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Algumas considerações sobre o princípio do interesse público no âmbito do Direito Administrativo

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Agenda 01/11/2002 às 00:00

V – O PRINCÍPIO DO INTERESSE PÚBLICO E A SUA CORRESPONDÊNCIA NO DIREITO POSITIVADO

Visto que o princípio do interesse público é uma dos pilares de sustentação do nosso direito administrativo, cumpre declinar, ainda que superficialmente, alguns dos institutos sobre os quais o aludido princípio irradia seus efeitos. Até mesmo porque a definição jurídica do interesse público deve encontrar correspondência no direito positivo para que se afigure útil e servível ao estudo do direito administrativo.

Assim, no que atine as restrições que recaem sobre a propriedade privada, insta ter presente que o instituto da servidão e da desapropriação, por exemplo, retratam com fidelidade uma das facetas do interesse público. Neste momento, aproveitamos para pôr em xeque a definição de interesse público e ver se, efetivamente, a definição alinhavada é adequada e, conseqüentemente, está imune a qualquer sorte de distorção para continuar aplicável ou se, ao contrário, precisamos reformular ou reconstruir o conceito esboçado sob algum aspecto para que o encaixe das idéias se afigure possível.

A desapropriação, em condições normais, consabidamente, nada mais é do que o procedimento pelo qual o Poder Público, objetivando atender a uma necessidade ou utilidade pública ou, ainda, um interesse social, após prévia notificação, despoja o proprietário de seu bem, impondo a incorporação deste ao patrimônio público mediante o justo e adequado ressarcimento do particular.

Imaginemos hipótese em que, para o fim de aperfeiçoar a malha viária, o Poder Público municipal resolva, mediante a expedição de decreto expropriatório, despojar determinado sujeito do imóvel no qual habitava por mais de 20 anos com sua família. Suponhamos que dito bem tenha servido de residência às gerações passadas da referida família e, mais, que a sua localização seja próxima ao estabelecimento comercial que, presumamos, seja a fonte da qual decorre a atividade produtiva da família. Como se vê, com toda a clareza, não resta dúvida de que o ato administrativo determinante a expropriação irá causar um transtorno tremendo a estas pessoas que, de uma forma ou outra, ficarão privadas de desfrutar da propriedade que, afora a facilidade e conforto que apresentava - um deles consistente no fato de situar-se próxima ao empreendimento da família, - tinha um relevante e insubstituível valor estimativo, fundamentalmente porque serviu de abrigo aos antepassados daquela casta familiar. Individualmente, e, com bastante segurança, podemos dizer que a expropriação forçada não atende interesse individual desses indivíduos que, até então, residiam no imóvel, na medida em que eles terão de curvar-se à prevalência do interesse público, desocupando o imóvel com os predicados antes mencionados, diante da determinação de que o mesmo seja compulsoriamente incorporado pelo Estado. Contudo, se deixarmos de lado as questões pessoais e subjetivas – mantido o aspecto individual, percebe-se que a melhora do sistema viário municipal, ao pretender melhorar o fluxo do trânsito, é compatível do interesse daqueles sujeitos, senão como pessoas individualmente consideradas, mas enquanto cidadãos residentes naquela municipalidade, de modo que o escopo motivador da expropriação beneficia toda a coletividade, inclusive as próprias vítimas do decreto expropriatório, embora essa idéia fique obnubilada num primeiro momento, ostentando difícil visualização.

Concluindo, não há dúvida de que, em remissão ao que já se disse, o interesse público, longe de se constituir numa categoria oposta, convive com o direito individual propriamente considerado, não estando divorciado dos seus interesses. Mais, exsurge cristalino que o princípio do interesse público encontra patente aceitação nos institutos próprios do direito administrativo. De modo que, assim como mencionamos hipótese de desapropriação, poderíamos falar no poder ordenador da administração, usualmente conhecido como poder de polícia, ou até mesmo na característica dos contratos públicos, que ensejam rompimento unilateral de parte da Administração – existindo vários exemplos da repercussão do princípio do interesse público no âmbito do direito administrativo.

De modo que, encaminhando o fecho de nossa conclusão, o que devemos ter por certo é que não faltará instituto do direito administrativo em que não esteja presente, com maior ou menor força, os ditames decorrentes do interesse público, princípio basilar que, consoante procuramos demonstrar ao longo do presente opúsculo, apresenta fundamental prestígio para o adequado desempenho da Administração Pública enquanto função estatal que visa a atender aos interesses e necessidades da coletividade.

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VI – UM CASO EXTRAÍDO DA JURISPRUDÊNCIA

Neste último tópico, ilustrando a temática exposta, reproduzimos a seguir decisão que retrata um precedente jurisprudencial oriundo do Supremo Tribunal Federal, cujo julgamento conduziu ao exame da indisponibilidade do interesse público e de suposta ofensa ao princípio da legalidade. O aresto referido foi ementado nos seguintes termos:

"Poder Público. Transação. Validade. Em regra, os bens e o interesse público são indisponíveis, porque pertencem à coletividade. É, por isso, o Administrador, mero gestor da coisa pública, não tendo disponibilidade sobre os interesses confiados à sua guarda e realização. Todavia, há casos em que o princípio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado, mormente quando se tem em vista que a solução adotada pela Administração é a que melhor atenderá à ultimação deste interesse. Assim, tendo o acórdão recorrido concluído pela não onerosidade do acordo celebrado, decidir de forma diversa implicaria o reexame da matéria fático-probatória, o que é vedado nesta instância recursal (Súm. 279/STF). Recurso extraordinário não conhecido."

(STF – 1ª Turma; RE n° 253885/MG; Recurso Extraordinário, Relatora Ministra Ellen Gracie Northfleet, julgado em 04/06/02)

Examinando o inteiro teor dessa decisão, depreende-se que a interposição do recurso extraordinário deu-se sob a alegação de que determinado acordo firmado entre a Municipalidade recorrente e seus agentes teria violado o princípio da legalidade e o princípio do interesse público, diante da inexistência de lei autorizadora. Considerando que "o acordo serviu a uma mais rápida e efetiva consecução do interesse público", ao destacar o caráter alimentar do pacto destinado ao pagamento de salários dos servidores municipais, a nobre julgadora entendeu que não houve a caracterização de ofensa ao art. 37 da Constituição Federal, muito antes pelo contrário - de modo que, reconhecendo a procedência do pedido dos servidores e providenciando a pactuação com os beneficiários, a Administração nada mais fez do que o elogiável exercício da autotutela estatal, dispensando o recurso ao Judiciário.

Parece-nos que a decisão foi posta na forma adequada. A indisponibilidade do interesse público decorrente da transação entre administrador e administrado deve ser relativizada, contanto que a solução última adotada tenha atendido plenamente à consecução do interesse público que, no caso, consistia na observância dos direitos dos servidores beneficiários à percepção de resíduos salariais que lhes cabiam. Seria estranho que, sob o argumento da indisponibilidade do interesse público, a Administração estivesse impedida de anular ato administrativo e, conseqüentemente, reconhecer a procedência de pedido formulado pelos respectivos servidores. Mais uma vez, na nossa modesta ótica, evidencia-se aqui a distinção entre interesse primário e interesse secundário, ponto sobre o qual já discorremos. Somente a título deste último é que encontraria justificativa a eventual resistência da Administração em revisar os seus próprios atos como forma nítida de protelar o julgamento de uma pendência judicial cuja derrota já estava mais do que anunciada. No momento em que a administração celebra acordo com seus servidores, no qual reconhece procedência do pleito contra si formulado, atitude merecedora dos maiores encômios, é que está efetivamente arcando com as suas responsabilidades e, conseqüentemente, honrando e prestigiando a tutela do interesse público propriamente dito.


VI - CONCLUSÃO

O presente trabalho procurou dimensionar o princípio do interesse público no direito administrativo, expondo, ainda que em apertada síntese, alguns de seus contornos fundamentais.

Partindo dos estudos da doutrina, especialmente das judiciosas conclusões de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO - em nossa modesta ótica, um dos melhores juristas brasileiros - procuramos conciliar a assimilação teórica e abstrata do princípio sem, com isso, nos afastarmos de cotejar tais premissas no direito positivo. Com o fim de explicitar a efetiva consagração do princípio em tela, elegemos um caso da jurisprudência para ilustrar temática tão importante para a compreensão do direito administrativo.

Com base no que vimos, tem-se que o princípio do interesse público é onipresente, devendo, em tese, pautar a essência de todo e qualquer ato administrativo. Estamos seguros de que a matéria, ao contrário da primeira impressão que se possa ter, não é tão singela quanto parece, de forma que, sem sombra de dúvida, o tema em questão tem potencial para ensejar uma abordagem mais aguda e, por conseqüência, muito mais competente do que a nossa. De qualquer forma, estamos satisfeitos por lançar a nossa tinta, embora saibamos que cores muito mais vivas ainda mereçam ser lançadas para que a matéria tenha um estudo condizente com a sua importância.


Notas

1. BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 9ª edição, Brasília, UNB, 1997, p. 158/159.

2. Obra citada, p. 19.

3. Obra citada, p. 66.

4. Curso de Direito Administrativo, Ed. Malheiros, p. 32.

5. LIMA, RUI CIRNE. Princípios do Direito Administrativo. 5ª edição. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1982, p. 15/16.

6. Como bem salienta MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, em sua obra anteriormente citada (p. 69), "O Direito deixou de ser apenas instrumento de garantia dos direitos do indivíduo e passou a ser visto como meio para consecução da justiça social, do bem comum, do bem estar coletivo.

7. Obra citada, p. 59.

8. Obra citada, p. 63.

Sobre o autor
Márcio Soares Berclaz

Promotor de Justiça do Estado do Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERCLAZ, Márcio Soares. Algumas considerações sobre o princípio do interesse público no âmbito do Direito Administrativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3545. Acesso em: 22 nov. 2024.

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