alvo de severas críticas por conta do risco que resulta, qual seja, a utilização da mutação constitucional por meio da legislação ordinária, por meio de processo de formação mais célere, em detrimento do processo formal de reforma da Constituição, com procedimento mais dificultoso.
Temos ainda a mutação constitucional para preenchimento de lacunas, que se manifesta quando sobrevém uma situação que não está prevista na Constituição, fazendo uso, para isso, das regras gerais do direito, princípios constitucionais ou até mesmo do direito consuetudinário. Geralmente as lacunas são preenchidas pelos costumes em geral. Com isso, ocorrerá uma mutação constitucional que irá se ajustar à nova realidade social.
Por fim, vislumbramos também a existência da mutação constitucional por interpretação judiciária, podendo ser aplicada por meio de interpretação ou por meio da aplicação do Direito. Em ambos os casos o Poder Judiciário cria o que podemos denominar de um novo direito constitucional.
Como histórico exemplo de mutação decorrente de construção judicial temos a famosa doutrina brasileira do habeas corpus, que, antes de ser criado o mandado de segurança, alargou o acolhimento daquele remédio constitucional heroico no sentido de abranger toda garantia individual do cidadão.