4. Sobre os fatores capazes de conferir legitimidade à actuação judicial em um estado de direito
Se no Estado Moderno se entende a função judicial como a tarefa que consiste em extrair o direito a partir da lei, a legitimidade desta função é baseada tanto na legitimidade da lei mesma, como nas garantias da posição institucional do juiz e dos recursos instrumentais e procedimentais de que dispõe para encontrar a solução demandada pela mesma. Porém, em um Estado Moderno, a legitimidade da lei é algo que se dá por pressuposto. Por conseguinte, a legitimidade judicial fica reduzida a uma questão instrumental.
Tudo isso se resume nos postulados do Estado Liberal e democrático, que tende a limitar o exercício do poder mediante a vontade geral expressa na lei e a potencializar os direitos individuais para que essa vontade possa expressar-se livremente. No âmbito jurisdicional, o principio da legitimidade do Estado Liberal tem seu reflexo na submissão exclusiva do juiz a lei, na independência, na inamovibilidade, na seleção mediante critérios estritos de profissionalidade, etc. Um processo público controvertido e regulamentado contribui para garantir a imparcialidade, ou seja, a defesa da lei. Igualmente, a defesa da lei contribui também a ciência jurídica, em cuja virtualidade se crê firmemente na idade de ouro do Estado Liberal. Também se vá recorrer a ela para aumentar a legitimidade da atuação judicial. A ciência está presente com esse fim tanto no processo de formação do jurista como no momento de buscar a solução legal do caso. Ela oferece uns recursos doutrinais e metodológicos acreditados como componentes do paradigma consagrado no campo das ciências jurídicas: a dogmática jurídica. O império das leis é um princípio, sendo a lei concebida como uma norma geral, impessoal, racional e estável.
Como princípio, o Império das Leis se opõe ao princípio do Monarca em primeiro lugar, e é com esse sentido como surge historicamente. A declaração de que "a justiça emana do povo" intenta arrebatar aquele a autoridade judicial.Esta atribuição não é incompatível com a submissão a legalidade porque está é um produto genuíno da soberania popular. Porém, em segundo lugar, o império das leis se opõe também a vigência da justiça entendida como principio objetivo. E, em terceiro lugar, se opõe igualmente a vigência de uma justiça administrada diretamente pela sociedade, sem a mediação realizada pela lei.
As estruturas de legitimidade do poder ou da função judicial próprias do Estado Liberal tem entrado em crise devido a pujança atual dos últimos dois princípios. Princípios que, além de serem opostos as estruturas, são contraditórios entre si, ainda que possa tentar-se uma espécie de reconciliação ou síntese entre ambos. A Escola do Direito Livre é uma das primeiras e mais patéticas reações a essa crise. A sobrevivência da crise é o motivo pelo qual a metodologia jurídica tem sido adaptada na doutrina e nos corpos legais, e a razão de que a interpretação e aplicação do direito vá definitivamente de outra maneira. E digo definitivamente porque a teoria moderna da interpretação jurídica, ainda que surgida em um contexto histórico-social determinado pela crise da lei, tem uma justificação epistemológica independente, posto que é consequência de uma penetração mais profunda nas condições do processo de conhecimento da realidade.
Assim pois, se o intérprete do direito se vê envolto em um círculo hermenêutico e sempre leva consigo uma antecipação ou concepção prévia do sentido do direito que guiara a busca da solução do caso concreto, Como pode controlar-se e legitimar-se essas doses de subjetividade? Já não é suficiente uma legitimidade instrumental, visto que é preciso pensar em outros critérios.
Na busca de novos critérios de legitimidade que sejam capazes de compensar as deficiências do principio liberal, há que partir do caráter inquestionável das concreções básicas deste princípio: a soberania popular, a submissão dos juízes a lei, a independência e a inamovibilidade são recursos do Estado de direito insubstituível para um funcionamento da justiça adequado as exigências desse tipo de Estado. As garantias processuais também o são. Muitas delas são imprescindíveis simplesmente para um bom funcionamento da justiça, com independência do sistema jurídico-político donde se insere. O problema é que são insuficiente porque os juízes, que são os que tem em suas mãos o poder de concretizar os sentidos da lei, exercem esse poder - apesar de todas as garantias jurídico-política e jurídico-processuais - desde mais profundas convicções, e a sociedade não tem porque abdicar de seu direito a exigir responsabilidade por essas convicções.
A lei não oferece todos os critérios de solução, portanto, é essencial que o juiz na labuta de sua função seja conduzido em suas decisões pelas fontes do direito quer sejam: As leis (fonte imediata), os costumes, as jurisprudências dos tribunais, a doutrina, os princípios gerais do direito, a analogia e a equidade, além de haver ainda aqueles que incluem o contrato como fonte direta do direito (fontes mediatas).[20] Tal como rege o Código de Processo Civil em seu artigo 4º: Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.[21]
Vale salientar, ainda, que em casos como o do Brasil, onde os princípios gerais do direito já estão inclusos na Constituição, ou seja, já são consolidados como oriundos da soberania popular, a decisão judicial não pode, mas deve ser guiada pelos princípios expressos no ordenamento jurídico.
Diante do exposto, cabe ainda a divisão entre dois critérios de princípios de legitimidade: o princípio objetivo de legitimidade e o princípio social de legitimidade. A legitimidade em ambos os casos é uma questão de procedimento. Além disso, em geral uma norma de ação humana é legitima quando tenha sido adotada consensualmente em um procedimento discursivo, no qual concorrem certos requisitos ideais que permitem um intercâmbio de razões entre todos os afetados em torno de suas respectivas pretensões de validez. O modelo de consenso ideal através do discurso é o fundamento da legitimação democrática do direito e do Estado. Ainda que as comunidades reais de participação não coincidam com a comunidade ideal de diálogo, desta derivam certas exigências para aquelas, que hão de ir realizando-se na medida do possível, e que servem, em qualquer caso, para processá-las criticamente.
Não se pode pensar na possibilidade de que as decisões judiciais se adotem através de um procedimento similar ao tipo ideal aludido, ainda que o processo judicial possua recursos próprios de uma estrutura intersubjetiva de diálogo e argumentação. Pelo contrário, incluso nos sistemas judiciais dos Estados democráticos, é inevitável que as decisões judiciais pressuponham uma estrutura de poder.
É notório pontuar, ainda, que estamos tratando da legitimidade judicial, e, por isso, devemos prescindir da legitimidade das fontes jurídicas vinculantes. Existem diversas formas de abrir o processo de decisão judicial ao modelo da estrutura participativa ideal, mas a priori a correção das sentenças por meio de participação e na adoção das mesmas pode contribuir para torná-las progressivamente mais aceitáveis, mais merecedoras de reconhecimento ou pelo menos mais fundamentadas.
No entanto, ainda, que se diga que o juiz deva escutar os grupos sociais, desde as posições políticas conservadoras até as mais progressistas, e guiar-se por elas e que o mesmo deva vincular-se com as formas de pensar socialmente dominantes, não parece que esta seja a melhor forma de legitimar as decisões judiciais - nem por parte de um juiz profissional, nem por parte de nenhum outro juiz - pois este deve julgar conforme a sua consciência.
É certo que a justiça emana do povo e esse princípio democrático deve inspirar toda a regulamentação jurídica da organização e funcionamento do judiciário. Também é certo que o juiz deve ter em sua conta a realidade social do tempo em que as normas se aplicam, porém, desde essa situação de independência, não deve prestar-se a realidade social uma validez incondicional. Há aspectos da realidade social que podem ser criticados e melhorados. E a realidade social, em qualquer caso, não consiste simplesmente nas ideias dominantes. Pense no caso limite de uma sociedade fascista, com uma ideologia dominante de caráter racista ou intolerante com certas minorias políticas ou culturais. Deve, pois o juiz guiar-se por um consenso ideal e não limitar-se por um consenso fático.
Vale pontuar, contudo que se o juiz não deve conectar-se necessariamente com a sociedade, em um sentido estrito, a sociedade deve imprescindivelmente conectar-se com o juiz. Tanto a participação na formação da convicção judicial através da argumentação como o controle do poder de julgar através deste e de outros procedimentos, são irrenunciáveis para a sociedade.
Em suma, percebemos que o objeto de estudo de um jurista não é nunca senão parte de um objeto muito mais vasto: o estudo das sociedades e das suas transformações na história[22], pois, de fato, todo sistema jurídico se liga a uma forma estatal muito particular. Seja ela feudal, socialista ou capitalista – a chamada democrático-burguesa –, o direito sempre exprime, através de normas jurídicas, os valores, conceitos e interesses das classes sociais existentes. Porém dominam na sociedade apenas os interesses da classe social hegemônica, já que esta é exercida através do aparelho estatal[23] e foi nesse sentido que, Marx, em A Ideologia Alemã, afirmou que o direito é o instrumento legitimador dos interesses da classe social dominante[24]. E, é nessa perspectiva que urge a necessidade de participação popular na consolidação do entendimento do judiciário quanto as aplicações do ordenamento jurídico no cotidiano social.
Ilação do exposto é que o problema da legitimidade tem que ser tratado em dupla direção. Exordialmente na direção de uma reforma procedimentalista tendente a obtenção de um prerrogativas para um diálogo universal. Incluindo no diálogo o jurista, isto é, uma reforma nos vínculos institucionais entre os juízes e a sociedade a fim de que eles não sejam elementos separados e impermeáveis ao diálogo. De forma concomitante, deve-se, na direção da adoção, com base na decisão, de razões que sejam moralmente mais convincentes, depois de um processo de análise crítico em torno dos fins e efeitos do direito na sociedade atual. De um análise crítica que seja capaz de denunciar suas contradições no momento de sua inserção na realidade e capaz, ao mesmo tempo, de revelar seu potencial emancipador. A primeira direção é uma tarefa dos poderes públicos. Já a segunda compete a cada juiz em particular.
É mister salientar, nesse contexto, a importância que possui uma adequada formação acadêmica para o desenvolvimento da qualificação dos juristas e consequentemente dos juízes que aplicam as leis à sociedade. A contextualização histórica, aliada aos objetivos da implementação de cursos jurídicos no Brasil, propiciou a consolidação de um ensino jurídico mais preocupado em atender às razões e aos interesses do Estado Imperial Independente do que às expectativas e anseios da sociedade brasileira. Esse desvirtuamento das finalidades institucionais da criação de cursos jurídicos no Brasil gerou nefastas consequências à formação de uma cultura jurídica brasileira que se desenvolveu em premissas dogmáticas, acríticas, não reflexivas e despolitizadas[25].
Em face desse cenário e visando à superação de uma visão fechada e dogmática de compreensão do fenômeno jurídico, José Eduardo Faria sugere uma reformulação do ensino jurídico brasileiro, com a superação da cultura técnico-profissionalizante sustentada em rígidos limites formalistas de uma estrutura curricular excessivamente dogmática e a consequente introdução de um conhecimento crítico, reflexivo, multidisciplinar e sensível à função social do direito e à dinâmica da realidade social, o que influenciaria, inexoravelmente, a cultura jurídica brasileira; a forma de compreender e perceber o direito em sua pluralidade de manifestações e complexidade; a sociedade; as diferenças; as igualdades; os conflitos; os abismos sociais e os demais aspectos relacionados à vivência do homem em sociedade[26]. À luz dessas transformações paradigmáticas no ensino jurídico brasileiro, os juristas, entre eles os juízes, passam a receber uma formação capaz de compreender o papel e a importância da função social do direito, de seu caráter inclusivo e transformador do status quo. Nesse contexto, o Poder Judiciário torna-se mais apto (ou ao menos passa a ter maiores condições) a igualar, a promover, a incluir, a transformar a realidade social à luz das diretrizes constitucionalmente traçadas[27].