4. Mutação constitucional e o princípio democrático da Separação dos Poderes
É comum na doutrina ouvir-se ter o princípio da separação dos poderes origem nos escritos de Aristóteles. Todavia, há de se destacar os ensinamentos de Montesquieu, divulgador do clássico pensamento de que “Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares.”14.
Com a Revolução Francesa, o preceito tornou-se um mandamento constitucional, culminando com a sua previsão na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, em seu artigo 16, como pressuposto à existência da própria Constituição do estado, a saber: “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”.
Em relação ao acima exposto, MORAES leciona que:
“consiste em distinguir três funções estatais, quais sejam, legislação, administração e jurisdição, que devem ser atribuídas a três órgãos autônomos entre si, que as exercerão com exclusividade, foi esboçada pela primeira vez por Aristóteles, na obra “Política”, detalhada posteriormente, por John Locke, no Segundo tratado do governo civil, que também reconheceu três funções distintas, entre elas a executiva, consistente em aplicar a força pública no interno, para assegurar a ordem e o direito, e a federativa, consistente em manter relações com outros Estados, especialmente por meio de alianças. E, finalmente, consagrada na obra de Montesquieu O espírito das leis, a quem devemos a divisão e distribuição clássicas, tornando-se princípio fundamental da organização política liberal e transformando-se em dogma pelo art. 16. da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e é prevista no art. 2º da nossa Constituição Federal.”15
Referido princípio foi reconhecido inicialmente em nosso ordenamento jurídico a partir da Constituição Imperial de 1824. A nossa atual constituição coloca o princípio em comento como cláusula pétrea, não podendo ser abolido sequer por emenda constitucional (artigo 60, parágrafo 4º, inciso III, da CRFB/1988).
A independência entre os Poderes tem como uma de suas características o fato de que a investidura dos membros em cada um deles, em regra, independe da vontade ou confiança dos demais, possuindo todos eles autonomia para agir, desde que respeite os preceitos constitucionais e legais, não sendo imprescindível a consulta a qualquer outro. E cada um retira da própria Constituição a sua competência, não sendo permitida sua restrição por norma infraconstitucional. A ideia de harmonia está relacionada à forma cordial nas relações recíprocas, no respeito às prerrogativas de cada Poder e ao sistema de freios e contrapesos.
Foi o sistema de freios e contrapesos idealizado no intuito de se manter a mencionada harmonia entre os Poderes. Desta feita, em regra, não há interferência de um sobre o outro, pois possuem uma esfera de atuação própria delimitada pelo próprio texto constitucional. No entanto, nos casos de desvio, o Poder desviante poderá sofrer a interferência de outro, no intuito de se garantir as liberdades públicas, evitando que qualquer um deles extrapole sua área de atuação ou atue arbitrariamente.
Em relação ao tema, LENZA ainda mencionando a teoria criada por Aristóteles e desenvolvida por Montesquieu, assim se posiciona:
“(...) cada Poder exercia uma função típica, inerente à sua natureza, atuando independente e autonomamente. Assim, cada órgão exercia somente a função que fosse típica, não mais sendo permitido a um único órgão legislar, aplicar a lei e julgar, de modo unilateral, como se percebia no absolutismo. Tais atividades passam a ser realizadas, independentemente, por cada órgão, surgindo, assim, o que se denominou teoria dos freios e contrapesos (...).”16 (grifos no original)
Atualmente, vemos uma mitigação do referido princípio devido às transformações sociais e econômicas, ocorridas após a consolidação dos princípios oriundos da Revolução Francesa, e o fim dos Estados Absolutistas. Com isso a construção teórica de Montesquieu pouco a pouco perdeu seu rigorismo inicial, ajustando-se às novas necessidades políticas e econômicas dos Estados.
Atualmente percebe-se que as Constituições contemporâneas trazem diversas exceções à construção original de Montesquieu, visando estabelecer uma harmonia entre os Poderes, de modo que cada um consiga fiscalizar a atuação do outro, constituindo o já mencionado Sistemas de Freios e Contrapesos. Corroborando com esse entendimento, elogiáveis são as palavras do Professor LENZA, in verbis:
“A teoria da ‘tripartição de Poderes’, exposta por Montesquieu, foi adotada por grande parte dos Estados modernos, só que de maneira abrandada. Isso porque, diante das realidades sociais e históricas, passou-se a permitir maior interpenetração entre os Poderes, atenuando a teoria que pregava a separação pura e absoluta dos mesmos.”17
Vê-se, pois, que a visão clássica idealizada para o Princípio da Separação dos Poderes não mais se ajusta à realidade política tanto brasileira quanto a vários outros países contemporâneos. COELHO, nesse sentido, em sua obra de Direito Constitucional, leciona que:
“Nesse contexto de ‘modernização’, esse velho dogma da sabedoria política teve de flexibilizar-se diante da necessidade imperiosa de ceder espaço para a legislação emanada do Poder Executivo, como as nossas medidas provisórias - são editadas com força de lei - bem assim para a legislação judicial, fruto da inevitável criatividade de juízes e tribunais, sobretudo das cortes constitucionais, onde é frequente a criação de normas de caráter geral, como as chamadas sentenças aditivas proferidas por esses supertribunais em sede de controle de constitucionalidade.”18
Desta feita, no tocante à moderna hermenêutica, o princípio da Separação dos Poderes também carece de releitura. Isso porque a interpretação judicial, em especial a constitucional, cada vez mais não se limita a um ato de conhecimento, abarcando da mesma forma um ato de vontade. Nesse contexto, o juiz, ao interpretar o preceito normativo, extrai do texto a norma a ser aplicável ao caso concreto. No entanto, a atividade criativa do julgador não é totalmente livre, muito menos discricionária, devendo respeito às normas constitucionais, às circunstâncias do caso concreto, ao debate público, bem como ao dever de fundamentar19.
Porém, em consonância com a doutrina e jurisprudência modernas, é sabido que o controle da discricionariedade do Poder Público, na realização das políticas públicas, pelo Poder Judiciário, especialmente em relação à implementação dos direitos sociais, não viola o princípio da Separação dos Poderes. Isto porque a efetivação dos direitos fundamentais em um Estado Democrático de Direito é dever comum dos três Poderes, indistintamente.
4.1. Mutação constitucional inconstitucional
À título de proceder com o fenômeno da mutação constitucional, caso a alteração informal da Constituição ultrapasse o limite referente à semântica textual, tem-se aí uma situação de mutação constitucional inconstitucional (ou seja, simplesmente mutação inconstitucional), que ocorre quando há a quebra de juridicidade dos princípios informadores da ordem constituída. Conforme ensinamento de BULOS:
“Todavia, se o ato interpretativo desvirtuar a letra das normas que embasam a Constituição, quebrando a juridicidade dos princípios informadores da ordem constituída, estaremos diante das mutações inconstitucionais.
As mutações inconstitucionais destroem a vida dos preceptivos constitucionais, idealizados por obra de um poder incondicionado, cujo reflexo incide sobre todo o ordenamento jurídico. Os efeitos provocados por estas deformações variam em grau e em profundidade e podem contrariar a Carta Suprema, em maior ou menor extensão, sem mudar a letra das suas normas.”20
Sendo admitida no ordenamento jurídico brasileiro, a mutação constitucional não pode acarretar deformidade no sentido e significado dos direitos estampados na Carta Política, sob risco de acarretar a ruptura no Estado Democrático de Direito (baseado nos relevantes interesses públicos que regem o Estado, bem como na convivência harmônica das liberdades públicas), configurando deste modo a mencionada mutação inconstitucional.
Infelizmente a realidade nos mostra que a mutação inconstitucional é verificada nas diversas constituições. Como exemplo remoto temos a investidura do marechal Floriano Peixoto, então vice-presidente, na Presidência da República, em que pese o teor do artigo 42 da primeira Constituição Republicana do Brasil, em 1891, o qual prescrevia que, “se no caso de vaga, por qualquer causa, da Presidência ou Vice-Presidência, não houverem ainda decorrido dois anos do período presidencial, proceder-se-á a nova eleição”. Malgrado o texto constitucional, o Congresso Nacional permitiu que o vice-presidente assumisse a chefia do Poder Executivo, não obstante a renúncia do então presidente da República tivesse ocorrido antes do período de dois anos previsto.
As violações aos preceitos constitucionais derivam de interpretações ardilosas e podendo gerar mudanças eventuais ou permanentes, ou até mesmo suspender os efeitos das normas constitucionais.
Porém, não raras vezes, a violação às diretrizes constitucionais quando de sua mutação não se revela plenamente evidente, tornando-se um instrumento temerário nas mãos dos detentores desse poder. Em mais uma de suas brilhantes lições, CANOTILHO corrobora com esse entendimento:
“Reconhece-se, porém, que entre uma mutação constitucional obtida por via interpretativa de desenvolvimento do direito constitucional e uma mutação constitucional inconstitucional há, por vezes, diferenças quase imperceptíveis, sobretudo quando se tiver em conta o primado do legislador para a evolução constitucional e a impossibilidade de, através de qualquer teoria, captar as tensões entre a constituição e a realidade constitucional.”21
Ainda, as expressões falseamento da Constituição ou quebramento constitucional são adotadas pela doutrina para nominar qualquer alteração que não esteja expressamente prevista na Carta Política, conferindo-se a certas normas magnas uma interpretação e um sentido distintos dos que realmente possuem. PEDRA, tratando do tema, preceitua:
“(...) assume uma dimensão que abrange o que a doutrina chama de falseamento da Constituição ou quebrantamento (ou quebramento) da Constituição. (...) o fenômeno em virtude do qual se outorga a certas normas constitucionais uma interpretação e um sentido distintos dos que realmente têm.”22
Por isso, é possível considerar que os falseamentos ou quebrantamentos estão inseridos no conceito de mutação constitucional inconstitucional.
Há ainda quem defenda que haverá falseamento stricto sensu, nos casos de violação das normas constitucionais, configurando vício de inconstitucionalidade.
Lato sensu, as denominações falseamento da constituição e quebramento constitucional podem significar espécies do gênero mutação inconstitucional, desde que ao realizarem modificação na interpretação do texto, gerem entendimento contrário ao determinado pelo legislador constituinte. A esse respeito, BULOS:
“Em sentido amplo, as expressões falseamento e quebramento constitucional podem significar espécies do gênero mutação inconstitucional, desde quando expressem o entendimento de que, ao promoverem mudanças difusas na letra das normas da Constituição, podem contrariar a forma prescrita pelo legislador constituinte.
Numa acepção estrita, porém, esses institutos jamais devem ser confundidos com as mutações operadas em sentido contrário ao Texto Maior, pois podem existir mutações inconstitucionais sem quebramentos ou falseamentos, e vice-versa. (...) De idêntico modo, é possível ocorrer falseamento da Constituição independentemente de mutação inconstitucional. A experiência comprova infindáveis casos de dispositivos falseados, mas sem qualquer mudança difusa, violadora da Carta Maior.”23
São incontestáveis os riscos oriundos da mutação constitucional, podendo o aplicador do direito, ao adaptar o texto da Carta à realidade social, desvirtuar a norma, afetando a estabilidade jurídica, caracterizando a infortunada mutação inconstitucional.
Por tais razões, há de se efetuar rígido controle no intuito de se evitar uma desvirtuada interpretação, devendo ser ela abolida do ordenamento jurídico, caso venha a ocorrer.
E o controle a ser exercido sobre as mutações constitucionais deve partir, não só do Judiciário e/ou Legislativo, mas também, e principalmente, de vários dos grupos de pressão existentes, a exemplo dos partidos políticos e da opinião pública.
Sobre o tema, BULOS advoga no sentido de que:
“A realidade constitucional evidencia vários casos em que os processos informais ultrapassam o próprio controle de constitucionalidade das leis. Por isso, os óbices de uma defeituosa e desordenada interpretação, como processo de mutação da Carta Maior, não podem ser ignorados, devendo ser repelidos com o ‘fortalecimento do controle jurisprudencial, adequação do controle político-parlamentar, criação de novos instrumentos de controle popular, maior participação do povo no processo político, mediante aperfeiçoamento dos sistemas eleitorais e do sistema de partidos’, não obstante a persistência e continuidade do problema nos diversos ordenamentos constitucionais.”24
De todo o exposto, extrai-se que os riscos existem, todavia, não podem eles servir como impedimentos à interpretação das normas constitucionais, sob pena de ocasionar o engessamento da ordem constitucional.
As mutações verdadeiramente constitucionais acarretam alterações necessárias e permitidas na própria Constituição, atendendo sempre que possível aos anseios sociais, dispensando a necessidade de sempre se buscar refúgio na, algumas vezes necessária, morosa forma de alteração formal do texto constitucional, que em alguns casos não são capazes de atender a imediatidade que a ordem social exige.