4 - Definições preliminares
Antes de adentrarmos na análise dos instrumentos de desenvolvimento urbanístico, julgamos oportuno algumas considerações acerca de algumas expressões pertinentes ao tema.
4.1 – Solo urbano
Tanto o §4º do art. 182 da CF, quanto o art. 5º do Estatuto, fazem referência a solo urbano.
Alexandre Levin[43], faz referência a José Afonso da Silva, que ensina:
“A qualificação de solo como ‘urbano’ é função dos planos e normas urbanísticos, que lhe fixam o ‘destino urbanístico’ a que fica vinculado o proprietário (...) Esse destino consiste primordialmente na ordenação do terreno e na sua predeterminação a uma das funções do urbanismo”.
Segundo o mesmo autor, a utilização do solo urbano pelo proprietário também depende da predeterminação dada pela legislação urbanística.
A edificabilidade é uma das utilidades legais do solo, cuja vocação natural é a produção de “riquezas naturais“, segundo José Afonso da Silva, mencionado na mesma obra supra.
Deste modo, é o plano diretor ou outra lei municipal que define o solo como urbano, conferindo-lhe a destinação urbanística mais conveniente à coletividade, ao que estará vinculado o proprietário na utilização deste espaço.
4.2 – Solo subutilizado
Os dispositivos legais em análise também fazem referência a solo subutilizado.
A definição de subutilizado é trazida pelo próprio Estatuto da Cidade, no §1º do art. 5º[44] que assim considera o imóvel “cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano diretor ou em legislação dele decorrente”.
Trata-se, nas palavras de Alexandre Levin[45], do imóvel “cujo aproveitamento fique abaixo do coeficiente mínimo para a área em que se situa.”
O autor continua sobre o tema referindo-se à corrente doutrinária[46], cujo entendimento também inclui a edificação ociosa na definição de imóvel subutilizado.
Considera-se que há um aspecto qualitativo e não apenas quantitativo na caracterização da função social da propriedade, transcrevendo o autor exemplo de Victor Carvalho Pinto: “um terreno que contenha edificação industrial em zona residencial pode ser considerado subutilizado.”
O posicionamento majoritário, ao que nos pareceu, está na corrente cujo entendimento é no sentido de que não há como ampliar o rol do §1º do art. 5º do Estatuto da Cidade[47].
Não apenas, havia uma outra hipótese de imóvel subutilizado, inicialmente prevista no inciso II do §1º do art. 5º do Projeto do Estatuto e que foi objeto de veto presidencial. O dispositivo vetado previa que poderia ser considerado subutilizado o imóvel “utilizado em desacordo com a legislação urbanísica ou ambiental[48]”.
Conforme pondera Victor Carvalho Pinto[49], a exigência é que sejam fixadas àreas máximas de lotes e coeficientes mínimos de aproveitamento, cabendo ao plano diretor estabelecer tais índices, considerando a proporcionalidade entre a densidade populacional e a disponibilidade de infra-estrutura em cada região da cidade.
4.3 – Imóvel não utilizado
Entende-se como não utilizado o imóvel urbano “despojado de qualquer uso útil e legal, como é o dotado de vegetação imprestável para qualquer fim de interesse social”, segundo Diogenes Gasparini[50].
O autor complementa a definição:
“Também quando está há longo tempo desocupado e já começa a mostrar sinais de abandono (...) também os imóveis cujas construções foram iniciadas e estão há muito tempo paralisadas (...) deve ser prescrito pela lei específica a que se refere o caput do art. 5º do Estatuto da Cidade.”
De se observar que o imóvel, em qualquer das situações acima descritas, estão distantes do ideal delineado pelo princípio da função social da propriedade urbana.
Com efeito, os parâmetros para aferição da não utilização do imóvel são fornecidos pelo Plano Diretor Municipal, assim como a medida da subutilização do solo, conforme bem explicita Alexandre Levin, p. 104 da mesma obra supra mencionada.
4.4 - Imóvel não edificado
Na definição de Vera Scarpinella Bueno[51], imóvel não edificado é “a terra nua que não atende à utilização desejada pelo plano diretor e lei dele decorrente (moradia, indústria, recreação, etc).”
Mais uma vez utilizamos os comentários precisos de Alexandre Levin, na sequência, que destaca o fato de que a qualificação do imóvel como não edificado deve ser realizada em cotejo com as disposições do plano diretor. – g.n.
Assim, a não edificação deve ser contrária às diretrizes do plano diretor para ser considerada contrária ao princípio do função social da propriedade, visto que a próppria legislação municipal pode proibir que se construa em determinada área urbana, a exemplo das praças, área verdes, área de lazer, dentre outras.
Aproveitamos a lição de Carvalho Filho[52] que assim resume os três tópicos acima:
“O certo é que o art. 182, §4º da Constituição, estabelece três tipos de condições (ou pressupostos) para que o Município possa diligenciar as imposições urbanísticas: terreno não edificado, terreno subutilizado e terreno não utilizado. No primeiro caso, tem-se a área despida de construção; no segundo, o terreno é usado em desconformidade com o plano diretor; no terceiro, o terreno não tem qualquer utilização.”
5 - Instrumentos de política urbana
Conforme já mencionado acima, a Constituição Federal de 1988 determinou em seu art. 182 a execução de políticas de desenvolvimento urbano pelo Município, conforme diretrizes gerais fixadas em lei.
Neste sentido, foi editada a Lei 10.527/ 01 – Estatuto da Cidade - que indicou as diretrizes da política de desenvolvimento urbano, com instrumentos hábeis à realização da concreta aplicação dos princípios normativos fundamentais, voltados à efetividade da função social da propriedade urbana.
O cumprimento da função social da propriedade urbana é a premissa maior, porquanto Constitucional[53], dessas diretrizes e instrumentos de desenvolvimento urbanísticos, como bem ponderado por Alexandre Levin[54]:
“Nada disso é realizado sem a existência de plano diretor municipal, que fornece os parâmetros para a aferição do cumprimenro da função social da propriedade imobiliária urbana”.
Novamente fazemos referência à doutrina de Carvalho Filho[55] que divide os instrumentos urbanísticos em gerais e especiais, “entendendo-se como gerais aqueles que têm utilidade para toda e qualquer cidade, e como especiais aqueles que atendem a situações particulares de cada cidade.”
Ressalta, ainda, o autor, que “os instrumentos gerais têm as suas linhas básicas definidas no Estatuto, em cujo art. 4º se encontra substancioso elenco. Já os instrumentos especiais são normalmente empregados pelos governos das próprias cidades, que, como é evidente, conhecem de perto as particularidades de sua ordem urbanística.”
Dentre referidos instrumentos estão o parcelamento, a edificação e a utilização compulsórios, objetos do presente estudo.
Dispõe o §4º do art. 182 da Constituição Federal que:
Art. 182.
§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios; - g.n.
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
Em atendimento ao dispositivo Constitucional supra, o Estatuto da Cidade prevê em seu artigo 5º:
Art. 5o Lei municipal específica para área incluída no plano diretor poderá determinar o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórios do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, devendo fixar as condições e os prazos para implementação da referida obrigação. – g.n.
Trata-se, portanto, de previsão Constitucional e legal que permite (e determina, simultaneamente), que o Poder Municipal imponha o princípio da função social da propriedade urbana, com impedimento à retenção meramente especulativa.
Carvalho Filho[56] sintetiza a questão nos seguintes termos:
“O poder de exigibilidade do governo municipal consiste na possibilidade de o proprietário ser obrigado a providenciar a adequação de seu imóvel ao plano diretor. Descumprindo essa obrigação, o proprietário sujeitar-se-á, sucessivamente, a três tipos de providências, conforme previsão no art. 182, §4º: 1ª) o parcelamento ou a edificação compulsórios (inc. I); 2ª) IPTU progressivo no tempo (inc. II); 3ª) desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública (inc. III).
Conclusão pertinente do mesmo autor, no sentido de que, a obrigação de parcelamento ou de edificação “não contém densidade punitiva”, mas apenas aponta qual providência deve ser tomada pelo proprietário.
Apenas se não atendida a determinação do Município, é que serão tomadas as subsequentes providências administrativas, “estas sim, nitidamente com o caráter de sanção”.
Como bem pondera o mesmo autor, as obrigações urbanísticas no sentido de se observar o princípio da função social da propriedade, demonstram destacar a propriedade como um direito absoluto, adequando-a ao bem-estar social (promovedo o bem de todos) e impedindo-se práticas especulativas. – g.n.
5.1 – Parcelamento compulsório
Parcelamento do solo urbano, de acordo com a Lei 6.766/ 79, é a divisão em lotes de uma gleba ou área situada em zona urbana ou de expansão urbana.
Para Carvalho Filho[57], parcelamento do solo “é a providência pela qual se procede a sua subdivisão, em parte iguais ou não, de modo a resultarem vários módulos imobiliários autônomos em substituição à área parcelada.”
Nos termos do art. 2º da referida lei, o parcelamento do solo urbano pode ser feito através do loteamento ou do parcelamento:
Art. 2º - O parcelamento do solo urbano poderá ser feito mediante loteamento ou desmembramento, observadas as disposições desta Lei e as das legislações estaduais e municipais pertinentes.
O §1º[58] do referido artigo, considera loteamento a subdivisão de uma área (ou gleba) em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes.
O desmembramento, por sua vez, é definido pelo §2º do mesmo artigo, e também consiste na subdivisão de área (ou gleba) em lotes destinados a edificação, porém, com aproveitamento do sistema viário existente, ou seja, sem abertura de novas vias e logradouros públicos, nem prolongamento, modificação ou ampliação dos já existentes.
Segundo Diogenes Gasparini, citado por Alexandre Levin[59], “tanto o loteamento quanto o desmembramento objetivam a implantação de uma aglomeração urbana, mas o primeiro implica a abertura ou o prolongamento de logradouros públicos, e o segundo não”.
Nenhuma das duas modalidades pode ser confundida com o fracionamento “que é apenas a divisão da área urbana sem nenhuma intenção de implantar uma aglomeração urbana”.
Não podemos deixar de transcrever, também, a definição dada por José Afonso da Silva, citado pelo mesmo autor e obra supra mencionados, para quem o “parcelmento urbanístico do solo é o processo de urbanização de uma gleba, mediante sua divisão ou redivisão em parcelas destinadas ao exercício das funções elementares urbanísticas”.
Sendo assim, uma vez que haja inobservância da função social do imóvel, nos termos e áreas definidos pelo plano diretor, pode o Poder Público Municipal, através de lei específica, obrigar o proprietário ao loteamento ou ao desmembramento de gleba ou lote com dimensões superiores ao máximo permitido pela legislação municipal.
Novamente nos utilizamos dos ensinos de Carvalho Filho[60], que ressalta que o Estatuto da Cidade contempla o chamado “parcelamento compulsório, providência a cargo do proprietário (...) imposição que só vai ocorrer no caso de o imóvel estar dissonante das linhas traçadas pelo plano diretor (...) significa que o imóvel não atende sua função social representada pela ordem urbanística definida no plano da cidade”.
Note-se que o parcelamento imposto pelo Município deve adequar-se ao plano diretor da cidade, conforme pondera o mesmo autor.
5.2 – Edificação compulsória
Edificiação é, segundo Carvalho Filho[61], “atividade por meio da qual se executa alguma construção sobre o solo”.
“Edificiar”, prossegue o autor, “é construir, erguer, levantar, fundar algum edifício, a partir de alguma profundidade do subsolo, mas com o início visível a partir do solo”.
A edificação consiste em uma construção ou obra que se destina à habitação, trabalho, culto, ensino ou recreação, constituindo um direito cujo exercício é subordinado às denominadas regras edilícias, como por exemplo, a obtenção do alvará municipal de licença de edificação.
Pressuposto básico para concessão da licença de edificação é a existência de área livre, ou seja, sem construção.
Assim, está autorizado o Município impor obrigação de edificar ao dono do imóvel urbano sem aproveitamento algum, com a condição de que a “não edificação” do solo seja contrária ao disposto pelo plano diretor e desde que cumpra os requisitos do art. 5º do Estatuto da Cidade.
Nada impede, vaticina Carcalho Filho na sequência da citação supra, que nos casos de terreno subutilizado, também se imponha a edificação compulsória: “o proprietário deverá demolir a construção existente e proceder a nova edificação, ou, ao menos, acrescentar construção para que o aproveitamento atinja o mínimo fixado no plano diretor.”
5.3 – Utilização compulsória
Com relação à utilização, importante mencionar que, conforme destacado pela doutrina[62], tanto o art. 5º do Estatuto quanto o art. 182, §4º da CF, trazem a expressão “não edificado, subutilizado ou não utilizado”, porém, o texto constitucional não faz referência expressa à “utilização compulsória”, como instrumento de desenvolvimento urbano.
Como bem observa Carvalho Filho[63], a Constituição e o Estatuto referem-se à utilização do imóvel em dois momentos diversos: uma para indicar a subutilização e outra a não utilização. – g.n.
São situações diferentes, continua o autor:
“A não utilização significa que determinada área não possui qualquer tipo de uso ou de atividade; o proprietário posta-se em situação passiva. Já a subutilização tem o sentido de uso indevido ou impróprio em face de determinados padrões de uso fixados no plano diretor; o proprietário aqui tem postura ativa, porque assume o uso, muito embora de modo diverso do que deveria.”.
Entende parte da doutrina que não é possível a imposição da utilização compulsória do imóvel sob pena de incorrer-se em inconstitucionalidade.
Há uma corrente doutrinária contrária[64], que entende que o Estatuto da Cidade, atravéz da utilização compulsória, buscou conferir maior eficácia ao dispositivo constitucional de política urbana.
Além disso, há o entendimento de que o inciso I do §1º do at. 5º do Estatuto, refere-se a “aproveitamento inferior ao mínimo definido no plano direitor”, que deve ser entendido não apenas sob o aspecto quantitativo, mas também qualitativo.
Significa dizer que, além de se verificar se há desatendimento ao coeficiente mínimo de aproveitamento, deve-se verificar, também, se a utilização do imóvel está de acordo com o princípio da função social da propriedade, através de outros indicadores elaborados pelo próprio plano diretor do município.
Carvalho Filho[65] pondera que a Constituição Federal é clara ao apontar duas cominações urbanísticas para o caso de imóvel urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado: o parcelamento e a edificação compulsórios: “Não foi feita nenhuma referência à utilização compulsória.”
Porém, observa o autor;
“O parcelamento e a edificação já são, por si mesmas, formas de utilização do solo urbano, mas são formas que exprimem finalidades específicas – uma, a de dividir a área, e outra, a de construir nela. Mas o termo utilização é mais amplo e pode indicar o uso para finalidades diversas, e para estas a Constituição não permitiu imposições urbanísticas.”
Segundo o Carvalho Filho, ainda, a subutilização no Estatuto, definida no art. 5º, §1º, I[66], deixa dúvidas quanto ao seu sentido. Admite-se que o legislador referiu-se ao termo “aproveitamento”, como sendo o “coeficiente de aproveitamento, que é a relação entre a área total do lote e a área da construção”.
O autor menciona, também, o fato do Poder Executivo ter vetado o inciso II do art. 5º, §1º do Estatuto, que considerava também subutilizado o terreno “utilizado em desacordo com a legislação urbanística ou ambiental”.
O autor segue a partir da página 104 da mesma obra, uma interpretação da questão conforme a Constituição Federal e considera que o artigo 5º do Estatuto exige interpretação conforme a Constituição para a aferição de sua validade no plano de compatibilidade normativa.
Finalmente, pondera o autor que, se a obrigação do uso consistir na ampliação da construção para atingir o coeficiente mínimo de aproveitamento, “será ela caracterizada como obrigação de edificar, sendo desnecessária a menção à obrigação de utilizar – expressão genérica na qual se insere a obrigação de edificar”.