Resumo: O trabalho tem por escopo suscitar reflexões e traçar delineamentos para uma melhor intelecção do instituto da medida de segurança. Inicialmente, precisar-se-á delimitar semanticamente a loucura, investigando as variações que o termo sofreu ao longo do incurso histórico, influenciado pelos valores de cada sociedade. Assim, será que a loucura é “filha do seu próprio tempo”? Reflexões sociológicas, psicológicas, filosóficas vão ser necessárias nesse ponto, juntamente com a crítica de Machado de Assis e de Robert Louis Stevenson e a ressalva de Jacques Lacan. Ademais, serão trabalhados, perfunctoriamente, os conceitos de fato típico, antijurídico e culpável que dão origem ao conceito analítico de crime. Isso ajudará a entender dogmaticamente a medida de segurança, em especial, qual dos três elementos é solapado pela inimputabilidade. A investigação será aprofundada, em seu viés dogmático, trazendo a opinião e crítica dos mais influentes doutrinadores nacionais. A sistematização da tipologia das medidas de segurança também merecerá destaque. Tema deveras interessante é o limite temporal do instituto, o qual será problematizado de forma ampla. Ao cabo, outros aspectos, como os dispositivos concernentes à matéria na Lei de Execuções Penais, a saber, a superveniência de doença mental no cumprimento da pena privativa de liberdade, medida de segurança substitutiva aplicada a semi-imputável, direitos do internado, etc.
Palavras-chave: medida de segurança, loucura, inimputável.
1. Prolegômenos
O presente trabalho objetiva traçar delineamentos para um melhor entendimento do instituto da medida de segurança. Para isso, tentará delimitar o campo semântico do termo loucura de acordo com as variações que esta sofreu ao longo da história, influenciada pelos valores de cada sociedade. Mas, será que a loucura é mesmo “filha do seu próprio tempo”? Outrossim, algumas reflexões filosóficas, históricas e sociológicas vão merecer destaque neste ponto, sem esquecer da crítica, em tom irônico, de Machado de Assis e de Robert Louis Stevenson e a ressalva de Jacques Lacan.
Superficialmente serão trabalhadas noções como fato típico, antijurídico e culpável, os quais engendram o conceito analítico de crime. Tais noções ajudaram a entender o instituto da medida de segurança.
A análise de tal instituto, com seu arcabouço dogmático, será feita de forma ampla, trazendo a opinião e crítica de vários doutrinadores brasileiros. Também será traçada uma sistematização, baseada na doutrina tradicional, da tipologia das medidas de segurança. A questão do limite temporal do instituto também será problematizada e abordada de forma ampla. Ademais, outros aspectos do Código Penal e da Lei de Execuções Penais, julgados pertinentes e relacionados com o instituto também serão explorados.
2. O direito penal da loucura: breves delimitações e reflexões sobre a loucura.[1]A crítica de Machado de Assis e de Robert Louis Stevenson e a ressalva de Jacques Lacan.
Geralmente as pessoas gostam de estereótipos, para simplificar/reduzir a infinita contingência do real. Desta feita, é mais fácil trabalhar com categorias binárias, dicotômicas e maniqueístas como rico/pobre, belo/feio, bem/mal, verdadeiro/falso, justo/injusto negro/branco, são/louco. A mente precisa de simplificações para melhor apreender, inteligir e perscrutar o real. Vê-se, pois o quanto estamos amarrados em pressupostos filosóficos ideológicos, frutos de uma herança formalista e cientificista, a qual recebemos acriticamente, reproduzindo sem pensar. Assim, fica claro que “os maniqueísmos são próprios dos pensamentos metafísicos e projetam, no plano dos discursos científicos, a insuperável dualidade entre razão e emoção”.[2]
O conceito de loucura não é unívoco. E, malgrado tudo que já foi escrito para provar o contrário, não se pode admitir que exista um conceito de loucura vagando pelo mundo platônico das ideias, paulatinamente desvendado pelo progresso da ciência. A loucura, nas sociedades- a partir de uma leitura atual-, está ligada à questão de como a pessoa se relaciona consigo mesma, como se relaciona com os outros e, principalmente, como vê o mundo e por este é vista.
De acordo com o psiquiatra Augusto César de Farias:
a história da relação do ser humano com a loucura é, desde os primórdios da civilização, a história da tolerância para com a diferença entre as pessoas. Dessa maneira, as sociedades ditas mais primitivas consideravam os indivíduos que apresentavam transtornos mentais como emissários da divindade e assim portadores de poderes sobrenaturais. A inserção da sua diferença numa perspectiva religiosa proporcionava ao louco um lugar contextualizado dentro da comunidade, fazendo com que sua singularidade, ao invés de ser excluída, fosse assimilada como uma contribuição e não como uma subtração ao bem comum. Assim, já na antiga Mesopotâmia, no Egito antigo, entre os hebreus e os persas, e no extremo Oriente a loucura era entendida como uma condição especial que concebia ao indivíduo que apresentasse uma feição próxima ao divino.[3]
A noção de loucura e seus corolários não foram conhecidos em todas as épocas nem da mesma forma. A própria singularidade e as noções de personalidade e de indivíduo são noções culturalmente construídas e não categorias platônicas supra-históricas, como visto. Daí decorre que o desajuste da personalidade não pode ser compreendido fora do seu contexto cultural e social. A loucura é filha do seu próprio tempo. Um louco, segundo os padrões da sociedade atual, em tempos antigos, poderia ser considerado um deus, um representante de Deus, um pajé, um feiticeiro ou mesmo um anjo.
Destarte, na antiguidade, entre os hebreus, o Rei Saul apresentava crises de mania por se sentir atacado por “maus espíritos”. Nabucodonosor apresentava crises de “licantropia”, uivava pelas noites no reino, e em função disto, cometia desatinos, que por esse fato eram “justificados”.[4] No entanto, apesar de tais idiossincrasias, o Rei Saul e Nabucodonosor jamais foram tidos como loucos pelas suas sociedades.
Interessante ressaltar que, partindo da Nau dos Loucos, Foucault mostra que tal embarcação, ao lado de sua existência literária, teve existência real, levando sua “carga insana” de uma cidade para outra. No final da Idade Média, vemos as cidades escorraçarem os loucos - ou escorraçarem os loucos que não são seus, pois em muitos casos as cidades somente aceitavam cuidar dos seus próprios loucos – para um outro lugar, às vezes confiando-os, de fato, aos navios que ali passavam; às vezes simplesmente levando-os para longe, de onde não podiam retornar. Este é o espaço do louco, para Foucault – “o espaço nenhum, a eterna passagem” -, condenado para sempre a não estar em sua própria pátria, a não ter pátria alguma, a ser de nenhum lugar.
Com o Renascimento, toma vulto a concepção de que a condição humana passa a ser profundamente imbricada com a sua própria loucura. A loucura é a essência do próprio homem e essa essência é desnudada por uma série de filósofos e escritores. Sob a égide da visão de mundo de seus personagens-, a nova concepção da loucura escolhe as bases para se assentar. Nesse sentido, Shakespeare, com tantos personagens enlouquecidos exatamente quando vislumbram a verdade insuportável de suas próprias essências humanas. Cite-se Cervantes, com seu Dom Quixot tão profundamente revelador da loucura em cada um de nós. Cite-se Erasmo de Rotterdam, com sua obra Elogio da Loucura – tão essencialmente contraposto, na sua busca do mais absolutamente humano, a todo o cartesianismo das eras posteriores. De fato, para Erasmo, a oposição entre razão e loucura se esfumaça: tanto mais louco é o homem quanto mais são e sábio se reconhece e tanto mais sábio quanto mais à própria loucura se entrega.
Posteriormente, foram as casas de internação, da Europa Iluminista dos séculos XVII e XVIII, que prepararam toda a cultura moderna e contemporânea, considerando que os portadores de condutas “desviantes” tinham algum parentesco entre si, permitindo uma estereotipização dos loucos. Interessante as palavras de Foucault:
Estranha superfície, a que comporta as medidas de internamento. Doentes venéreos, devassos, dissipadores, homossexuais, blasfemadores, alquimistas e libertinos: toda uma população matizada se vê repentinamente, na segunda metade do séc. XVII, rejeitada para além de uma linha de divisão e reclusa em asilos que se tornarão, em um ou dois séculos, os campos fechados da loucura. Bruscamente, um campo social se abre e se delimita: não é exatamente o da miséria, embora tenha nascido da grande inquietação com a pobreza. Nem exatamente o da doença e , no entanto, será um dia por ela confiscado. Remetemos antes a uma singular sensibilidade, própria da era clássica. Não se trata de um gesto negativo de “pôr de lado”, mas de todo um conjunto de operações que elaboram em surdina, durante um século e meio, o domínio da experiência onde a loucura irá reconhecer-se antes de apossar-se dele.[5]
E, assim, eis que chega a loucura. O caminho seguido pelo continente europeu no sentido da internação e da medicalização da loucura, bem como a atribuição dos diversos significados que a loucura tem hoje- vale dizer, a própria construção de um conceito de loucura – são, segundo Foucault, resultado da grande experiência de internação ocorrida nos séculos XVII e XVIII.
A singularidade é um predicado de todo ser humano. Somos todos, de certa forma, singulares, mas também somos, em grande medida, semelhantes. A noção moderna de loucura, no entanto, só poderia alcançar a natureza que tem hoje em uma sociedade que conhecesse a noção de indivíduo tal como a conhecemos e que fosse amplamente lastreada em um princípio de racionalidade positiva, como somos. Tal sociedade é a Europa iluminista dos séculos XVII e XVIII, que venerava/cultuava a razão, a ciência, a experiência, o método e a técnica. Apesar de não ser deste período, mas, sim, do Renascimento, a antológica frase de Descartes “cogito ergo sum” (peso, logo existo/sou [como preferem alguns]) serve para ilustrar o culto à razão e ao pensamento como arquitetônica formal de cunho matematizante. Assim, não se pode encontrar o ser naquele que não reconheço como pensante.
Todavia, com o iluminismo e o crescimento do racionalismo europeu, o progressivo êxito da ciência em realizar uma descrição do real acabou gerando um afastamento entre as ciências, em sentido estrito, e a filosofia. Assim, restou a esta última os domínios da epistemologia e da ontognoseologia como legítimos às sua atuação, uma vez que os domínios metafísicos foram deslegitimados pelo próprio Comte como “próprios de uma sociedade involuída”.[6] Curioso que o próprio Comte foi considerado louco pela comunidade científica, no final de sua vida, pela sua ideia de criação de uma igreja para cultuar a razão e a sua guinada para interesses ocultistas.
Neste mesmo sentido, vale conferir o romance O médico e o monstro[7], que pode ser classificada como pertencente ao romantismo da segunda geração. Tornou-se familiar ao imaginário ocidental moderno o drama vivenciado pelo cientista que verifica ter a personalidade irremediavelmente cindida. O Dr. Jekyll, atormentado por seu duplo demoníaco, encarna o sofrimento do indivíduo, consciente das forças antagônicas que habitam sua subjetividade, dando origem ao tenebroso Sr. Hyde, o alter ego maligno daquele. Ao perde o controle sobre os polos da generosidade e da perversão, o Dr., que queria governar a ambiguidade da natureza humana, torna-se vítima da própria transposição das fronteiras éticas da experiência científica. Desta feita, em um período de crença quase ilimitada no progresso e acentuado desenvolvimento tecnológico, a representação do conflito entre natureza e cultura, encetado no livro, põe em xeque a condição humana e a ânsia ilimitada de liberdade. Assim, tal obra antecipa estudos que seriam posteriormente desenvolvidos no âmbito da pesquisa psicanalítica. O sujeito atravessado por uma miríade de vozes constitutivas e a questão da identidade são, pois, trabalhados de forma magistral. Por fim, o livro chama a atenção para a complexidade antagônica característica da natureza humana e para a existência de monstros interiores, os quais podem engendrar as mais destrutivas inclinações.
Desse modo, a dualidade do ser, no sentido freudiano, aparece na literatura antes de ser traduzida pelo pai da psicanálise. Traduzindo apertadamente em termos freudianos, o id=Hyde (o irracional/o louco), o superego=doutor (o racional/o são) e o ego=Jekyll, que se reduz a uma espessura mínima. [8] Sobre o fenômeno do duplo, assim se manifestaria Sigmund Freud:
podia ser levado em conta na ânsia de defesa que levou o ego a projetar para fora aquele material, como algo estranho a si mesmo. Quando tudo está dito e feito, a qualidade da estranheza só pode advir do fato de o “duplo” ser uma criação que data de um estágio mental muito primitivo, há muito superado – incidentalmente, um estágio em que o “duplo” tinha um aspecto mais amistoso. O “duplo” converteu-se num objeto de terror, tal como, após o colapso da religião, os deuses se transformam em demônios.[9]
A crítica ao cientificismo será corroborada no conto O Alienista[10]. Neste pequeno grande livro, o leitor pode encontrar o melhor da ironia machadiana, representante da avant-garde da prosa da escola literária do realismo. Na história, o respeitado alienista (psiquiatra) Dr. Simão Bacamarte- imbuído do cientificismo de sua época-, tenta estabelecer um critério cabal para saber quem é louco e quem é são. Desse modo, todos os loucos são abrigados na Casa Verde (manicômio da cidade). Em pouco tempo, o local fica cheio e o Dr. vai ficando cada vez mais obcecado pelo trabalho. No começo, os internos eram realmente casos de loucura e a internação aceita pela sociedade, mas, em certo momento, Dr. Bacamarte passou a enxergar loucura em todos e a internar pessoas que causavam qualquer tipo de espanto. Inclusive, chega a internar sua esposa, pelo fato de esta não conseguir decidir que roupa usar numa festa.
Por fim, a cidade encontrava-se com 75% de sua população internada na Casa Verde. O alienista, percebendo que sua teoria estava errada, resolve libertar todos os internos e refazer sua teoria. Se a maioria apresentava desvios de personalidade e não seguia um padrão, então louco era quem mantinha regularidade nas ações e possuía firmeza de caráter. Assim, as internações continuam na cidade. Após algum tempo, o Dr. Simão Bacamarte percebe que sua teoria mais uma vez está incorreta e manda soltar todos os internos novamente. Como ninguém tinha uma personalidade perfeita, exceto ele próprio, o alienista conclui ser o único anormal e decide trancar-se sozinho na Casa Verde para o resto de sua vida.
Assim, na história, Machado de Assis critica ironicamente o cientificismo racional e equilibrado do pensamento hegemônico de sua época. Com efeito, assim como na obra de Stevenson, o livro de Machado contém um atual posicionamento cético diante da crença nos poderes ilimitados da ciência.
Retomando o incurso histórico, de certo modo, somente no final do século XIX e início do século XX a psicanálise resgata- com a noção de inconsciente-, a essencialidade da loucura em todos nós, noção esta bem trabalhada por vultos do Renascimento, como visto. Ao explicar o poder do inconsciente, Freud evidenciou o quanto o homem burguês tinha pouco controle sobre seu próprio eu, sendo esse controle exatamente o que, cartesianamente, o distinguiria do louco. Nesse sentido, cada homem tem sua própria sombra – a sombra daquilo que, em grande medida, ele é, mas não reconhece como parte de si. Freud identificou a loucura que, de certa forma atinge a todos.
Neste sentido, assoma o pensamento de Jacques Lacan, ao dizer que “o ser do homem, não somente não pode ser compreendido sem a loucura, como não seria o ser do homem, se não trouxesse em si a loucura, como o limite de sua liberdade”.[11]
Assim, as coisas humanas teriam dois aspectos, os quais, para Erasmo de Rotterdam (vulto do Renascimento), implicam-se e imbricam-se eternamente. A loucura implica a razão, a qual dialeticamente conteria a loucura, numa infinita miscelânea tautológica. A loucura, portanto, é uma experiência essencialmente humana, ao contrário do que se transformará, mais tarde: uma experiência desumanizadora.
Desse modo, o racionalismo do discurso dogmático penal atual, na verdade, busca exterminar a desumana insanidade e devolver a todos os homens a normalidade racional europeia pós-iluminista. Neste sentido, a medida de segurança, mais do que uma defesa social, seria uma paradoxal defesa da pessoa portadora de doença mental contra a sua própria loucura, ou seja, o objetivo declarado dela seria salvar o louco de sua desumana insensatez, o que não deixa de ser paradoxal. Ademais, a cura, nessa concepção, seria o retorno ao estado ideal simbolizado pelo homo medius, o “estado normal”, por mais metafísico que a noção de normalidade possa parecer, mesmo porque tanto a noção de homem médio quanto a noção de normalidade são apenas abstrações da retórica racional. Ninguém encontra um homem médio tomando uma dose de whisky na esquina! O conceito de homem médio- em direito penal-, é o que enigmaticamente se espera de um homem em “condições normais”, ou, parodiando o conceito químico, seria uma espécie de homem em CNTP (condições normais de temperatura e pressão).
O conceito de tipos ideais de Max Weber é um recurso de comparação, no qual o analista isola e otimiza/exacerba um caractere definidor de um papel social para simular seu comportamento em um ambiente perfeitamente racional (“ideal”). Segundo Romero Maia[12], o “curioso nesta contribuição de Weber é que este é um dos maiores estudiosos do avanço dos critérios racionais de estruturação da cultura do mundo moderno, ao passo que sua pesquisa está eivada de extremo racionalismo na interpretação da ação social”. Nesta senda, isso abre espaço para entendermos o “Zeitgeist” de nossa época como sendo o império da razão e, em contraposição, a loucura- numa tipologia ideal-, seria identificada com todo comportamento destoante da conduta racional imputada sobre padrões sociais. Seria a loucura, portanto, a irracionalidade e/ou o excesso de emoção.
Ademais, algumas considerações se fazem pertinentes. A título de curiosidade, registre a crescente procura pela psicanálise na pós-modernidade ou hipermodernidade, como preferem alguns. A psicanálise virou uma espécie de religião, uma espécie de filosofia- entendida como terapia das culpas burguesas ocidentais-, uma espécie de substituta laica do instituto católico da confissão, desmoralizado em um mundo cada vez menos religioso.[13] Em parte, talvez a derrocadas das religiões e o crescente número de agnósticos e ateus declarados se devam ao insucesso das religiões em responder os questionamentos e as inquietações próprios dos homens modernos, atormentados pelas angústias existenciais de um mundo de complexidade crescente, no qual o aparentar virou mais importante do que o ser.[14] Aqui merece nosso registro de que, infelizmente, ainda existem pessoas ignorantes ou ingênuas que pouco ou nada entendem sobre mente e comportamento humano e acham que psicologia ou psicanálise são coisas de louco. Fica aqui nossa tristeza diante de tal pensamento.
Voltando ao fio da meada, hodiernamente, a palavra “loucura” entrou no rol das politicamente incorretas e deixou de ser pronunciada no seu sentido de definir o contrário de normalidade e razão. Geralmente, preferem-se termos mais precisos e axiologicamente neutros, como doença mental, saúde mental, desenvolvimento mental incompleto ou outros de igual jaez.
A reflexão sobre a loucura, ao longo da história, é deveras enigmática. Há, na psiquiatria, certo malogro e angústia, por parte dos psiquiatras, pois jamais acharam lesões biológicas- nas autopsias que eram feitas nos corpos dos insanos-, que pudessem legitimar uma distinção entre estes e sãos. A loucura- a partir de uma perspectiva atual-, é invisível, sem a lógica mecânica de uma antiga calculadora, de fácil compreensão. A loucura tem a lógica dos chips modernos que, ao abrirmos, nada encontramos, nada entendemos do seu funcionamento.
Neste sentido, assevera Damásio: “é princípio de Psiquiatria que entre a saúde e a anormalidade psíquica não se pode traçar uma linha precisa de demarcação. A natureza não dá saltos e, do mesmo modo, entre a saúde e a anormalidade mental há graus intermediários.”[15]
Machado de Assis- na sua coluna no periódico A Semana, do dia 31 de maio de 1896, ao tratar da fuga dos loucos do Hospício-, com sua fina e genial ironia, suscita reflexões:
Agora que fugiram os doudos (sic) do hospício e que outros tentaram faze-lo (e sabe Deus se a esta hora já o terão conseguido), perdi aquela antiga confiança que me fazia ouvir tranquilamente discursos e notícias. (...) Uma vez que se foge do hospício dos alienados (...) onde acharei método para distinguir um louco de um homem de juízo? (...) Não posso deixar de desconfiar de todos. A própria pessoa, - ou para dar mais claro exemplo, o próprio leitor deve desconfiar de si. Certo que o tenho em boa conta, sei que é ilustrado, benévolo e paciente, mas depois dos sucessos dessa semana, quem lhe afirma que não saiu ontem do Hospício? (...) O cálculo, o raciocínio, a arte com que procederam os conspiradores da fuga, foram de tal ordem, que diminuiu em grande parte a vantagem de ter juízo”.[16]
É possível ler, basicamente, de três formas esta crítica: uma crítica a (in) eficiência do sistema psiquiátrico, uma crítica à impossibilidade de distinguir sãos e loucos (base do raciocínio aqui construído) e o pedido ao público para desconfiar de tudo e de todos.[17] Portanto, a complexidade da loucura é deveras enigmática. Segundo Levinas “isto significa dizer que nossa consciência e nosso domínio da realidade pela consciência não esgotam nossa relação com ela”.[18] Merleau-Ponty conclui que “a ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las”.[19]
Imbuídos de tais provocações, reflexões e considerações histórico-filosóficas, doravante, descer-se-á aos aspectos dogmáticos.