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Homicídio nos confins da vida:

entre o dever de cuidar e o suposto direito de matar

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Agenda 14/01/2015 às 12:25

4-CONCLUSÃO

Não há exagero em afirmar que os dilemas e questões que surgem no final da vida foram fundamentais para o advento da bioética e de outras matérias ligadas à humanização da medicina.

Entende-se que o ordenamento jurídico brasileiro, ao não recepcionar a prática da eutanásia e do suicídio assistido, conforme ocorre em alguns modelos de Direito Comparado, está imprimindo um critério interpretativo coerente com a conformação de nosso Estado Constitucional.  

Conforme leciona Cambi, “havendo mais de um modo de interpretar a Constituição, deve-se optar por aquele que melhor concretize o valor dignidade da pessoa humana. Assim, se uma regra jurídica puder ser interpretada de mais de uma forma, deve-se escolher aquela que esteja em maior conformidade com a dignidade humana, excluindo, por outro lado, exegeses que contrariem ou não acolham integralmente tal valor jurídico. A dignidade humana é a premissa antropológica do Estado Constitucional e o conceito chave de Direito Constitucional. Não pode haver Estado e, muito menos, Estado de Direito Constitucional sem se fazer referência à pessoa humana, porque a pessoa é um fim em si mesmo, não um meio para se conseguir um fim, devendo o Estado estar a seu serviço, não o inverso”. [60]

Entretanto, as expressões “dignidade humana” ou “pessoa humana” podem ter seus significados moldados de diversas formas, lembrando a advertência de Miles de que existe um provérbio que diz que “até o Demônio pode citar as Escrituras”. [61] Por isso é importante manter sempre um referencial teórico de pessoa humana e, consequentemente, de sua dignidade especial, tendo em vista seu conteúdo corporal, psíquico e espiritual e jamais permitindo sua redução a meio ou a coisa. É no seio desse referencial antropológico que à pessoa humana moribunda não se pode estender a morte, mas sim a mão na jornada da finitude em uma conduta de cuidados “eficientes e amorosos”, conforme destaca Floriani, fazendo referência a Cicely Saunders. [62]

Recentemente, no Congresso Direito e Fraternidade 2013, realizado na cidade de São Paulo-SP, debateu-se sobre o tema do “Princípio da Fraternidade no Direito” como “instrumento de transformação social”. No texto – base do encontro há manifestação destacável de Carlos Augusto Alcântara Machado, dando ênfase ao teor do Preâmbulo da Constituição Federal de 1988, onde “o constituinte originário adjetivou o vocábulo sociedade, qualificando-o como fraterna. Não se contentou o legislador-mor em fornecer as bases de uma sociedade politicamente organizada e juridicamente institucionalizada. Foi mais além: comprometeu-se com a edificação de uma sociedade fraterna”. [63]  Mas, a verdade é que desde que os ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade” ganharam, especialmente a partir da Revolução Francesa de 1789, grande relevância no cenário jurídico e social, se tem demonstrado muita preocupação com a liberdade e a igualdade e muito, muito pouco se tem realmente focado na questão da fraternidade. Certamente, este é um tema a ser repensado no mundo jurídico, mediante a busca de não somente fazer menção à fraternidade em textos legais, mas reforçá-la enquanto categoria jurídica efetiva.

Comunga-se da conclusão sobre a urgência de que a disciplina de cuidados paliativos passe a fazer parte obrigatória das grades curriculares das graduações dos profissionais de saúde. [64] Assim também é imprescindível que as redes hospitalares públicas e particulares passem a investir em estrutura e formação de cuidados paliativos baseados no modelo Hospice, a fim de proporcionar uma vivência digna da própria morte às pessoas. Este tema do fim da vida humana e sua dignidade é um daqueles onde o Princípio da Fraternidade pode ensejar grandes transformações sociais.


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Notas

[1] DURANT, Guy. A bioética. Trad. Porphirio Figueira de Aguiar Neto. São Paulo: Paulus, 1995, p. 65 – 66.

[2] VALLS, Álvaro L. M. Da Ética à Bioética. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 30 – 31.

[3] PRIGOGINE, Ilya, STENGERS, Isabelle. A nova aliança. Trad. Miguel Faria e Maria Joaquina Machado Trincheira. Brasília: Universidade de Brasília, 1991, p. 25.

[4]  MONDIN, Battista. Definição filosófica da pessoa humana. Trad. Jacinta Turolo Garcia. Bauru: Edusc, 1998p. 11 – 45.

[5] Op. cit.., p. 11.

[6] Op. cit.., p. 13.

[7] Op. cit., p. 15.

[8] Apud, Op.cit., p. 18.

[9] Op. cit, p. 21 – 24.

[10]DERRIDA, Jacques. Do Espírito. Trad. Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1990, p. 59.

[11] Op. cit., p. 60 – 61.

[12] Op.cit., p . 61.

[13] Op.cit., p. 62.

[14] Op.cit., p. 64.

[15] Op.cit., p. 65.

[16] Apud, BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004, p. 230.

[17]  DERRIDA, Jacques. Op.cit., p. 68.

[18]  MONDIN, Battista. Op. Cit., p. 37.

[19] Op. cit., p.  38 – 39.

[20] KEMPIS, Tomás de. Imitação de Cristo. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 75.

[21] DURANT, Guy. A bioética. Trad. Porphirio Figueira de Aguiar Neto. São Paulo:  Paulus, 1995, p. 67.

[22] MONDIN, Battista. Op. cit, p. 25.

[23] Op.cit., p. 43.

[24] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 58 – 59.

[25] Apud,  SINGER, Peter. Vida Ética. 2ª ed. Trad. Alice Xavier. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 105.

[26] THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. 2ª ed. Trad. João Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 37 – 39.

[27] Op.cit., p. 37.

[28] COETZEE, J. M. A vida dos animais. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 142.

[29]Op.cit., p. 145.

[30] SINGER, Peter. Vida Ética. 2ª ed. Trad. Alice Xavier. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 390.

[31] GUILLEBAUD, Jean – Claude. O Princípio de Humanidade. Trad. Ivo Stornilo. Aparecida: Ideias & Letras, 2008, p. 23.

[32] HENRY, Michel. A Barbárie. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: É Realizações, 2012, p. 20.

[33] FLORIANI, Ciro Augusto. Moderno Movimento Hospice. Rio de Janeiro: Publit, 2011, p. 49 – 50.

[34] HENRARD, J. C. Cultural problems of ageing especially regarding gender and intergenerational equity. Disponível em http://pubget.com/paper/8870131/Cultural_problems_of_ageing_especially_regarding_gender_and_intergenerational_equity . Acesso em 26.01.2013.

[35] SARAMAGO, José. As intermitências da morte. Lisboa: Caminho, 2005, “passim”.

[36] CABRERA, Julio. A ética e suas negações. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 23.

[37] Op. Cit., p. 23.

[38] CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. Mauro Gama. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989, p. 23.

[39] CABRERA, Julio. Op. Cit., p. 24.

[40] Op. Cit., p. 38.

[41] FERRY, Luc. A nova ordem ecológica. Trad. Luís de Barros. Lisboa: ASA, 1993, p. 134.

[42] SARTRE, Jean – Paul. O Ser e o Nada. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 64.

[43] CABRERA, Julio. Op. Cit., p. 103.

[44] HARE, Richard Mervyn. Ética problemas e propostas. Trad. Mário Mascherpe e Cleide Antônia Rapucci. São Paulo: UNESP, 2003, p. 51 – 52.

[45] LEVINAS, Emmanuel. Toltalidade e infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 177.

[46] SARAMAGO, José. Op. Cit., p. 113.

[47] FLORIANI, Ciro Augusto. Op. Cit., p. 16 – 17.

[48] Op. Cit., p. 21.

[49] Op. Cit., p. 36.

[50] CARVALHO, Gisele Mendes de. Aspectos jurídico – penais da eutanásia. São Paulo: IBCCrim, 2001, p. 27 – 28. Cf. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia. Curitiba: Juruá, 2009, p. 24 – 25.

[51] FIELD, M. J., CASSEL, C. K. Approaching Death:  Improving care at the end of life. Washington: Institute of Medicine, 1997, p. 4.

[52] MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 28ª. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 27.

[53] Conforme leciona Frederico Marques para o crime de Homicídio, valendo também para o Induzimento ao Suicídio: “Sujeito passivo (...) é alguém, isto é, qualquer pessoa humana, o ser vivo nascido de mulher, l’uomo vivo, qualquer que seja sua condição de vida, de saúde, ou de posição social, raça, religião, nacionalidade, estado civil, idade, convicção política ou status poenalis. Criança ou adulto, pobre ou rico, letrado ou analfabeto, nacional ou estrangeiro, branco ou amarelo, silvícola ou civilizado, - toda a criatura humana, com vida, pode ser sujeito passivo (...), pois a qualquer ser humano é reconhecido o direito à vida que a lei penalmente tutela. O moribundo tem direito a viver os poucos instantes que lhe restam de existência terrena, e, por isso, pode ser sujeito passivo (...). Assim também o condenado à morte”. MARQUES, Frederico. Tratado de Direito Penal. Volume IV. Campinas: Millennium, 1999, p. 101 – 102.

[54] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Op. Cit., p. 91.

[55] Op. Cit.,, p. 89 – 90.

[56] Op. Cit., p. 114.

[57] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Comentários ao Novo Código de Ética Médica. Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 18 – 19. Deve-se anotar ainda que há no Direito Comparado legislações que permitem a eutanásia e o suicídio assistido (v.g. no caso do suicídio assistido por médico há legalização no Estado do  Oregon, nos Estados Unidos e na Suíça, inclusive com permissão da prática para não médicos. Cf. FLORIANI, Ciro Augusto. Op. Cit., p. 84 – 87). Na Holanda e na Bélgica a eutanásia é admitida legalmente. Na Polônia há previsão de exclusão de culpabilidade e no Japão a eutanásia tem sido admitida pela jurisprudência com certos requisitos rígidos. Cf. CABETTE, Eduardo Luiz Santos.  Eutanásia e Ortotanásia. Op. Cit., p. 41 – 45.

[58] FLORIANI, Ciro Augusto. Op. Cit., p. 79.

[59] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Comentários ao Código de Ética Médica. Op. Cit., p. 115.

[60] CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. São Paulo: RT, 2009, p. 414.

[61] MILES, Jack. Cristo: uma crise na vida de Deus. Trad. Carlos Eduardo Lins da Silva e Maria Cecília de Sá Porto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 47.

[62] FLORIANI, Ciro Augusto. Op. Cit., p. 104.

[63] PIERRE, Luiz A. A., CERQUEIRA, Maria do Rosário, CURY, Munir, FULAN, Vanessa R. (org.). Fraternidade como categoria jurídica. São Paulo: Cidade Nova, 2013, p. 68

[64]FLORIANI, Ciro Augusto.  Op. Cit., p. 94. 


ABSTRACT: This paper treats the question of killing or afforded death to the advanced or terminal patient under the ethical (bioethical), legal and, more specifically  criminal viewpoints. It starts with a concept of "human person" for, by establishing a anthropological - philosophical benchmark, study the issue of discussion that rages today between the solution offering a dignified death or a dying process that care respect human dignity, including the final phase of life.

SUMMARY: 1.Introduction - 2. The Concept of Human Person - 3. The (I) Legitimacy and (I) legality of death given to the dying: the confluence between anthropology, ethics and law - 4. Conclusion - 5. References.

KEY - WORDS: Human Person - Euthanasia - Homicide - Ethics - Bioethics - Medicine - Law.

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Homicídio nos confins da vida:: entre o dever de cuidar e o suposto direito de matar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4214, 14 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35102. Acesso em: 22 nov. 2024.

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