Resumo
O direito civil constitucional vem como uma tendência de constitucionalização do direito privado, utilizando os princípios constitucionais para nortear as relações privadas e a orientar as relações entre o Estado e os particulares, de modo a conciliar os valores e preceitos consagrados na Constituição Federal com as regras que regem as relações interpessoais.
Palavras Chave
Civil. Constitucional. Princípios
Introdução
O reconhecimento da existência do direito Civil Constitucional, de forma autônoma, leva o Estado à necessidade de aprimorar os instrumentos utilizados em sua atuação como agente normatizador das atividades humanas. Desta forma verificou-se a socialização das relações privadas, iniciando um fenômeno de constitucionalização do direito privado.
Conceitos
Antes de iniciar o entendimento e a dimensão do direito civil constitucional, é necessário compreender alguns conceitos em relação às divisões do ordenamento jurídico como uma estrutura normativa.
Direito Privado
O direito privado, em sua essência, se refere ao conjunto de normas que regem as relações entre particulares, nas suas mais diversas formas.
Direito Publico
O direito público se refere ao conjunto de normas de natureza pública, que regulam as relações entre os particulares e o Estado, suas funções, a organização de seus poderes e de seus servidores.
Direito Constitucional
É o ramo do direito que trata das normas constitucionais, sendo estas as que se encontram no ápice da pirâmide normativa, as leis supremas de um Estado.
Tal conceituação se faz necessária para compreendermos que o direito civil constitucional é uma junção de características destes três ramos do direito, de forma que ao mesmo tempo que regula as relações entre particulares, também orienta as relações estre estes e o Estado, adentrando a seara do direito público, sempre respeitando os princípios consagrados na Carta Magna.
A Constituição Federal de 1988 teve em seu âmago uma reformulação dos valores da nossa sociedade, incluindo em seus ditames matérias antes exclusivas do direito Civil, transformando temas que antes eram exclusivos do ramo do direito privado em matéria constitucional, criando uma nova sistemática, positivando direitos como liberdade, propriedade, segurança, etc. Que, anteriormente, eram tratados apenas pelo direito civil.
O direito civil tinha um viés norteado por regulamentar a vida privada sob uma visão patrimonialista. A partir da carta Magna de 1988, esta visão foi alterada para poder também regular o homem dentro da sociedade.
O professor Pedro Lenza bem explica que:
“Essa situação, qual seja, a superação da rígida dicotomia entre o público e o privado, fica mais evidente diante da tendência de descodificação do direito civil, evoluindo da concentração das relações privadas na codificação civil para o surgimento de vários microssistemas, como o Código de Defesa do Consumidor, a Lei de Locações, a Lei de Direitos Autoral, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, a Lei de Alimentos, a Lei de Separação e do Divórcio etc. Todos esses microssistemas encontram o seu fundamento na Constituição Federal, norma de validade de todo o sistema, passando o direito civil por um processo de despatrimonialização.”
A “despatrimonialização” do direito civil ocorre como uma resposta imediata à constitucionalização de temas que eram tratados anteriormente apenas pela legislação ordinária, alterando o enfoque do patrimônio para o ser humano e seus atos, assim, a noção de patrimônio se vê substituída por princípios que levam em consideração o todo da sociedade.
Evidente que não faz mais sentido falarmos em código antigo e código novo, mas se faz necessária uma observação apartada dos dois instrumentos, para se entender e deixar clara a mudança de identidade que ocorreu no direito civil com as mudanças trazidas após a Constituição de 1988.
O direito civil tinha como fonte essencial a lei. Esta fonte, para o direito nacional, se encontrava no código civil de 1916. Durante sua vigência foi alterado muitas vezes, tendo títulos inteiros inutilizados, sofrendo com a evolução da sociedade e fatos históricos que o deixaram, após muitos anos, desatualizado.
O código civil de 2002 manteve uma estrutura similar ao de 1916, totalizando 2046 artigos e sendo dividido em duas partes, uma geral e outra especial, seguindo a escola germânica preconizada por Savigny.
O Direito Privado e a Constituição
Com o advento da Constituição Federal de 1988, muitos assuntos relacionados à vida privada dos indivíduos passaram a ser tratados diretamente pela Constituição Federal.
Com base em princípios constitucionais que passaram a influenciar e reger as relações privadas, tal como o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à honra, iniciou-se a socialização, ou constitucionalização do direito privado.
A norma constitucional e a metodologia utilizada pelo sistema normativo nacional levaram a esta sincronia entre as leis ordinárias e a Constituição, de tal modo que os princípios consagrados na Carta Magna fossem utilizados para nortear as regras instituídas para todos os outros ramos de direito, conforme o princípio da supremacia constitucional.
A hierarquia das normas segue o conceito de pirâmide normativa, sendo a Constituição a nossa lei maior, portanto todas as outras leis devem ser redigidas de forma a respeitar e interagir de forma coerente com a norma encontrada no alto da pirâmide, de modo que qualquer norma que contrarie dispositivo, preceito ou princípio encontrado na lei superior estará marcada pela inconstitucionalidade.
O ordenamento jurídico deve ser analisado como um sistema, visualizando o todo, de forma que a norma de forma isolada não perca sua essência, mas quando estudada dentro do todo, tenha uma finalidade e um espaço próprio.
Os princípios constitucionais no novo Código Civil
O código Civil de 2002 recebeu como herança da Constituição Federal de 1988 alguns princípios, dentre eles a solidariedade social, buscando conciliar exigências particulares com os interesses coletivos.
Outros princípios existentes na carta Magna que levaram a uma nova interpretação do direito civil constitucional foram os da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social e o da igualdade social, levando à constitucionalização do direito civil.
Desse processo de constitucionalização do direito civil também surgiu o princípio da boa-fé, que não estava previsto de forma expressa no código civil de 1916, mesmo sendo considerado pela doutrina e pela jurisprudência como um dos pilares principiológicos da referida lei, sendo que no código civil de 2002, o referido princípio foi expressamente incluído no rol de princípios fundamentais.
O código civil de 2002 teve em suas diretrizes alguns valores considerados fundamentais como a socialidade, a eticidade e a operabilidade, priorizando o social, o coletivo sobre o particular.
O princípio da socialidade enseja uma nova visão do direito, no que diz respeito às pessoas, pois deixa de se preocupar somente com o indivíduo para priorizar o social, o coletivo.
O que bem demonstra o princípio da socialidade é a criação de limites para a liberdade de contratar, pois se antes os contratos cuidavam apenas da vontade dos contratantes, agora, como se percebe no texto do artigo 421 do Código Civil, deve-se ter em mente e respeitar a função social do contrato.
Por exemplo, duas pessoas contratam a compra e venda de um terreno para construção de uma casa em área de preservação ambiental permanente. Nesse caso, ainda que o contrato parecesse perfeito, válido e eficaz, na realidade, tal negócio jurídico iria de encontro com a preocupação expressa da Carta Magna em preservar o meio ambiente.
É importante reconhecer que dificilmente o legislador comportaria todas as situações possíveis que impediriam a eficácia e validade de contratos como o do exemplo acima, por isso a importância dos princípios constitucionais regerem todas as demais normas, para que juízes, advogados, promotores, procuradores e a sociedade como um todo possam alcançar aspectos que não poderiam ser exaustiva e expressamente enumerados na lei.
O princípio da eticidade estabelece a busca dos valores éticos em vez da aplicação rigorosa da letra da lei. É um grande avanço para a sociedade, que em vez de depender de sucessivas atualizações nos textos legais, pode contar com a sabedoria e equidade dos operadores do direito.
É possível verificar a presença do princípio da eticidade pela leitura do artigo 113 do Código Civil: "os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração."
Em seguida, no artigo 128, novamente se faz menção expressa da boa-fé: “Sobrevindo a condição resolutiva, extingue-se, para todos os efeitos, o direito a que ela se opõe; mas, se aposta a um negócio de execução continuada ou periódica, a sua realização, salvo disposição em contrário, não tem eficácia quanto aos atos já praticados, desde que compatíveis com a natureza da condição pendente e conforme aos ditames de boa-fé.”
A expressão “boa-fé” é mencionada cinquenta e cinco vezes no Novo Código Civil. Enfim, fica nítida a intenção de contar muito mais com a sabedoria e boa interpretação dos operadores do direito do que com a aplicação rigorosa da letra da lei. Nota-se o quanto o sistema jurídico brasileiro evoluiu no sentido de prezar pela real justiça.
Por fim, o princípio da operabilidade mostra-se como mais uma ferramenta do legislador, que busca facilitar a aplicação da norma, na tentativa de simplificar a interpretação do texto legal.
O novo Código Civil sistematiza e divide bem a Parte Geral e a Parte Especial, já buscado a sua operabilidade pelos profissionais do direito, não só na aplicação, quanto na interpretação e no estudo.
Tais princípios são indispensáveis filtros para a boa aplicação do direito, pois uma nação que expressa em sua lei maior os alicerces de seu ordenamento jurídico, que determina os objetivos maiores que devem ser observados em todas as relações jurídicas e em toda a aplicação das normas legais, tende a se preocupar menos em modificar texto legislativos e a focar no que realmente importa, ou seja, o cumprimento dos objetivos fundamentais da Constituição Federal, quais sejam, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades e o bem de todos, sem quaisquer preconceitos ou discriminações.
Direito Civil Constitucional
Direito civil constitucional, na tradução de Flores Valdés, deve ser entendido como "um sistema de normas e princípios institucionais integrados na Constituição, relativos à proteção da pessoa em si mesma e suas dimensões fundamentais familiar e patrimonial, na ordem de suas relações jurídico-privadas gerais, e concernentes àquelas outras matérias residuais consideradas civis, que tem por finalidade firmar as bases mais comuns e abstratas da regulamentação de tais relações e matérias, nas que são suscetíveis de aplicação imediata, ou que podem servir de ponto de referência da vigência, da validez e da interpretação da norma aplicável ou da pauta para o seu desenvolvimento."[2]
Uma vantagem inegável da existência da disciplina direito civil constitucional se verifica na possibilidade do estudo das relações privadas sob um prisma constitucional integrado às relações privadas, conferindo uma nova personalidade ao direito privado.
Desta forma, o direito privado se eleva, sendo colocado no topo do sistema normativo, utilizando-se de uma estrutura que lhe dá vida e evitando uma fragmentação da estrutura normativa, conciliando os princípios constitucionais com a legislação do direito privado.
É impossível, atualmente, analisar e compreender o direito civil constitucional sem considerar, em uma visão geral do sistema normativo nacional, os ditames da carta maior.
A Constituição passou a ser, não apenas, um instrumento de limitação aos poderes do Estado, contribuindo e regulamentando normas e meios utilizados para um fim maior, apresentando prerrogativas e mecanismos com a finalidade de fazer com que a sociedade prospere e conviva em paz.
Devemos lembrar que a Constituição não deve ser considerada apenas um instrumento que vincula o povo e o Estado, mas como uma complementação entre os deveres e obrigações e para trazer um equilíbrio entre poder e liberdade.
Nosso sistema normativo utiliza uma estrutura de pirâmide, sendo a Constituição o topo desta e o restante das normas se submetem a seus princípios e normas, de tal modo que quando tratamos o direito provado com um viés constitucional, além de respeitar o princípio da hierarquia das normas, elevamos o direito civil a um patamar superior, utilizando-o como instrumento para regular e fornecer respostas e caminhos para os inúmeros conflitos existentes nos grupos sociais, equilibrando os desejos e necessidades da sociedade, interagindo, inclusive, nas relações entre particulares e o Estado.
Neste ínterim, a Constituição deve ser tratada como o centro de todo o ordenamento jurídico, de forma que sua interpretação deve ser levada em consideração em qualquer análise normativa, não sendo apenas a fórmula para um sistema normativo de normas sobrepostas ou um modelo político.
Em uma interpretação atualizada e completa do direito civil constitucional, podemos verificar que ele se encaminha para tratar não apenas dos negócios jurídicos celebrados entre os particulares, mas também para orientar e a relação entre os particulares e o Estado.
Conclusão
Com o advento da Constituição Federal de 1988, o sistema normativo nacional deixou de ter a visão antiga de divisão do direito por ramos, passando a uma visão mais ampla e interligada das áreas do direito. O direito constitucional passou a tratar não apenas da organização do Estado, mas a apresentar princípios que norteiam o restante da legislação.
Desta forma, a relação entre pessoas, seja para dirimir conflitos, ou apenas para organizar e distribuir direitos e obrigações, teve sua essência influenciada pela legislação constitucional, levada pelo princípio da supremacia da norma constitucional e por direitos incluídos na carta magna como os da dignidade da pessoa humana, personalidade, a honra e muitos outros que levaram a uma integração necessária entre o direito privado e o direito constitucional.
É imprescindível lembrar que todo o sistema normativo nacional está intrinsecamente ligado à Constituição, pois a hierarquia normativa não permite que nenhuma outra norma, seja ela formal ou material, contrarie qualquer dispositivo da lei maior.
Neste sentido o direito privado sofre influência direta da norma constitucional, servindo como um instrumento normativo utilizado para complementar os princípios constitucionais, abrindo assim um novo leque normativo tratado como um misto de direito civil com direito constitucional.
Assim, priorizando princípios como dignidade da pessoa humana, boa-fé objetiva, entre outros, é possível aos operadores do direito aplicar as normas jurídicas da melhor forma, sem as correias de um texto legal engessado pelo seu positivismo.
Referências
Brasil. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 22 de janeiro de 2015.
Brasil. Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 22 de janeiro de 2015.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.
LOPES, Emerson Passaroto. O Direito Civil Constitucional: a constitucionalização e a publicização do Direito Civil. Disponível em: <http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=5811>. Acesso em: 21 de janeiro de 2015.
LOTUFO, Renan. Direito Civil Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2002.
REALE, Miguel. A Constituição e o Código Civil. Disponível em: <http://www.miguelreale.com.br/artigos/constcc.htm>. Acesso em: 21 de janeiro de 2015.
[2] Joaquìn Arce Flores-AVldes, El derecho civil constitucional, pp 178-179.