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Colaboração premiada: reflexões práticas

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Agenda 24/07/2020 às 08:30

5) A decisão judicial sobre o pedido de colaboração

Realizado o acordo, o termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, que deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente ouvir o colaborador na presença de seu defensor (art. 4º § 7º da Lei 12.850/2013). O juiz poderá recusar homologação da proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto, diz o § 8º, art. 4ª da Lei.

Entre esses requisitos legais observa-se a legitimidade do Delegado de Polícia para o requerimento de perdão judicial ao colaborador, durante o inquérito policial, condicionada, porém, a aceitação do MP (art. 4º, § 2º), posto que, como dominus litis, responsável jurídico pela persecução penal, não pode, logicamente, ser compelido a levar a juízo qualquer proposta que envolva disposição ou afetação do jus puniend. 

A decisão judicial, conforme se observa, não é limitada à verificação da regularidade formal. É claro que, satisfeitos os requisitos legais, em princípio o julgador deve homologar a proposta; mas a isso o juiz não estará obrigado se, por exemplo: a) tiver dúvidas acerca da voluntariedade do colaborador; c) se a contribuição não for potencialmente[23] apta a alcançar um dos resultados previstos no art. 4º da lei e prometidos pelo colaborador.

Nesses casos, portanto, o juiz exerce crivo sobre a regularidade, legalidade e voluntariedade do acordo, podendo tanto recusar tout court o termo, como glosar cláusulas e/ou reformulá-las, adequando-as ao direito. É possível, por exemplo: a) que o termo não esteja acompanhado dos demais documentos exigidos; ou: b) que não conste a assinatura do defensor; c) que as cláusulas sejam ilícitas. Mas é possível também que: d) a colaboração não tenha sido efetiva ou relevante.

Enquanto nas primeiras hipóteses há correção do termo de acordo, sanando-se irregularidades; na última, o acordo já terá sido homologado e o controle incidirá sobre o seu conteúdo ou eficácia – juízo só possível, logicamente, no momento da sentença.

Em qualquer caso é facultado ao juiz ouvir, em sigilo, o colaborador na presença de seu defensor, principalmente quando tiver dúvidas sobre a voluntariedade de seu consentimento, o que supõe a capacidade de compreender os significados positivos e negativos da colaboração.

A decisão sobre a colaboração premiada deve ser fundamentada, com particular atenção à extensão e à relevância concreta da ajuda do colaborador para a investigação ou apuração dos fatos no curso da instrução criminal. O amplo espectro de benefícios previstos na lei e a condição de sujeito titular da promessa judicialmente homologada exigem exposição clara do raciocínio judicial que conduza à concessão, ou não, do prêmio em espécie e/ou quantidade consideradas justas e adequadas[24], que há de manter correlação lógica com os resultados que as informações promoveram.


6) Vinculação do juízo aos termos do acordo 

O controle judicial do acordo funda-se na necessidade de tutelar a lisura da transação sobre direitos e liberdades fundamentais. O acordo envolve disposição de direitos fundamentais processuais do investigado/acusado (de manter-se em silêncio, com a obrigação de dizer a verdade, o que pode incluir confissão de crimes);  por outro lado, como o Estado não pode, no nosso sistema, renunciar ao direito de punir, salvo nas hipóteses que lhe forem autorizadas por lei, deve submeter os termos do compromisso ao Estado-Juiz, a fim de que este avalie se a pretensão estatal se ajusta aos limites e às condições autorizadas em lei.  

A natureza dessa decisão, a nosso ver, mais que declaratória, é constitutiva, posto que, incidindo sobre uma pretensão correspondente ao próprio conteúdo do “negócio jurídico” entabulado pelas partes[25], podendo o juiz alterá-lo e adequá-lo, produz uma situação jurídica nova, da qual defluem os efeitos jurídicos previstos na lei, concretizáveis na sentença (art. 4º, § 11).

A vinculação do juízo aos termos do acordo homologado deve ser considerada à luz da natureza desse ato jurídico que, mesmo homologado judicialmente, é retratável pelas partes, o que mostra o seu caráter precário, de compromisso bilateral, sujeito a resultados correspondentes às obrigações pactuadas entre as partes (MP e colaborador)[26]. Por isso, não é possível afirmar que o juízo esteja obrigado a cumprir acordo feito na fase de investigação, em que, p. ex., se prometeu o perdão judicial se, ao fim da instrução, ficar caracterizada a pouca ou escassa contribuição do colaborador.

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Em princípio, em respeito à lealdade, o juízo e o MP estão obrigados a cumprir o acordo homologado; mas disso não se conclui haver uma vinculação absoluta, pois se cuida de compromisso de resultado, consoante o sentido pragmático da lei. Sem colaboração efetiva que leve a resultados concretos não há prêmio.

A vinculação depende sempre da satisfação das condições entabuladas formalmente, daí a necessidade de haver congruência no trinômio: promessa-colaboração e resultados efetivamente alcançados[27]. Essa a razão porque o MP ou o Delegado de Polícia devem exigir informações específicas em relação a certos resultados (art. 6°, I) – a serem investigadas conforme o princípio da oficialidade) – e não devem prometer benefícios específicos, como quantidades fixas de redução de pena ou a substituição de pena ou o perdão judicial, mas limitar-se a prever as possibilidades legais dos benefícios, pois só ao final do processo será possível saber, numa análise global, o prêmio justo e adequado ao colaborador em cada caso[28].


7) A necessidade de assegurar a imparcialidade do julgador    

É fora de dúvidas que o combate à impunidade dos crimes praticados em sede de organizações criminosas tem como reverso da medalha a segurança jurídica de investigados e acusados, como deve ocorrer em qualquer processo penal. A colaboração premiada, como o próprio nome já diz, premia ações que contribuam para as finalidades da persecução penal, o que só se legitima no âmbito do devido processo legal, com respeito aos direitos fundamentais do investigado/acusado.

Questão relevante é a de se saber se o Juiz de Direito que exerce controle de legalidade sobre o acordo de colaboração premiada, tomando conhecimento das investigações sobre fatos, a estrutura e funcionalidade da organização criminosa, ouvindo o investigado sigilosamente e adotando medidas cautelares, conhecendo os resultados dessas diligências etc, poderia manter-se imparcial em grau desejado, a fim de entregar a futura prestação jurisdicional adequada e justa, como se deseja. 

Uma resposta tradicional é a de que não haveria comprometimento à imparcialidade nessa situação, assim como não há impedimento do juiz nos casos em que defere medidas cautelares na fase inquisitorial. Entretanto, essa resposta não parece satisfatória, pois a atuação judicial aqui não é idêntica àquelas. No caso da lei 12.850/2013 o juiz conhece os termos do acordo, faz controle de legalidade, conhece o teor e o “programa das investigações”, sabe o que o colaborador se propõe a revelar aos investigadores, é obrigado a velar pela legalidade das cláusulas do compromisso, podendo readequá-lo, recusá-lo e, inclusive, aquilatar se o colaborador age voluntariamente – o que implica saber até mesmo suas motivações pessoais –, podendo, para tanto, ouvi-lo sigilosamente na presença de seu defensor (art. 4º, § 7º).

Ainda que a lei afirme que o juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração (art. 4º, § 6º), parece-nos que as tarefas impostas ao juiz ainda na fase inquisitorial podem comprometer sua equidistância de terceiro imparcial na futura prestação jurisdicional, notadamente se inquire o pretenso colaborador. Difícil sustentar, com razoabilidade, que um juiz que acompanha desde o início as investigações, determina medidas sigilosas de busca e apreensão, interceptação telefônica, quebra de sigilo bancário e fiscal, ouvindo pessoalmente o pretenso colaborador - que lhe revela crimes em detalhes e aponta coautores e partícipes, e obtém, inclusive, proteção pessoal - consiga manter o nível de imparcialidade desejado, de acordo com o devido processo legal concebido no Estado de Direito Democrático.

Nos termos da lei 12.850/2013, o juiz passa a atuar para além de um supervisor ou garantidor de direitos fundamentais, como até então se tem entendido na doutrina e jurisprudência[29]. Com a máxima vênia, dizer que o juiz não faz juízo de valor nessa hipótese, e por isso não compromete sua imparcialidade, é ignorar a realidade de uma investigação sobre OC. A magnitude de certos casos, quando um integrante se dispõe a colaborar, atraindo quase sempre a atenção midiática, gera altas expectativas na sociedade, rendendo grande notoriedade às autoridades, que muitas vezes passam à condição de quase “heróis”, do dia para a noite, fenômeno muito conhecido na literatura do direito comparado[30].

A imparcialidade é pressuposto de validade da própria jurisdição; e já não se pode “isolar a autoridade do julgador”, separando-a de sua humanidade e de suas circunstâncias, notadamente na era da comunicação tecnológica instantânea e planetária, as quais podem retirar as condições objetivas que inspiram a confiança social no juiz. O aumento da atividade do juiz na fase inquisitiva, antes mesmo de formalizada a denúncia, é elemento perturbador ao postulado acusatório e à garantia do terceiro imparcial, não se afigurando relevante se ele fez ou não juízo de valor, ou antecipou opinião sobre o objeto do processo, embora muitas vezes esses juízos sejam inevitáveis nas decisões sobre medidas cautelares.   

Nessas condições, parece aconselhável que o juiz que tenha atuado com tal amplitude na fase investigatória, conhecendo toda a trama delituosa e o plano das investigações, controlando o termo de colaboração e ouvindo o pretenso colaborador, se exima de presidir o futuro processo criminal, pois frente a tal protagonismo, ele dificilmente reuniria as condições psicológicas necessárias para um julgamento justo e imparcial[31]. 


8) A participação da defesa no regime da colaboração premiada

Outra indagação de primeira ordem diz respeito à validade da prova produzida em regime de colaboração premiada contra quem não teve oportunidade de contraditar e/ou contrastar suas declarações.

A lei cuidou de paliar essa preocupação defensiva assegurando, no art. 23, em caso de decretação de sigilo da investigação, o direito do defensor, no interesse do representado, de ter amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento.

No parágrafo único especificou o direito do defensor, quando do depoimento do investigado, de prévia vista dos autos no prazo mínimo de 3 (três) dias antecedentes ao ato, ampliável a critério da autoridade responsável pela investigação,  mesmo quando estiver sob sigilo.

A lei, sopesando o direito fundamental de liberdade individual e o dever de investigação de delitos para a segurança e proteção aos bens jurídico-penais, deu prevalência a este último. Assegurou plena liberdade às autoridades encarregadas da investigação, tornando os autos do pedido de homologação do termo de colaboração restrito ao juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia, como forma de garantir o êxito das investigações. Sem embargo disso, obtemperando o conflito, assegurou ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento. (art. 7º, § 2º).

O defensor não tem, portanto, direito de participar das diligências investigatórias em nome do seu constituinte; só tem direito de conhecer o resultado das diligências documentadas nos autos, isto é, os elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa (cf. Súmula Vinculante nº 14-STF). Toda investigação transcorre sem a presença da defesa, como é tradicional nas investigações criminais em geral. O único elemento novo, de contramedida ao interesse persecutório, diz respeito ao direito de vista dos autos três dias antes da inquirição do investigado[32].

Note-se que a lei não diz qual deve ser o prazo para submissão do termo de acordo de colaboração ao juízo, pois, como se viu, a colaboração pode ocorrer a qualquer tempo, antes, durante a ação penal e até após sentença condenatória. Em consequência disso, as tratativas são conduzidas exclusivamente pelo Delegado de Polícia e/ou Ministério Público junto ao pretenso colaborador e o seu defensor.

Tal circunstância, que a princípio pode parecer um problema, em realidade não é, pois que o Estado submete-se à prescrição da pretensão punitiva e a demora em toda investigação corre contra os seus interesses, não da defesa[33]. Se não há acordo de colaboração formalizado, não há risco ao direito de liberdade; relevante é que, homologado o acordo, o defensor tenha acesso aos autos e ao termo de colaboração premiada para preparar desde logo a “defesa” de seu cliente, acompanhando a sua inquirição. 

A questão que se põe é: se o colaborador pode ser ouvido pela defesa em juízo, por previsão do art. 4º, § 12, da Lei, a defesa poderia inquiri-lo na fase inquisitorial? Parece-nos que, tratando-se de situação em que o colaborador faz acusações a supostos copartícipes de crimes ou integrantes de OC, sendo isso parte do termo de colaboração homologado judicialmente, os imputados têm evidente interesse jurídico de inquirir o delator, por se tratar de elemento de prova que dizem respeito ao exercício do direito de defesa, conforme prevê o art. 7º, § 2º, da lei nº 12.850/2013.

Se a lei confere à defesa o direito de obter vista dos autos e do termo de acordo de colaboração, quando nele hajam elementos de prova que digam respeito ao seu constituinte, mesmo quando sigilosa a investigação, como estabelecem os artigos 7º e 23 da Lei - inclusive para preparar as linhas de defesa com três dias de antecedência do depoimento - não seria razoável negar pedido para inquirir o delator no curso da investigação criminal, a fim de refutar elementos que poderiam levá-lo a um processo criminal temerário ou indevido.

Note-se que, de acordo com o § 9º do art. 4º da Lei, mesmo depois de homologado o acordo, o colaborador poderá, acompanhado de seu defensor, ser ouvido pelo membro do Ministério Público ou pelo delegado de polícia responsável pelas investigações. Tendo a lei assegurado ampla liberdade à investigação, exigindo a presença do defensor do colaborador, como condição de validade do acordo e do depoimento na fase de investigação, seria estranho que os delatados pelo colaborador não pudessem contestar as acusações antes do oferecimento da denúncia.

De se reconhecer que esse talvez seja o ponto que mais suscitará desenvolvimentos doutrinários, porque a colaboração premiada - assim como todos os outros meios de obtenção da prova previstos no art. 3º – embora possa ser utilizada em qualquer fase da persecução penal, é mais usual na fase de investigação, quando os impactos jurídicos sobre a esfera de direito individual tendem a ser mais intensos e, contraditoriamente, o investigado pode ficar exposto a acusações falsas e criminosas, sem possibilidades de reação adequada, enquanto o delator – que em regra é integrante da OC - está assistido de advogado.  

E deve-se atentar, por fim, que no sistema da lei o colaborador obrigatoriamente assume a condição jurídica de testemunha com o compromisso legal de dizer a verdade. Então, negada a possibilidade de inquirição pelos delatados, seria caso único de testemunha que não poderia ser inquirida pela parte interessada.

Sobre o autor
Mauro Viveiros

Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso, Mestre em Direito pela UNESP e Doutor em Direito Constitucional pela Universidad Complutense de Madrid. Professor dos Cursos de Especialização da Escola Superior do Ministério Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIVEIROS, Mauro. Colaboração premiada: reflexões práticas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6232, 24 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36040. Acesso em: 22 dez. 2024.

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