Artigo Destaque dos editores

Homicídio nos confins da vida:

entre o dever de cuidar e o suposto direito de matar

Exibindo página 1 de 3
14/01/2015 às 12:25
Leia nesta página:

O ordenamento jurídico brasileiro, ao não recepcionar a prática da eutanásia e do suicídio assistido, conforme ocorre em alguns modelos de Direito Comparado, está imprimindo um critério interpretativo coerente com a conformação de nosso Estado Constitucional.

RESUMO: Trata o presente trabalho da questão da morte dada ou propiciada ao doente avançado ou terminal sob os pontos de vista ético (bioético) e jurídico, mais especificamente jurídico – penal. Parte-se de um conceito de “pessoa humana” para, mediante o estabelecimento de um referencial antropológico – filosófico, estudar a questão da discussão que hoje se trava entre a solução da oferta de uma morte digna ou de um processo de morrer com cuidados que respeitem a dignidade humana, inclusive na fase final da vida.

SUMÁRIO: 1.Introdução – 2. O Conceito de Pessoa Humana – 3. A (I)Legitimidade e (I)legalidade da morte dada aos moribundos: confluência entre antropologia, ética e direito – 4. Conclusão – 5. Referências.

PALAVRAS – CHAVE: Pessoa Humana – Eutanásia – Homicídio – Ética – Bioética – Medicina – Direito.


1-INTRODUÇÃO

Todo o ordenamento jurídico brasileiro, vindo da Constituição Federal e passando pela legislação ordinária, protege de maneira muito especial e atenta a vida humana e isso se repete de modo geral no Direito Comparado.

Entretanto, a gênese desse fenômeno jurídico somente pode ser bem compreendida mediante um aprofundamento sobre a base antropológica que norteia toda essa preocupação conformadora de normas jurídicas protetivas. Um conceito do que seja um ser – humano digno de tutela em sua vida, do que seja uma “pessoa humana” é a chave para a compreensão da razão de ser de toda a rede jurídica tutelar de que se está falando, bem como para a devida interpretação e aplicação das normas que regulam a matéria.

Por isso, neste trabalho partir-se-á de um estudo do conceito de “pessoa humana” para, a partir daí, poder, com segurança, analisar o conteúdo e aplicabilidade das normas jurídicas que tutelam a vida humana, especialmente aquela que se encontra em seu limite final. Nesse caminho árduo, serão abordados problemas cruciais como a eutanásia, o suicídio assistido, os cuidados paliativos, enfim, todos os procedimentos que envolvem o tratamento dado com pretensões de legitimidade para pessoas que estão em fase terminal de doenças ou complicações da saúde graves.  

A abordagem do tema, como não poderia deixar de ser, é interdisciplinar, de modo que serão postos em questão problemas não somente jurídicos, mas também antropológicos, morais e éticos (mais especificamente bioéticos). Será perceptível que as concepções antropológicas, morais e bioéticas envolvidas podem e realmente norteiam de forma muito importante não somente a formulação, a aplicação, as propostas de reformulação e a interpretação das normas jurídicas.

Ao final, serão as principais ideias expostas ao longo do texto retomadas, apresentando-se uma síntese conclusiva.  


2-O CONCEITO DE “PESSOA HUMANA”

Há um costume ou condicionamento bastante arraigado de interpretar o vocábulo “pessoa” como dotado sempre de uma qualificação ocultada apenas para evitar redundância, ou seja, dizer “pessoa” equivaleria sempre a dizer “pessoa humana”. Conforme esclarece Durant, “a palavra pessoa é empregada, então, para criticar a igualdade, o valor e a dignidade de cada ser humano por oposição ao mundo dos animais e das coisas”.[1]

Nesse passo “pessoa” e “ser humano” são encarados necessariamente como sinônimos, operando uma drástica distinção entre “sujeitos” e “coisas”, sendo que somente poderiam ascender à categoria de sujeitos os humanos; outros seres vivos não – humanos jamais poderiam escapar do estatuto que lhes é reservado: aquele que os torna meras coisas ou objetos.

Assim apresentam-se as definições clássicas de pessoa, tais como a de Boécio: “substância individual de natureza racional”. O homem é considerado pessoa por ser capaz de refletir sobre si e de se autodeterminar: “capta o sentido das coisas e dá às suas expressões, com razão, liberdade e consciência”.[2]

Mas esse traço distintivo tão simplista e arbitrário não é isento de críticas. A definição do que seja uma “pessoa” não é algo tão simples, de modo que a polêmica sobre a questão tem povoado as discussões filosóficas ao longo dos séculos. O tema é tão profundo que ensejaria o desenvolvimento de um trabalho específico que fugiria aos objetivos desta exposição e, certamente, extrapolaria inclusive os limites do conhecimento deste autor.

Pretende-se por ora tão somente abordar o tema em linhas gerais, de maneira a possibilitar alguma reflexão em especial quanto à discussão acerca das linhas limítrofes traçadas entre o homem e os demais seres vivos para sua inclusão ou exclusão do conceito de pessoa. Ainda assim a empreitada é desafiadora, pois como aduzem Prigogine e Stengers, a “tragédia do espírito moderno” consiste no fato de que o homem “desvendou o enigma do Universo, mas apenas para substituí-lo por um outro: o enigma de si próprio”. [3]

Em um opúsculo bastante esclarecedor Mondin arrola os principais critérios apontados como cruciais para a definição de da chamada “pessoa humana”.[4]

O ponto de partida para uma definição de pessoa é apontado por muitos como a posse de uma cultura, ou seja, “o conjunto de todas as atividades e de todos os produtos que são frutos da iniciativa e da genialidade humana”. Por isso, a primeira definição de homem e, por conseguinte, de pessoa, seria aquela que o toma como “um ser cultural (e não natural)”.[5] Trata-se da emergência humana perante a natureza, tornando o homem por excelência o chamado “ser antinatura”.

Mondin repisa essa temática, qualificando-a de adequada “porque o homem não é como as plantas e os animais, um puro produto das leis da natureza, e não é nem o resultado de uma prodigiosa autotese, isto é, fez-se sozinho, mas é fruto de uma sapiente colaboração entre natureza e cultura”. [6] E segue destacando o fato de que “diversamente dos outros seres vivos, cujo ser é inteiramente produzido, pré – fabricado pela natureza, o homem é em grande medida o artífice de si mesmo. Enquanto as plantas e os animais sofrem, no ambiente natural em que se encontram, o homem é capaz de cultivá-lo e de transformá-lo profundamente, adequando-o às próprias necessidades”.[7] Em suma, o homem não se adapta ao ambiente, mas adapta o ambiente às suas necessidades.

Note-se que então essa seria a primeira característica a apartar os demais seres vivos não – humanos do estatuto de “pessoas”.  Sem essa qualidade de emergência, de autonomia ante aos determinismos naturais o ser não superaria o mero “status” de “coisa”.

No seguimento outro atributo é apontado, inclusive como pré – condição do primeiro. Esse atributo é a “liberdade”. É ela que, segundo Sartre “permite ao homem tornar-se o artífice de si mesmo”.[8] Na verdade a liberdade insere-se totalmente na qualidade de emergência anteriormente tratada. Ela se traduz e mostra sua face de maneira plena quando se constata a capacidade humana de superação dos mecanismos de determinação natural da conduta. Por isso só o homem pode ser bom ou mau, pode fazer mal a si mesmo, inclusive tirar a própria vida em total confronto com o instinto de autoconservação. Essa capacidade de escolha de caminhos, de acesso a normas de conduta gerais e abstratas que podem ser obedecidas ou transgredidas, seria outra característica exclusiva humana a reservar-lhe a qualificação de pessoa. Mas tudo isso forma um amálgama indissolúvel com a qualificação do homem como ser cultural.

A espiritualidade exsurge também como elemento importante na definição do homem e em sua constituição como pessoa. Para Mondin, a espiritualidade, embora menos evidente que sua materialidade, necessitando ser demonstrada e argumentada, nem por isso torna-se um fenômeno secundário. Ela é implícita nas definições anteriormente abordadas do homem como ser cultural e livre. São exemplos ou manifestações dessa espiritualidade imanente ao homem e que constituem elementos de sua configuração como pessoa, “a autoconsciência, a reflexão, a contemplação, o colóquio, a adoração, a autotranscendência etc.”. Tudo isso são condições que o espírito proporciona para a existência da liberdade, pois que só o espírito “é essencialmente livre”. O homem se sobreleva aos limites do espaço – tempo, ao ambiente, aos determinismos naturais e instintivos porque “leva consigo um elemento de imaterialidade e de espiritualidade, porque possui uma dimensão interior de natureza espiritual: a alma, a mente e o espírito”. Essa concepção que dá especial relevo à espiritualidade humana como elemento diferenciador dos demais seres vivos nos é legada sob o aspecto religioso pelo cristianismo e sob o enfoque metafísico pela filosofia oriental e platônica.[9]

Também o existencialismo heideggeriano não deixou passar “in albis” o assunto ora tratado. Segundo Derrida, a afirmação de Heidegger de que o animal não tem mundo traz como conseqüência sua não espiritualidade.[10] Isso porque o mundo é essencialmente espiritual; seu “ser” somente pode ser acessado pelo espírito que perscruta e não pela mera relação material.

A negação da espiritualidade atrelada à vedação do acesso a um mundo animal parece entrar em franca contradição com as famosas três teses de Heidegger:

1 – “A pedra é sem mundo”.

2 – “O animal é pobre de mundo”.

3 – “O homem é formador de mundo”.

Ora, se o animal é “pobre” e o homem é “rico” em mundo, sendo este espírito, então a conclusão mais coerente seria “menos espírito para o animal, mais espírito para o homem”, o que não implicaria numa “privação” de espírito para o animal, senão numa certa “restrição” deste. Mas, para Derrida, na verdade, “essa pobreza não é uma indigência, com pouco de mundo”, tendo induvidosamente “o sentido de uma privação, de uma falta”.[11] Essa “pobreza” do animal implicaria não em uma diferença de grau, mas sim de natureza da relação do animal e do homem com o “ser”. “O animal não tem uma relação menor, um acesso mais limitado a um ente, tem uma relação ‘diversa’” (grifo no original).[12]

Entretanto, o não ter mundo e, conseqüentemente, espírito do animal não corresponde ao mesmo “sem – mundo” da pedra, da matéria inanimada enfim. No caso do animal há “privação” porque ele pode ou poderia ter um mundo, ao passo que a pedra não tem mundo na forma de uma “simples ausência”: [13]

“O animal pode ter um mundo, posto que ele acede ao ente, mas é privado de mundo porque não acede ao ente como tal e no seu ser”. Ele não questiona, não nomeia nem classifica, permanece agrilhoado à mera relação material com os seres, embora, diferentemente da matéria inanimada, mantenha certa relação com o ser. No exemplo de Heidegger, “a abelha operária (...) conhece a flor, sua cor e seu perfume, mas ela não conhece o estame da flor como estame, não conhece suas raízes, o número de estames etc.”. Também o lagarto é outro exemplo de que Heidegger se vale, descrevendo sua permanência sobre a rocha ao sol e destacando que ele igualmente “não se reporta à rocha e ao sol como tais, como aquilo a respeito do que se pode colocar questões, justamente e dar resposta”. No entanto, o animal chega a ter uma relação com a pedra e o sol, enquanto a pedra não tem nenhuma relação com eles”.[14]

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Mas a relação do animal com as coisas, devido à falta da espiritualidade, o distancia sobremaneira da mesma relação entre o homem e as mesmas coisas, e, conseqüentemente distancia de forma abissal a animalidade da humanidade. Nas palavras de Michel Haar, citadas por Derrida: “O salto do animal que vive ao homem que diz é tão grande, senão maior, que o da pedra sem vida ao ser vivo”.[15]

A tradição oriental não deixa de perceber essa gradação da espiritualidade nos seres, resumindo-a poeticamente em versos:

“O espírito dorme na pedra,

Sonha na flor,

Acorda no animal

E sabe que está acordado no ser humano”[16]

A ascensão à condição de pessoa nesse contexto pressupõe então a presença da espiritualidade como característica indeclinável. E quando Heidegger aponta para a “pobreza e a privação” dos animais em espírito, isso implica em certa “hierarquização e avaliação”, na qual, sem dúvida, os animais são relegados a um segundo plano.[17]

Quando essa espiritualidade atribuída ao homem é enfocada sob um prisma teológico, passa-se a uma outra definição de pessoa que também tende a reservar somente aos seres humanos essa qualificação. Só o homem é o ser feito “à imagem e semelhança de Deus”, o único “Teomorfo”. [18]

Agora a espiritualidade é aquilo que possibilita ao homem e só ao homem ascender ao divino.

Deus passa a ser o paradigma que deve ser perseguido pelo homem que pode buscar a perfeição. Todo o esforço humano deve consistir então em aproximar-se o máximo possível de Deus e essa aproximação só é viável por meio da exaltação do espírito que é aquilo que enseja a supremacia do humano perante o restante da criação.

Mondin descreve essa concepção com bastante propriedade:

“O modelo, sobre o qual o homem deve decalcar o desenho da sua própria personalidade, não pode encontrá-lo nas criaturas inferiores: nem nas plantas, nem nos animais, nem nos astros. Nem mesmo no melhor dos outros homens, porque por mais que possa ser bom, inteligente, sábio, forte, santo, os homens são sempre dotados de uma humanidade imperfeita. De resto, a humanidade primitiva não pode avaliar-se pela exemplaridade de nenhum outro ser humano. O único modelo adequado à aspiração de infinitude do homem, encontra-se inscrito na própria espiritualidade. Não pode ser outro que um modelo infinito: infinito como espírito, infinito como inteligência, infinito como vontade, como liberdade, como bondade, como amor. O único modelo adequado que o homem deve assumir, para levar à plenitude da própria pessoa é, (...), Deus mesmo. Por este motivo, para a realização plena de si mesmo, que é ontologicamente teoforme, o homem deve fazer-se um imitador de Deus”.[19]

Nada mais que isso é o que propõe o Frei Tomás de Kempis  em sua obra sugestivamente intitulada “Imitação de Cristo”. Na forma de um diálogo entre uma “Alma fiel” e Jesus Cristo, faz brotar da boca do segundo a seguinte orientação:

“Filho, se desejas de verdade ser feliz, Eu devo ser teu fim último e supremo. Essa intenção purificará teu coração, tantas vezes apegado desregradamente a si mesmo e às criaturas. Porque se em alguma coisa te buscas a ti mesmo, logo desfaleces e afrouxas. Refere, pois, tudo a Mim, principalmente porque Eu sou quem te dá tudo”.[20]

Eis aí outra característica tomada como imprescindível para possibilitar a qualificação de um ser como “pessoa”, a transcendência possível em direção ao divino, o encontro de si mesmo na glória de Deus, cuja “imagem e semelhança” é atributo exclusivo humano.

Michelangelo (1475 – 1564), pintor, escultor, arquiteto e poeta italiano brindou a posteridade com uma obra prima que bem pode ser tomada como um dos grandes símbolos dessa concepção. Trata-se do afresco pintado na Capela Sistina denominado “A criação de Adão”, no qual o homem estende seu braço e seu dedo indicador toca aquele que representa o Deus Criador. Reproduzir a cena, trocando o homem por um macaco, por exemplo, consistiria em uma transgressão de enormes proporções a toda uma tradicional visão religiosa e filosófica.

Pode haver outros critérios além dos já mencionados para a definição de pessoa, mas estes são os mais aventados, de maneira que as argumentações geralmente giram em torno dessas questões. Apenas exemplificando, em 1972, Joseph Fletcher arrolou quinze critérios ou características de pessoa: “inteligência mínima, consciência de si, domínio de si mesmo, sentimento do tempo, noção de futuro, percepção do passado, aptidão para se comunicar com os outros, interesse pelos outros, comunicação, domínio de sua existência, curiosidade, desenvolvimento e variabilidade, equilíbrio entre a razão e os sentimentos, a idiossincrasia e a função neocortical”. Posteriormente, em 1974, avaliando as críticas que seus critérios ensejaram reduziu-os a quatro: “a consciência de si, a capacidade de interação, felicidade e a função neocortical”.[21]

Como conseqüência de todo o exposto, só o homem poderia ser tomado como pessoa (“persona”), pois que pessoa significa o que é mais perfeito em toda a natureza, o que consiste na natureza racional (São Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, 23, 2).[22] E isso torna o humano um “valor absoluto, não um valor instrumental”, pertencendo “à ordem do ‘frui’ e não àquela do ‘uti’. Na linguagem de Santo Agostinho, o homem (pessoa) existe “para usar e não para ser utilizado”.[23] Também de forma semelhante manifesta-se Kant, qualificando todo ser racional como um fim em si mesmo e jamais como um simples meio para quaisquer objetivos.[24]

O conjunto dessas concepções necessariamente exclui os animais de qualquer possibilidade de acesso ao estatuto de “pessoas” e suas correlatas prerrogativas.

No entanto, há quem advogue uma definição menos restritiva de pessoa. Peter Singer indica uma série de aproximações entre animais e humanos que, a seu ver, poderiam justificar a atribuição da qualidade de pessoas também aos primeiros. Parte de uma definição psicológica de pessoa, proposta por John .[25] É bastante conhecido o quanto as ciências (zoologia, etologia, psicologia, genética, anatomia comparada etc.) foram capazes de demonstrar que as características supra elencadas e outras mais não são exclusividade humanas, embora apresentem certas peculiaridades distintivas.

Na tentativa de distinção entre os homens e os animais, os primeiros já foram identificados e individualizados por diversas características tomadas como exclusivas. O homem já foi descrito como animal político, animal social, animal que ri, animal que fabrica utensílios, animal religioso, animal que cozinha, animal que dialoga, animal que é proprietário, animal racional, animal livre etc.[26]

Não obstante, tais definições, muito mais do que distinguir o homem dos animais, visavam “propor algum ideal de comportamento humano” [27] e efetivamente não operavam nenhuma distinção relevante do ponto de vista moral a alijar os seres não – humanos do estatuto de “pessoas”, de “sujeitos” aos quais se deve uma obrigação moral, mesmo porque, nem sempre podem ser tomados de forma geral e imparcial, como características verdadeiramente exclusivas dos humanos.

Em seus comentários à obra de Coetzee, Bárbara Smuts deixa clara sua impressão de que nossa classificação de pessoa tem uma base arbitrária, não se referindo ao fato concreto de que um ser possa ou não ser encarado como pessoa, mas sim à nossa disposição em assim encará-lo de acordo com a forma mais ou menos preconceituosa pela qual o vemos. O conceito de pessoa estaria, na verdade, ligado à possibilidade de uma relação social entre dois sujeitos que se afetam mutuamente e, especialmente, no reconhecimento dessa “relação pessoal”. Se os humanos não reconhecem os animais dessa forma, mas lhes atribuem o mero “status” de “coisas”, isso não quer dizer que eles são apenas “coisas”, mas que nós lhes atribuímos essa condição de forma preconceituosa e arbitrária, desconsiderando nossa possível “relação pessoal”. Nas palavras da autora, “quando um ser humano se relaciona com um indivíduo não – humano como objeto anônimo, mais do que como um ser com sua própria subjetividade, é o humano, e não o outro animal que renuncia à pessoalidade”.[28] Portanto, o que limita nossas relações com os animais é “a visão estreita com que pensamos quem são eles e que tipos de relações podemos ter com eles”.[29]

Tratar-se-ia, assim, de uma manifestação do chamado “especismo”, pois a qualidade de pessoa não deveria permanecer atrelada ao mero pertencimento à espécie “Homo Sapiens”. Deveria estar sim ligada a certos requisitos comuns a todos os seres sensíveis. Singer assim responde sobre o tema em entrevista a Bob Abernethy:

“A simples condição de fazer parte da espécie (“Homo Sapiens”) não basta. As qualidades que considero importantes são, em primeiro lugar, a capacidade de vivenciar a experiência de alguma coisa – isto é, a capacidade de sentir dor, ou de ter algum tipo de sentimento. Isto é realmente fundamental; e, no entanto, é algo que temos em comum com uma quantidade imensa de animais não – humanos”.[30]

É justamente a reformulação de um paradigma que concentra no homem e apenas nele toda a preocupação moral, que pode operar uma inovadora abordagem do tema dos Direitos dos Animais e, numa etapa seguinte, da própria relação da humanidade com a natureza. Entretanto, há que ponderar o perigo ínsito na identificação do homem com a animalidade pura e simples, bem como, especialmente, o alijar de determinados seres humanos da condição de pessoas devido à falta de certos requisitos. Nada há de negativo em buscar uma elevação do “status” dos animais e de sua consideração e tratamento como seres sensientes. Não obstante, a aproximação exagerada ou até mesmo a identificação do humano com o animal perverte a vertente antropológica e pode levar a efeitos contrários aos que os defensores dos animais pretendem. Ao invés de vermos os animais sendo tratados à semelhança dos humanos em suas relações morais, podemos passar a ver, como já ocorreu na história várias vezes, seres humanos sendo degradados ao tratamento dado a animais ou ainda abaixo disso. É inegável que o homem é dotado de corporeidade e que tem pontos comuns com a animalidade, mas o salto dado na hominização, especialmente sob o aspecto espiritual não pode ser olvidado.

Tratando do otimismo exagerado e midiático em que se envolve o mundo atual em relação às pesquisas genéticas, alerta, com acerto cirúrgico Guillebaud:

 “Os defensores do otimismo cientificista irritam-se quando convocamos essa memória para denunciar os possíveis desvios da genética. Para eles, essa incansável convocação de Hitler é exasperante. Eles veem nela um modo cômodo de encorajar todas as prudências ‘obscurantistas’ ou as reações ‘tecnofóbicas’ (os dois termos estão na moda). Estão errados. A referência intuitiva a esse passado não é irracional. É realmente a intransponível exceção nazista e a Shoah que fizeram nascer, em contrapartida, nossa preocupação obsessiva com o humano do homem. A cronologia histórica é testemunha disso. É depois da abertura dos campos e das valas comuns que o trágico foi convidado, para todo o sempre, para essa questão. Depois da Shoah, rompemos com aquilo que podia haver de cortês, de indiferente, de quase divertido, nos séculos XVII ou XVIII, nas reflexões sobre a animalidade ou humanidade da criatura (Plutarco, La Mettrie, Descartes e outros mais...). O sistema concentrador nazista fabricou desta vez, no sentido estrito do termo, uma subumanidade. Para o bem. Para a verdade. O homem inteiro, por meio do judeu ou do cigano, foi reduzido forçosamente à animalidade ou condenado ao estatuto de objeto ou de coisa. Os corpos supliciados, seus dentes, sua pele, seus cabelos, se tornaram matéria – prima... Em 1945 – 1946, subitamente, ‘o Ocidente descobriu (então) com horror que podíamos destruir uma verdade mais preciosa que a própria vida: a humanidade do ser humano”. [31]

Por seu turno, Henry chama a atenção para a barbárie da “naturalização” do homem pela ciência moderna, tornando-o indistinguível das coisas. [32]

A lição histórica não pode ser esquecida e exatamente por isso, quando se trata de vida e morte de seres humanos, estejam eles em que condição estejam, o substrato primeiro de qualquer discussão tem de ser um referencial teórico antropológico que não permita o olvidar da humanidade do homem e impeça, em qualquer situação, sua reificação.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Homicídio nos confins da vida:: entre o dever de cuidar e o suposto direito de matar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4214, 14 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35102. Acesso em: 19 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos